sábado, 19 de setembro de 2015

Otto Lara Resende por Fábio Coutinho





Em noite de estrepitosa confraternização etílica entre as mesas do Antonio's, no Leblon dos anos de 1970, alguém se aproxima do ouvido de um dos mais exaltados convivas e cochicha: Otto, você está falando alto demais, se houver informante da repressão por aí, você se ferra. Num rompante que misturou sofisticado bom humor e uma calculada dose (sem trocadilho) de ousadia, Otto Lara Resende subiu na cadeira e proclamou, alto e bom som: Digo e repito para quem quiser ouvir: a ditadura militar é o maior atraso do Brasil, tem de acabar e vai cair. Se algum dedo-duro estiver presente, pode anotar: meu nome é Fernando Sabino!

Sabino formava, com Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, o trio de amigos inseparáveis de Otto, os quatro cavaleiros do apocalipse mineiro, todos saídos de Belo Horizonte na década de 1940 e radicados no Rio, desde então. Mas Otto teve dezenas, talvez centenas, de outros amigos, quase todos fascinados pela conversa a um tempo solta, divertida e invariavelmente culta e bem informada do grande "causeur". Nelson Rodrigues, um desses admiradores, chegou a agregar um apêndice ao título de uma de suas peças mais célebres: "Bonitinha mas ordinária, ou Otto Lara Resende".

Jornalista, funcionário público, diretor de banco e da revista Manchete, romancista de concisão machadiana e força dostoievskiana, como fica patente no poderoso e estranho O BRAÇO DIREITO, Otto foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1979, numa disputa acirrada. O resultado, porém, foi celebrado em festa memorável, como se fora a vitória de um candidato popular, com torcida e tudo.

Nascido em São João del-Rei em 1º de maio de 1922, Otto Lara Resende trabalhou durante meio século, vindo a falecer poucos dias após o Natal de 1992, aos setenta anos de idade, depois de se submeter a uma cirurgia de coluna. Sua partida, no auge do prestígio como colunista da Folha de São Paulo, foi um choque, uma trombada de frente sofrida por milhares de leitores, antigos e novos, idosos e jovens, pessoas que se haviam acostumado, nos dois últimos anos, a encontrar, naquele pequeno espaço da página dois do jornal, um texto saboroso sobre os mais diversos assuntos do cotidiano, a crônica de um autêntico mestre do gênero.

Agora, em cuidadosa edição da Companhia das Letras, organizada por outro craque mineiro, Humberto Werneck, as colunas da Folha são reeditadas, com o título da primeira delas, datada de 1º de maio de 1991, BOM DIA PARA NASCER. É leitura na categoria das imperdíveis, livro para estar na pasta, ou na bolsa, dos leitores, e abrir em qualquer página, com garantia de satisfação ética e estética. No marco dos 90 anos do nascimento de Otto Lara Resende, fomos todos vivamente presenteados.




Fabio de Sousa Coutinho é membro titular do PEN Clube do Brasil e Presidente da Associação Nacional de Escritores (ANE).

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Franceses e portugueses no Maranhão em forma de jornal



NOTÍCIAS DO MARANHÃO


FRANCESES CONSTROEM FORTE


 São Luís – Os senhores de Rasilly e de la Ravardière comunicaram ontem que estão dispostos a construir um forte, tanto para a segurança dos franceses como para a defesa do país. Escolheram um belo sítio, muito indicado para esse fim por se achar numa alta elevação e na ponta  de um rochedo inacessível e mais elevado do que todos os outros. O padre capuchino Claude d’Abbeville declarou que de lá se descortina “uma bela vista”.  O padre d’Abbeville ainda acrescentou que “assim entrincheirado, formando um baluarte do lado da terra, o forte se torna inconquistável e tanto mais forte quanto cercado quase por completo por dois rios muito profundos e largos que desembocam no mar ao pé do dito rochedo”.
 O padre Claude d’Abbeville veio acompanhando a missão francesa na conquista da França Equinocial. Na edificação do forte, trabalham não apenas os franceses, mas também os índios. Para melhor acomodação dos franceses, os índios construíram cabanas. Os índios têm mestria na construção desses abrigos. “Em pouco tempo construíram os índios várias cabanas, de um e dois andares, e mais um grande armazém para o qual transportaram, eles próprios, toda a carga de nossos navios”, admirou-se o padre d’Abbeville.
 O forte irá abrigar os franceses. Os que não quiserem ficar residindo no Forte podem morar nas aldeias. Inclusive hospedando-se com os índios que os haviam convidado.
O padre Claude d’Abbeville relatou-nos ainda que “junto ao forte há uma grande praça tão cômoda quão admirável. Nela se encontram belas fontes e regatos, que são a alma de uma cidade, existindo também todas as comodidades desejadas, como sejam paus, pedras, barro e outros materiais que tornam a construção barata”.




