quarta-feira, 11 de abril de 2018

A FAMÍLIA DOS ÓRFÃOS, conto RCF




                                                          

                                           

            Ele se perguntava quanto sua caixa de choro podia suportar. Porque acreditava que a gente não produz lágrima ao infinito. O fígado tem um tamanho, o rim tem um tamanho, o órgão que jorra lágrima deve ter um número limitado de água salgada. O que podia chorar? Podia chorar um copo de lágrima? Podia chorar uma chaleira de água? E que tal um balde? Um balde deve ser demasiado. Por mais dor que se tenha ou mais capacidade tenha o nosso órgão que como o rim trabalha com a água achava que um balde era exagero. Passava pela sua cabeça que podia perder líquido e ir minguando, quando viessem buscá-lo encontrariam um menino muito menor que ele cercado de água como guri mijão. Mas há também o choro sem lágrima que é choro para dentro. A gente fica encharcado de água e ninguém se dá conta.          

Ele não conhecia o mundo, mas o mundo também não o conhecia. O mundo dele era muito reduzido, só as histórias tinham outro mundo maior. No mundo que ele conhecia nunca tinha visto um morto. Velório era uma palavra sussurrada e como todas as palavras sussurradas, uma palavra proibida. Então ele pensava que velório era uma reunião de mortos. Quando o levaram ao velório da mãe, muitos mortos vieram chorar em cima dele. Outros mortos o abraçavam. Existiam alguns mortos que diziam, mas tão criança ainda e tão órfão. O pai havia morrido de outra morte: nunca existira. O pai estava dentro dele como um espermatozóide, no resto o pai nasceu para ele morto. E a família da mãe morava no Rio de Janeiro. Ela tinha na sala um pôster do Pão de Açúcar, então ele achava que no Rio de Janeiro todo mundo morava no Pão de Açúcar. Não gostou do velório. Primeiro, porque a mãe era a única morta que não se movia, não chorava, não lhe dava pêsames e não lhe dizia coitado mas tão pequeno e tão órfão.

            A mãe tinha a pobreza dentro dela. A mãe ficou órfã do marido logo no primeiro ano de sofrimento junto. Sofrer junto não é prova de amor, é prova de matemática. Um sofrimento mais um sofrimento igual a dois sofrimentos. A mãe foi parar no interior do sofrimento. O sofrimento tinha prefeito, ruas asfaltadas e duas mil almas. Ele ouvia falar que uma cidade tinha duas mil almas e pensava que a cidade era um grande cemitério.

A mãe era pequena, mas a dor não se pergunta, para doer, se o corpo é pequeno ou grande. A dor tem seu tamanho independente do tamanho do corpo em que se hospeda. A professora se comprometeu com o prefeito de levá-lo para uma cidade com sete milhões de almas que era o Rio de Janeiro. Ela ia fazer um curso pela prefeitura e deixá-lo na casa de parentes, também pobres, também pequenos, também cheios de dores. Ela ia deixá-lo na casa dos parentes da mãe.

            Ele só tinha viajado da casa dele até a escola. Agora a viagem para outra escola demorava dias. Os homens não deviam fazer viagens de dias. É sempre bom não sair de casa. A professora pegou a mão dele e ia levar a mão dele para dar para a outra mão.  

            A mãe tinha se perdido dela mesma. Essa é a pior maneira de se perder, porque não adianta que os outros nos encontrem. A mãe abandonou a família e foi viver o grande amor. Mas o grande amor, que seria o pai, não sabia que ele era o grande amor. O pai tocava flauta. Certa vez ele viu um sujeito tocando flauta na praça e ficou do lado dele. Foi a primeira vez que teve pai. Uma hora lá o flautista parou e perguntou: Quer um sanduíche? O pai nunca perguntou se ele queria um sanduíche porque o pai não tinha cara. E ninguém pode perguntar coisas para os outros se não tem cara.

            Ninguém sabe se a flauta do pai morreu. Ninguém sabe do que foi feito da flauta do pai.

            Teve medo foi dos corredores. E das muitas portas dos corredores. Atrás de cada porta tem uma história. A história dele, por exemplo, tinha uma porta. Os dois, a professora e o menino, já tinha batido em várias portas. Havia a porta do tio dele que morava na Rocinha e a professora não queria levá-lo lá. Havia a porta da favela do Jacarezinho mas a professora não queria saber daquela porta para ele. Ela tinha em mente a porta da tia Paula que era uma porta de cabeça de porco. O edifício era uma cidade espichada. Uma meio favela espichada. Havia porta que estava aberta e via-se lá dentro uma pobreza de interior. Subiram várias escadas porque não havia elevador. Havia porta para o elevador mas não havia elevador.

