quinta-feira, 14 de setembro de 2017

O poeta e a cidade, RCF





            Há de se fazer uma diferenciação entre civilização e cidade. O poeta apreende a cidade através da civilização. A cidade é um ente concreto, a civilização um estado de existência. A cidade propicia que a civilização, ou seja, a circulação de bens culturais, possa acontecer nela, cidade. Não entremos em considerações sobre a desumanização das cidades grandes. Trata-se aqui de ver como a civilização permeia a cidade e a cidade aconchega, acolhe, permite que o poeta seja possuidor de um bem cultural, a civilização, que a própria cidade lhe fornecerá. Porque a cidade é o grande receptáculo da civilização. Não só continente da civilização como também o caldeirão onde a civilização e a cultura podem ser alimentadas, projetadas, criadas e germinadas.

            A cidade desumanizada também vai afetar o poeta. O convívio com a decadência da cidade, seu lado sórdido, alimentará solidão, medo e desconforto que também serão elementos de tensão produtiva. Mas esta “cidade perversa” só poderá ser apreendida de modo criativo e transformador caso a civilização, cujo veículo é a cidade, possa fornecer os instrumentos para que o artista transforme, por exemplo, violência em produção poética. A cidade em si mesma, conjunto urbanístico e arquitetônico, não tem grande influência sobre a produção poética. Deixemos bem claro: não queremos dizer que o meio, a cidade, não atue sobre a produção poética. A cidade só é elemento frutificador na poesia quando ela passa pelo dado da civilização. Mesmo que o poeta seja ingênuo ou pouco culto, a apreensão da civilização se dará através de sua sensibilidade. Outros buscarão mecanismos convencionais de troca cultural como a universidade, visita a galerias, acesso a publicações ou atos e iniciativas congêneres.

            O grande exemplo entre cidade e civilização está na relação entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Mário vivia em Paris, na grande cidade, coração cultural do mundo, abrigo das grandes vanguardas. Pessoa vivia na Lisboa provinciana, no dizer do próprio João Gaspar Simões.[1] Ora, são duas grandes capitais europeias, mas significativamente diferentes no tempo em que viviam. Paris esbanjava modernidade, Lisboa estava presa ao passado, até e principalmente, que é o que nos interessa aqui, em literatura. Antes que Sá-Carneiro influencie Pessoa, ou seja, antes que Paris influencie Lisboa, é Fernando Pessoa que é o mestre de Sá-Carneiro. Seguramente, sem a orientação de Pessoa, segundo testemunho do próprio Sá-Carneiro, o poeta de Dispersão não seria o grande poeta da literatura portuguesa se não tivesse seguido os conselhos do amigo dois anos mais velho Fernando Pessoa. O que acontecia então? Acontecia que Fernando Pessoa entrara, através da grande, mas provinciana cidade de Lisboa (e até mesmo antes na provinciana Durban), em contato com a civilização. A estada de Sá-Carneiro em Paris era uma estada física. Embora Sá-Carneiro tenha falado e comentado com Fernando Pessoa sobre alguns movimentos vanguardistas do princípio do século que estavam acontecendo em Paris, esta mesma cidade que Sá-Carneiro vivia e que o deslumbrava e que, por deslumbrá-lo, dialeticamente, via Fernando Pessoa o modo provinciano de Sá-Carneiro conviver com a cidade, esta mesma cidade, dizíamos, dará oportunidade a Sá-Carneiro entrar em contato com a cidade física, mas não com a civilização de Paris. Foi preciso que um poeta que nunca deixou Portugal, pois Fernando Pessoa veio da África do Sul mas nunca esteve em Londres ou Paris, foi preciso que o poeta de Mensagem, via civilização, desse as coordenadas poéticas para o poeta suicida que vivia nesta época, como apontamos, no olho do furacão cultural das vanguardas. Então façamos a distinção entre a cidade civilização e a cidade física. A primeira leva o poeta a transformações; a segunda é apenas uma moldura, um pano de fundo. A segunda, a cidade cenográfica, apenas transformará o poeta se este deixar-se comunicar e contaminar pela cidade civilização, ou seja, pela civilização que a cidade física lhe facilita.

            Um dos casos curiosos é o de Frederico Garcia Lorca. Poeta cigano, cantor das províncias andaluzas, de ritmo gitano, de romanceiros fáceis e musicais, quando se encontra com a megalópole Nova York é tomado pelo horror. As imagens surreais, absurdas, fantásticas, doloridas e exageradas como a morte por dia de não sei quantos mil cabritos para alimentar os habitantes de Manhattan o impressionam. Para alguns sua poesia se transforma, amadurece. Passa a incluir no seu repertório linguagem e imagem universais e incorpora definitivamente o surrealismo. Mas Lorca já tinha entrado em contato com a civilização em Madri, na mesma Madri provinciana que lembrava a Lisboa de Fernando Pessoa. Ele mesmo dissera que abominava ser conhecido apenas como poeta do Romancero Gitano porque aquele tipo de poesia e temática o caracterizava como um artista rústico, sem instrução, intuitivo, o que era justamente o contrário. Lorca era culto, refinado, cosmopolita, inquieto intelectualmente. De qualquer modo, o impacto que Nova York lhe causa e que resulta no livro Um poeta em Nova York, é de um desatino, um forte impacto, uma surpresa e desconcerto. Estaria o companheiro dos surrealistas espanhóis como Luís Buñuel (que o aconselhara a deixar a temática cigana) e do monarquista Salvador Dalí confrontando-se com a civilização? Não, a resposta é não. Naquele instante, Lorca entrava em contato com a megalópole física, com os números exagerados de animais mortos para alimentar os nova-iorquinos, com os arranha-céus, as grandes avenidas, enfim, com a grandiosidade da maior cidade moderna do mundo. Mais tarde, conhecendo melhor a cidade, os negros, Harlem, etc., Lorca poderá mostrar um lado mais humano da cidade. O contato com a civilização se dará no encontro com intelectuais por um lado e por outro o conhecimento da situação do negro norte-americano, o Harlem, e outras aventuras do gênero. Se por um lado o livro mostra o deslumbramento do provinciano, por outro mostra a conquista estética e transformação que o artista fará a partir do contato com a civilização na grande cidade.