CARNE HUMANA NA GRELHA

 A carne humana é comida pelos homens de maneira esfomeada e mais ainda pelas mulheres. Quanto às velhas, se pudessem se embriagar de carne humana de bom grado o fariam. Não é por prazer propriamente que as leva a comer tais petiscos, pois de muitos ouvi dizer que não raro a vomitam depois de comer. A afirmação é do padre Claude d’Abbeville que relata o canibalismo entre os tupinambás. Ontem o padre Claude d’Abbeville deu-nos a seguinte entrevista:
Entrevistador: O senhor poderia nos contar como é o ritual de canibalismo que existe aqui na ilha de São Luís?
Claude d’Abbeville: São prisioneiros. Alguns são bem-tratados e chegam mesmo a se casar com mulheres da tribo. As velhas são as que os recebem com maior alegria.  Se entre os prisioneiros há velhos, comem-nos antes que emagreçam; quanto aos jovens, libertam-nos e os alimentam muito bem para que engordem; e dão-lhes suas filhas e irmãs por mulheres. Embora lhes seja possível fugir, à vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de sabem que serão mortos e comidos dentro em pouco. Matam os mais gordos quando lhes dá na telha por ocasião de qualquer festividade ou cauim.
Entrevistador: O senhor já ouviu histórias sobre os prisioneiros que fogem?
Claude d’Abbeville: Ao prisioneiro geralmente é dado o direito, vamos chamar assim, de fugir. Um ou dois meses antes de matá-lo, amarram-no. Deixam os ferros dos pés soltos e gritam para o prisioneiro: ecoain, foge. Os índios correm atrás, como cães correm atrás de um veado, e em poucos instantes está de novo preso o desgraçado. Para não parecerem cruéis, dão-lhe comida e bebida à vontade. O ritual é longo, acompanhado de cantos, comida e bebida. Depois de muito folgarem e de se divertirem à custa do desgraçado durante dois ou três dias sem interrupção, ele é morto com uma ou duas cacetadas atrás da orelha que lhe quebram a cabeça e fazem cair os miolos no chão.
Entrevistador: E depois, padre, o que fazem com o prisioneiro, ou seja, de que maneira, desculpe a expressão, ele é consumido?
Claude d’Abbeville: Lançam o prisioneiro no fogo para queimar os pêlos. Lavam depois com água quente. Depois de bem limpo e alvo, abrem-lhe o ventre e retiram-lhe as entranhas. Cortam-no em seguido em pedaços e moqueiam ou assam-no. Para isso usam uma espécie de grelha de madeira a que dão o nome de bucan, moquém. Essa grelha é formada de quatro forquilhas de madeira, da grossura de uma perna, fincadas no chão em forma de quadrado ou retângulo e sobre as quais se colocam duas varas com outras menores atravessadas e próximas umas das outras. Colocam os pedaços do pobre corpo estraçalhado, inclusive as entranhas, ficando o resto para o caldo. Tudo bem cozido e assado, comem os bárbaros essa carne humana com incrível apetite.