            Ele não queria entrar naquela casa. A professora é que o botou lá dentro. A mulher disse que d. Paula não estava porque d. Paula era manicure e estava no trabalho. Ele não sabia a profissão da mãe. Ela tinha duas profissões. A primeira profissão da mãe era ser mãe dele. A segunda profissão da mãe era existir. A mãe não saía para o trabalho. Ela acordava e já estava de expediente. Não é fácil você ter a vida como profissão. Ele não sabia de que a mãe morreu. Ela foi ficando cada vez menor, foi perdendo a voz e quando um dia o menino acordou a mãe tinha se demitido da vida.

            Ele tinha visto poucos rostos na vida. Entre a casa e a escola havia poucos rostos. Ele não imaginava que se podia ver tantos rostos num só dia. Já estava tonto de ver a cidade giratória, porque o Rio de Janeiro, de dentro de um ônibus, é uma cidade de parque de diversões. Ele não tinha entrado num ônibus. Tinha entrado num trem-fantasma ou num cinema. A janela do ônibus era uma telinha de televisão – a televisão mesmo ele nunca tinha visto ela antes, a televisão – e em vez de passar uma história passava era prédio, prédio, prédio e rosto rosto rosto.

            Não tinha nenhum sentimento pela mulher. Nem ódio, nem simpatia. A mulher era um objeto a mais na casa. A única diferença é que o objeto respirava, andava, ofegava e olhava com os olhos miúdos de quem recua. A penumbra já é os óculos escuros da natureza, mas a professora não tivera os óculos escuros dela porque os óculos eram escuro mas eram de grau. Se ela clareasse as vistas, corria o perigo de ver embaçado. Então a dúvida dela era se via fora de foco ou se via tudo em preto e branco, mais para preto que para branco. Ele queria que professora fosse sua mãe. A pobreza da professora era instruída e ela sabia quais estados o rio São Francisco cortava. Uma mulher que sabe quais estados o rio São Francisco corre é uma mulher que não abandona criança nem passa fome na vida. Mas a professora não podia ficar com ele porque tinha uma cambada de filhos que necessitavam dos conhecimentos dela do rio São Francisco. E havia lei, e havia a família da mãe que, por ordem do juizado de menores, ele deveria ser entregue, no escuro, na penumbra, em preto e branco, uma família que não sabia por quais estados o rio São Francisco atravessava.

            Ele tinha ficado imobilizado. Não conseguia pegar o copo d’água que ela trouxera da cozinha. O copo também estava quente. Pensou que todas as coisas no Rio fossem quentes. A cabeça das pessoas, as pernas das pessoas, as emoções das pessoas. A mãe tinha mais temperatura que as outras pessoas. No povoado em que moravam, de madrugada havia um vento peregrino e estrangeiro que passava desavisado pela cidade. Aquilo não deveria ser a rota daquele vento frio. A mãe dizia que era o demônio. A mãe achava o demônio até mesmo dentro de um copo com água fria. Ele se perguntava como o demônio, que vinha dos infernos, podia ser frio. Imaginava um inferno polar, os mortos condenados não ao fogo eterno, mas ao frio eterno. Perdeu a sede? – a mulher perguntou. Tomou a água mais para que tudo fizesse sentido. Ele pedira água porque tinha sede, logo deveria tomar o copo d’água para matar a sede. Essa era a lógica do mundo e ele tinha que seguir a lógica do mundo. Não poderia beber água sem ter sede, segurar o copo sem ter pedido água, sentir calor e a boca seca e dizer que tinha sede. O mundo é feito de ações encadeadas e naquele momento as ações estavam difusas e desencadeadas como um trem que não pudesse, mesmo com trilho, fazer vagão puxar vagão.

            Saíram dali mais perto do chão. Ele não tinha percebido que a gente cresce e diminui várias vezes durante o dia. Ao entrar na casa da mulher, tinha um tamanho; ao sair de lá, o chão estava tão perto que podia ver as imperfeições de todos os chãos. Nada mais descontínuo, diverso e imperfeito que o chão. Ele pensava que nasceu para viver no chão. Que sua vida sempre foi no chão e que não passaria do chão. Tinha mesmo a sensação de que o chão e ele eram aparentados e que só não poderia dizer que o chão o pariu porque conheceu a mãe que era outra espécie de chão. A professora apertava tanto sua mão que não percebia a manopla que lhe torcia os dedos. Não se importava de a professora apertar seus dedos porque todo o corpo estava apertado como se tivesse sido tomado por uma gigantesca e constritora manopla. Tudo lhe doía, todos os ossos doíam, porém o que mais o imprensava, constringia, triturava era o chão cheio de impurezas que atapetou definitivamente seus pensamentos.