            A questão da civilização e ruína, ruína aqui entendida como a degradação da cidade. O confronto entre o mundo da cidade civilizada e o mundo bárbaro da cidade agressiva e violenta vai gerar no poeta uma consciência não de cidadania – esta, pelo contrário é fragilizada – mas uma consciência de orfandade. Poderiam argumentar que este confronto não apenas coloca o poeta encurralado em sua particular civilização como também degrada a todos. Obviamente não poderíamos eliminar o poeta da polis e a polis é a cidade de todos. Logo o fenômeno certamente se estende a todos os moradores da cidade civilizada acossada pela cidade bárbara. Contudo, o poeta irá transformar a barbárie da cidade civilizada em matéria-prima para sua obra e a sua forma de apresentação dialética desse confronto não necessariamente acontecerá de maneira explícita ou recriminatória. Para mim não me interessam os índices – no sentido da linguagem de Pierce – em que são citados fatos de violência da cidade, mas a maneira como ela sub-repticiamente incluiu-se no poema, embora a temática por vezes esteja longe de falar de violência. Neste sentido, o poeta pode estar falando de tecnologia, ambição, angústia ou amor e seu poema conter a tensão social e a dialética cidade x violência. Talvez este seja o modo mais difícil de perceber a metáfora da violência dentro do poema, mas com certeza é a mais rica e intrigante para o crítico. Até mesmo porque se o poema já chegou a este nível de elaboração é porque sua poesia é transcendente e não apenas relato sociológico da degradação.

            Por fim a questão do poeta na pós-modernidade. A cidade é o lugar privilegiado da dispersão pós-moderna. O lugar que é o não-lugar. É na cidade que o poeta exercita a sua capacidade de desconfiar da cidade e da palavra que a nomeia, de buscar a margem e tornar o que é sombra e resto o centro que por sua vez e por atuação dialética é seu oposto, a periferia. Só a cidade permite a multiplicação do múltiplo, a singularidade do singular, a expressão caleidoscópica dos guetos, das etnias, das reivindicações de um sujeito mutante e fluido. Apreender a cidade não é mais apreender a paisagem física ou, melancólica e nostalgicamente, lembrar-se da rua Lopes Chaves, mas enveredar por um mapa do disforme, uma topografia da ausência, um espaço vazio onde cabem todas as supostas verdades e as muitas ironias urbanas. O poeta está na cidade pós-moderna como a cidade pós-moderna está nele: fragmentariamente, subjetivamente, autoralmente, moral, étnica, marginal, excêntrica, paródica, fantasmal e alegoricamente. A cidade é uma poesia em si mesma, uma poesia não-concreta, uma poesia de um mundo virtual. O poeta hoje está em simbiose com a cidade que o ameaça e o traga, o seduz e o faz vítima da trama da pós-modernidade. Mais do que simbioticamente preso à cidade, o poeta não é mais aquele que somente acusa a cidade, mas também aquele que constrói o imaginário das cidades.




Bibliografia

LORCA, Federico García. Obras completas. Madrid: Aguilar,

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio:DP&A,1997.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio: Aguilar, 1969.

SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. 6 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991.


(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Ed. Academia Maranhense de Letras, 2016)



[1] Aqui valeria explicar a distinção entre grandes cidades e cultura feita por João Gaspar Simões justamente quando fala da relação dos dois poetas. Esta observação de João Gaspar Simões é que foi o ponto de partida para teorizar sobre a distinção: cidade x civilização. João Gaspar Simões, em seu livro Vida e obra de Fernando Pessoa, afirma que “cultura é do domínio espiritual”, que Pessoa tinha cultura, mas não acesso às grandes cidades, “a civilização é diferente de cultura”. Para João Gaspar Simões, Pessoa era homem culto,  mas provinciano e Pessoa mentira, no disfarce heterônimo de Álvaro de Campos, “em sua fase civilizada, no rompante europeu, ultracivilizado, fumiste, snob do dinamismo moderno, da força, da celeridade, da vertigem, do esplendor material das grandes metrópoles ou da civilização mecânica.” ( p. 270 ) Logo, João Gaspar Simões opõe cultura x civilização, enquanto preferi trabalhar com a oposição cidade x civilização, colocando nesta última todo o peso da cultura. Observe-se contudo que a pretensão de Simões não era tratar do assunto O poeta e a cidade, tema específico deste artigo.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Caminhante, António Machado


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XXIX



Caminhante, são tuas marcas
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.
Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se voltará a pisar.
Caminhante, não há caminho,
senão estrelas no mar.