FRANCÊS CONFESSA O PROJETO DA FRANÇA EQUINOCIAL

 São Luís – Urgente – Fontes fidedignas dão conta dos depoimentos dos franceses derrotados pelas tropas do exército lusitano de Jerônimo de Alburquerque. Segundo autoridades do agrupamento português, todos os detidos para interrogatório chegaram a bordo do Régent, ou seja, passaram apenas cinco meses no Maranhão. O primeiro depoimento foi tomado a Étienne Marechal, normando, da cidade de Honfleur. Étienne confessou que o navio transportava para o Maranhão colonos, entre os quais carpinteiros, serralheiros, entalhadores de pedra, pedreiros, sapateiros e alfaiates, enfim todos os ofícios para a criação de uma grande população. O risco de Portugal perder o Maranhão para os franceses e aqui ser criada a França Equinocial foi grande. Todos os detidos dão conta dos instrumentos de guerra como peças de artilharia em grande número. Os franceses vieram armados até os dentes em suas embarcações bélicas. Noël de la Motte, dos arredores de Rouen, tecelão, depôs sobre o transporte farto de mercadorias assaltadas das terras maranhenses como pau-amarelo, algodão, pimenta e fumo. Binart, tambor de companhia do senhor du Pratz, confessa que, além de artesãos e militares, vieram nobres que morreram como os senhores de Pézieux, de Longeville, de la Prairie, de Rochefort, de Petressy, de Croisilly, filho do tesoureiro do Languedoc, Menoux, de Rouen, e de Jumbarville, da Picardia, entre outros mais. Caso os franceses não fossem derrotados pelos frequentes enfrentamentos, por certo criariam aqui, todos concordam, um reino de França nos trópicos. Nossos índios falariam francês e Portugal teria que conviver com um enclave revolucionário, cujas consequências imprevisíveis poderiam causar a povoação de todo o território brasileiro. 




FRANCÊS E PORTUGUÊS TRAVAM BATALHA DECISIVA

São Luís – Ontem foi travada a batalha de Guaxenduba, que pode representar o fim dos enfrentamentos entre franceses e portugueses. La Ravardière chegou pessoalmente com sete navios, mais de 50 canoas, 400 franceses e, segundo as diferentes testemunhas, 1500, 2000 ou 4000 tupinambás. Seu plano era desembarcar as três companhias, cada uma com 60 homens, comandados por de Pézieux, du Pratz e pelo cavaleiro de Razilly, irmão de François que partira para a França. Auxiliados pelos índios, elas deviam se entrincheirar antes do alvorecer, mantendo-se perto de um riacho a uns cem passos do forte português. À frente de 80 homens e de seus marinheiros, La Ravardière devia bombardear o forte de dentro de seus sete navios para, em seguida, tendo em vista a superioridade de suas forças, exigir a rendição de Albuquerque antes de desembarcar com suas reservas.
 A primeira companhia que foi vista saltando a terra foi a de du Pratz, seguida por de Pézieux que, desejando também atribuir-se as glórias, jogou-se n’água cedo demais com seus homens, o que fez com que muitos molhassem as bombas de pólvora. Mas os índios, vendo-os se debater na água, também empurraram suas canoas para a margem e, com seus gritos agudos, logo transformaram a praia num inferno. Após breve troca de tiros, Diogo de Campos alertou o forte. Albuquerque mandou servir um copo de vinho e um punhado de biscoitos a seus homens antes que ele se engajassem por uma trilha afastada a fim de surpreender o inimigo pela retaguarda, pelo flanco da colina.
 Os índios e os franceses, sob as ordens do senhor de Canonville, construíam um entrincheiramento diante do forte, de modo que pudessem circular protegidos, da praia até a mata. A idéia de Albuquerque de tomar a iniciativa antes que as obras tivessem se concluído foi genial. Ele avançou na mata, enquanto Diogo de Campos, acompanhado por um filho do general, um rapaz de 20 anos de sua companhia, pelo chefe Mandiocopã e por seus tabajaras, apanhava facilmente os que chegavam. Os franceses tinham em mente atacar o forte que estava apenas ocupado por inválidos e doentes, enquanto que os portugueses atocaiavam os franceses pela retaguarda, sem toque de tambor nem bandeira.
 A luta foi cruel e talvez definitiva. Esperemos os próximos acontecimentos. Mas a percepção deste jornal é que a batalha se configura o começo do fim de La Ravardière. Logo de início, o nobre De Pézieux foi morto na primeira fileira. Era um sinal inequívoco da derrocada francesa. O combate durou menos de uma hora e prolongou-se n’água. Os soldados franceses, com botas de cano alto, inapropriadas para aquele tipo de combate na água e na lama, vestiam também meias e calças de tecidos grossos que ficavam pesados por causa da água, revelou uma testemunha. Os franceses acabavam atolados e mortos pelos portugueses e índios aliados.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