            A mulher disse que não era a mulher. Ela era outra mulher. Ela era apenas uma mulher de limpeza. Mesmo sendo criança, achou estranho alguém tão pobre ter alguém mais pobre para limpar a pobreza dela. A mulher via o mundo sujo. Tudo o que tinha diante dela era sujeira. O papel dela no mundo, desde que se entendia por gente, era limpar o mundo. E limpar o mundo não era fácil porque as pessoas nunca estavam contentes com o trabalho dela de limpar o mundo. Ela disse que a mulher sua tia não sabia quando voltaria. Como não sabia? Havia viajado a trabalho. A professora estranhou porque pobre não viaja a trabalho. Mas a mulher que limpava a casa da tia e limpava o mundo desde que se entendeu por gente – e gente pobre ainda por cima – disse que a tia trabalhava limpando trem. Ela limpava a casa de minha tia. Minha tia limpava o trem que os passageiros sujavam – e como sujavam. Mas ela não era manicure? Falta de trabalho. O mundo se dividia assim. Os que sujavam o mundo e os que limpavam o mundo. Na maioria das vezes os que sujavam o mundo eram os mesmos que limpavam o mundo.

            Quantos anos alongaram sua cara, furaram o rosto, torceram o nariz, deram mais beiço ao beiço? A penumbra nunca o largou. Já nasceu com a penumbra. A pele mesmo é alvo da penumbra. Seus olhos só alcançam a penumbra. Agora ela está ali, frente à penumbra, para retornar de onde vieram. O tempo não conta por anos, mas por penumbras. A penumbra é uma espécie de sujeira do tempo que não se pode remover. Uma sujeira abjeta, feita da mesma matéria volátil que é o ar, embora possa aprisionar o ar e não aprisionar o tempo. Não o preocupa o tempo. Pensa nele como um homem acuado, que tem apenas seis balas para a sua arma. Nasceu apenas com seis balas, não sabe quantas deflagrou e quantas lhe restam. Mas não se ilude. Não passará da sua munição que trouxe ao mundo ao nascer. A vida é mais ou menos isso: um revólver inútil que ao fim ficará sem munição e só servirá para dar o tiro final que é a morte. Ela está lá, olhando pela janela, trinta anos depois da visita que fez a ela e ela negou ser ela. Nunca foi empregada de trem. Nunca foi empregada doméstica. Negou ser sua tia Paula. Eh, bem. Agora que ganhou a vida feito um cão – os cães morrem sem consciência de que vivem e de que morrem, mas como todo bicho tem a suspeita de sobreviver – agora ele poderia dizer que não morava ali, que trabalhava na Rede Ferroviária e que limpava os trens e que era apenas um empregado doméstico. Ele mesmo não sabia onde estava nem quando chegaria. Mas não. Acolheu quem não o acolheu. Cuidava de quem não o cuidou. Deu a última luz à última penumbra dela. Ela nem sabe que existe, como cão que só reconhece sua existência quando o coração dispara de medo.

            É como se ele negasse que fosse o sobrinho dela. Ela agora não tinha mais família, porque os desmemoriados pertencem à linhagem dos mortos. O que nos faz vivo é a memória e sem ela somos corpos que qualquer um pode ser dono. Quem era dono dele era sua memória. A tia não sabia que a vida era uma espiral, não um círculo, mas algo que roda, roda e roda e nunca termina como se fosse uma água contínua a descer pelo ralo. A memória da tia era um ralo, não conseguia reter a água do passado. Não se lembrava que quem cuidava dela hoje foi quem ela negou. Hoje quem toma conta dela é um desconhecido. Um homem que não pertence à família dos mortos. Os mortos não têm parentes. Ou melhor, o único parente dos mortos são os mortos que fazem a grande família dos mortos. Escurece. Há muito que escureceu no pensamento da tia e ela não se lembrava do dia em que se passou por empregada para não ficar com a tutela dele. Foi tutelado pela vida. A vida não é um bom pai, a vida não é uma boa mãe. A vida pertence à família dos órfãos. Somos todos órfãos. A grande família dos vivos é composta de órfãos.




Suplemento Cultural do Estado de Pernambuco nº 102