quinta-feira, 31 de março de 2022

A chuva



Caso morra, estarei barbeado e limpo,
como quem se higieniza para o amor
– não que a morte seja rito,
embora deva ser engravatada
e sonolenta como o morto se veste a rigor.
A rigor, a morte é higiênica.

Tua morte não aguda,
perpendicular,
garoa que perseguisse
o clima aziago do coração:
morte permanente e múltipla
a morte tem suas manias,
e o morto a idiossincrasia
de viver na memória dos outros
como uma chuva
que chovesse sem molhar.


(do livro Eterno Passageiro, Ed. Varanda, Brasília, 2004)

imagem retirada da internet: chuva

quarta-feira, 30 de março de 2022

Brincadeiras, poema RCF

 



 

 

A alegria é de couro,

o sonho é de lata,

o enlevo é de plástico.

 

O cavalinho monta montanhas.

A tabuada contou

histórias de números.

No circo perto de casa,

o trapézio balançava

meu medo noturno.

 

Aprendi a ler

a gramática das plantas,

o alfabeto dos pássaros,

embora fosse analfabeto de como ser filho.

 

As madeiras surdas e mudas

só sabiam interrogar

com o braile dos cogumelos.



terça-feira, 29 de março de 2022

Réquiem do domingo, poema RCF










Resultado de imagem para radu belcin
 













Domingo se abrirá 
feito um féretro 
que cruza uma sala.
Meus pensamentos
começam a ter escamas
e salgam a palavra.
O único saber necessário
é viver.
O modo silencioso 
de os móveis morrerem.
As emoções desviantes 
pingam rumores no sofá.





( do livro Matadouro de vozes, 2018)