História dos fundadores do Império, Otávio Tarquínio de Sousa


             Estes volumes apresentam o percurso das figuras mais emblemáticas que lançaram as pedras fundamentais da nação moderna e afirmaram a nossa nacionalidade. Ao mesmo tempo, com rigor científico, Otávio Tarquínio de Sousa analisa o espírito da época, numa preciosa reconstituição da cena em que seus protagonistas se movem.

“História calcada nos arquivos do tempo, afinada à melhor teoria contemporânea”, assim Carlos Drummond de Andrade classificou a obra de Otávio Tarquínio de Sousa. Escritor e historiador, além de ocupar cargos públicos como ministro do Tribunal de Contas, Otávio Tarquínio de Sousa dirigiu a “Coleção Documentos Brasileiros”, da Editora José Olympio, e colaborou com vários jornais como A Noite, O Estado de São Paulo e Tribuna da Imprensa. Como pesquisador publicou A mentalidade da Constituinte e Fatos e personagens em torno de um regime. Contudo, História dos fundadores do Império constitui sua obra principal e um dos pontos altos da historiografia brasileira.

 



Volumes que compõem esta coleção:

Volume 1 – José Bonifácio

Volume 2 – A vida de D. Pedro I (3 tomos)

Volume 3 – Bernardo Pereira de Vasconcelos

Volume 4 – Evaristo da Veiga

Volume 5 – Diogo Feijó


Publicados pelo Conselho Editorial do Senado, 2015
http://livraria.senado.gov.br/historia-dos-fundadores-do-imperio-do-brasil-volume-i-jose-bonifacio-646.html

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Conta-me outra vez, poema da espanhola Amalia Bautista



Conta-me outra vez, é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-la.
Repete-me outra vez que o casal
da história foi feliz até morrer,
que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer
lhe ocorreu enganá-la. E não esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam os beijos todas as noites.
Conta-me mais mil vezes, por favor:
é a história mais bela que conheço.

(De Cuéntamelo otra vez)

tradução.rcf
imagem retirada da internet: chagall

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Descompasso, Paulo Paniago

casal



ela agarrou o sujeito pelas orelhas e gritou que o amava. desesperadamente, acrescentou.

mas ele só conseguia pensar na dor de orelha.


 

José Bonifácio, o perfil do Patriarca



HISTÓRIA




                                   Adelto Gonçalves


 Considerado o personagem mais influente da História do Brasil no começo do século XIX, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) foi figura-chave nas tratativas políticas que levaram à separação do Brasil de Portugal em 1822, a ponto de hoje ser mais conhecido como o Patriarca da Independência. Filho de uma família oligarca estabelecida na vila de Santos, teve educação esmerada e alcançou em Portugal postos que poucas pessoas nascidas no Reino alcançaram, antes de retornar ao Brasil disposto a gozar de uma merecida aposentadoria, plano que teve de adiar depois de engolfado pelos acontecimentos que se sucediam à grande velocidade, primeiro na capitania de São Paulo, e depois na Corte, no Rio de Janeiro.
 É essa brilhante trajetória que a professora Miriam Dolhnikoff reconstrói em José Bonifácio, 12º livro da Coleção Perfis Brasileiros da Companhia das Letras, depois de consulta às principais obras impressas que reúnem não só os discursos e papéis soltos do influente brasileiro como aquelas que mais recentemente serviram para jorrar mais à luz ao contexto histórico em que se deu a independência brasileira. Embora tenha sido membro da Academia das Ciências de Lisboa, José Bonifácio escreveu poucos livros, um de poesia, quando no exílio, e obras técnicas.
 Mas, ao contrário dos políticos brasileiros de hoje – em boa parte, iletrados e até mesmo apedeutas –, preparou-se a vida inteira para ocupar postos importantes no reino luso-brasileiro. Mineralogista, foi um homem de seu tempo, ou seja, um cientista que, como era habitual na época, transitava pelos vários ramos do saber. Por isso, além de estudar as matérias de sua especialidade, lia vorazmente autores clássicos e contemporâneos de filosofia, história, política e economia, como assinala a sua biógrafa.
     II
 Depois de enviado pela família para estudar em Coimbra, José Bonifácio construiria sua carreira no Reino, só retornando ao Brasil na idade madura. Em 1804, aos 41 anos, já se considerava desiludido com os rumos de Portugal e do Brasil, sem poder colocar em prática os conhecimentos que obtivera em viagens de estudos pela Europa pagas pelo próprio governo, por causa das redes burocráticas da monarquia absolutista que impediam qualquer tentativa de modernização. Como destaca Miriam Dolhnikoff, para ele, o problema não estava apenas no governo, mas também no povo nos dois lados do Atlântico, que reputava vil e ignorante. Foi o que deixou escrito. Também o anticlericalismo foi um aspecto marcante em seu pensamento. Para ele, a Igreja era sinônimo de obscurantismo, dogmatismo e atraso cultural. Sem contar que havia sido sempre um ponto de apoio para aqueles que defendiam o regime da escravidão, sistema que considerava responsável pelo atraso da colônia.
 Parece que a ideia de se dedicar ao seu sítio nos Outeirinhos, em Santos, era apenas um discurso para o público externo, pois há documentos em que ele pleiteia do governo a indicação para capitão-general e governador, primeiro, de Santa Catarina e, depois de São Paulo, propósitos que nunca alcançou. Mas o melhor do livro, obviamente, é a parte reservada a sua participação na separação. De início, a historiadora lembra que, como pesquisas mais recentes já têm adiantado, a proclamação da Independência não pode mais ser atribuída a uma possível intenção das Cortes de recolonizar o Brasil. O que estava em jogo era o perfil que teria a nova monarquia constitucional. De um lado, os americanos queriam autonomia para defender seus interesses específicos, enquanto, de outro, os portugueses queriam uma monarquia centralizada em Lisboa. Até porque estavam cansados de viver como colônia da antiga colônia, como se lê no manifesto dos rebeldes do Porto de fevereiro de 1821, exigindo o retorno de d. João a Portugal.
 A autora mostra muito bem como José Bonifácio, três anos depois de fazer uma eloquente defesa da monarquia absolutista, soube aderir à monarquia constitucional e preconizar, ao mesmo tempo, um governo forte, a uma época em que a América portuguesa podia seguir o caminho dos vizinhos espanhóis, cindindo-se em várias nações sob governos republicanos. Em outras palavras: defendia poderes suficientes nas mãos de D. Pedro I para “centralizar a União e prevenir desordens”. Naturalmente, esses poderes acabariam por cair também em suas mãos, já que seria o principal ministro do novo imperador. E deles se utilizou ao dirigir um processo que privilegiava a mudança com ordem.
 No poder, para construir a nova nação, teria muito trabalho com a oposição política, até mesmo por causa da personalidade dúbia de D. Pedro I. Contaria com o apoio de seus irmãos, Antônio Carlos e Martim Francisco, e outros amigos leais. Finalmente, D. Pedro I cederia à oposição, inconformada com os poderes excessivos do ministro, estimulando a saída de José Bonifácio do governo. José Bonifácio deixou escrito que sua queda teria sido articulada pelo próprio imperador.
 Os acontecimentos iriam se agravar até que vieram o fechamento da Assembleia Constituinte e a decretação da pena de deportação para alguns deputados, entre eles os irmãos Andradas. Em novembro de 1823, José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos foram presos e condenados ao exílio.
     III
 Se algo se pode acrescentar – o que não significa qualquer reparo à obra –, é para ressaltar que a força política da família Andrada vinha desde o começo da segunda metade do século XVIII e alcançou o seu auge, obviamente, às vésperas de 1822, indo até 1823. Um exemplo é a atuação de Antônio Carlos, irmão de José Bonifácio, que, como rebento da oligarquia, escapou de punições severas de que, fosse ele filho de uma família mais humilde, nunca teria escapado.
 É de lembrar que Antônio Carlos e seu irmão Martim Francisco, enquanto José Bonifácio permanecia em Lisboa, andaram às turras com o governador da capitania de São Paulo, Franca e Horta. Em outubro de 1806, sendo Antônio Carlos juiz de fora da vila de Santos, sua mãe Maria Bárbara pediu explicitamente ao príncipe regente o afastamento do governador, acusando-o de ter prejudicado os negócios de sua família. Depois, em 1811, quando já estava afastado do cargo de juiz de fora, Antônio Carlos seria acusado de mandante do assassinato do comerciante José Joaquim da Cunha. Quem fez a acusação foi a viúva, D. Bárbara Emília, que assistira, em sua própria morada, em Santos, à morte do marido por embuçados armados.
 A devassa aberta nada apurou contra Antônio Carlos, que a essa altura já estava nomeado ouvidor da capitania de São Paulo. Mulher de posses, D. Bárbara mudou-se para o Rio de Janeiro e pediu ao príncipe regente a abertura de nova devassa, argumentando que a primeira havia sido um jogo de cartas marcadas. Afinal, o novo juiz de fora, João Carlos Leal, responsável pelas investigações, seria amigo de Antônio Carlos, tendo inclusive sido hóspede na casa do antecessor. Já o ouvidor da capitania, Miguel Antônio de Azevedo Veiga, não quis, a princípio, fazer a devassa, dando-se por suspeito porque iria julgar o seu sucessor e só o fez depois que recebeu ordem régia. Haja esprit de corps...
 Já Antônio Carlos preferiu homiziar-se na freguesia de São Gonçalo da Praia Grande de Niterói, valendo-se de suas ligações com os meios maçônicos. Nada ficaria provado contra si, mas Antônio Carlos não assumiria o cargo de ouvidor. Ainda assim, acabaria por ser indicado para auditor de guerra em São Paulo. Em 1815, depois de injunções da família, seria nomeado ouvidor da comarca de Olinda, na capitania de Pernambuco.
 Dois anos depois, no cargo, iria aderir a uma rebelião contra o governador e capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro. Os revoltosos implantaram um governo provisório, proclamando uma república de inspiração maçônica. No entanto, 74 dias depois, o governo revolucionário entraria em crise e cairia, depois do bloqueio do Recife por tropas enviadas do Rio de Janeiro. Antônio Carlos foi preso e encaminhado para a Bahia. No cárcere, sofreria torturas. Como defesa, alegaria que havia sido constrangido a aderir à sedição. Parece que assim evitou o pior: os demais acusados seriam enforcados e teriam mãos e cabeças decepadas.
 Ficaria preso na Bahia até 1821, quando foi libertado pelo governo imperial, provavelmente por influência de José Bonifácio, que havia retornado de Portugal ao final de 1819. E, em fevereiro de 1822, Antônio Carlos chegaria a Lisboa como representante da província de São Paulo às Cortes. Como explicar tamanha reviravolta na vida de um acusado de sedição? Só mesmo o poder e a influência de sua família e, mais especificamente, de seu irmão poderiam oferecer uma explicação plausível, já que para os rebentos da oligarquia tudo – ou quase tudo – seria permitido. Ou pelo menos para alguns desses rebentos. Guardadas as devidas distâncias e circunstâncias, ainda hoje é assim.
 Infelizmente, o perfil de José Bonifácio traçado por Miriam Dolhnikoff pouco acrescenta a esse episódio. Por isso, fica aqui a sugestão para algum pesquisador que esteja disposto a vasculhar os documentos da época e aprofundar a questão. As informações que este articulista colocou aqui neste tópico foram tiradas de documentos manuscritos da capitania de São Paulo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa, que também podem ser encontrados em microfilmes e CD-Rom no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP).
     IV
 Miriam Dolhnikoff , formada em Direito e História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, é mestre e doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), onde é professora. Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é autora de O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil (São Paulo, Editora Globo, 2005) e organizadora dos textos de José Bonifácio de Andrada e Silva reunidos em Projetos para o Brasil (1998), publicado pela Companhia das Letras.
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JOSÉ BONIFÁCIO, de Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras, 360 págs., R$ 44,50, 2012. Site: www.companhiadasletras.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br



segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O sentimento de açorianidade


                                                                        Adelto Gonçalves (*)
                                                           I
            Pouco estudada e conhecida, especialmente no Brasil, apesar dos muitos imigrantes que para as regiões Sul e Sudeste  vieram ao final do século XIX e na primeira metade do século XX, a literatura de temática açoriana ainda aguarda o surgimento de estudos teóricos e crítico-literários na universidade brasileira, embora não sejam raros os descendentes daqueles pioneiros – na maioria, analfabetos ou semialfabetizados – que já alcançaram os graus de mestre e doutor. No Brasil, destaca-se o romancista gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil (1945), professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e doutor em Letras, autor de Escritos Açorianos: a Viagem de Retorno – Tópicos acerca da Narrativa Açoriana pós-25 de Abril, ensaios (Lisboa, Salamandra, 2003) e de uma vasta obra que inclui outros livros, alguns publicados também em Portugal, Espanha e França.
            Na universidade portuguesa, obviamente, esse desconhecimento não é tão flagrante, mas, ainda assim, a bibliografia não é tão fértil como deveria. Um estudo recente que ameniza um pouco essa aridez é a tese de doutoramento “O conto literário de temática açoriana: a ilha, o mar e a emigração”, de Mónica Serpa Cabral, da Universidade de Aveiro, autora também de uma investigação de mestrado sobre a narrativa breve de João de Melo (1949), notável escritor nascido na ilha de São Miguel, autor de romances, ensaios, poemas, crônicas e de um livro de viagens, Açores, o Segredo das Ilhas (2000).
            Em texto de apresentação da tese de doutoramento publicado na Forma Breve – Revista de Literatura, do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, nº 8, dezembro de 2010, pp. 235-243, Mónica, nascida na ilha de São Miguel, observa que seu interesse pela realidade açoriana advém naturalmente de sua proximidade afetiva com o arquipélago, reforçada pela saudade provocada pela distância geográfica, já que reside há 13 anos no continente. Ao estudar o conto de temática açoriana, a autora diz que só nos anos 90 verificou-se um interesse maior pelo estudo do gênero em Portugal.
            Segundo a pesquisadora, certas narrativas açorianas alargam os contornos do conto, derrubam fronteiras e apropriam-se de muitos traços de outros gêneros e subgêneros, como a crônica jornalística, a crônica histórica, a narrativa de viagens, a novela, o poema em prosa, o quadro campesino, a autobiografia, a lenda, o mito, a fábula, o artigo de caráter científico, entre outros. Seja como for, diz a autora, a literatura dos Açores oferece uma visão particular do mundo e da sociedade, inconfundível com o modo de ser do português do continente, e que Vitorino Nemésio (1901-1978) definiu como açorianidade, um sentimento que vai além do simples bairrismo, daquela solidariedade que costuma unir aqueles que são oriundos de um mesmo lugar para constituir um estado de ser do homem açoriano, especialmente daquele que emigrou, mas preservou no coração o amor pelo lugar e sua gente.
            Para Mónica, como a literatura açoriana está em grande parte ligada ao mundo rural, mesmo quando a ação se desenrola em espaço citadino, esse ruralismo está associado à memória coletiva e à arte de contar. Nesse sentido, os escritores açorianos são guardiões da memória coletiva, contadores de histórias que mantêm intrínseca ligação com a oralidade.
                                                           II
        Em seu trabalho, que teve a orientação do professor António Manuel Ferreira, doutor em Literatura pela Universidade de Aveiro, a investigadora procurou apresentar uma visão histórica da narrativa açoriana, desde o final do século XIX até os dias de hoje, bem como dos principais autores, ainda que, como observa, a literatura no arquipélago exista desde a sua descoberta, pois data do século XVI a obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591). Segundo ela, até a Revolução de Abril de 1974, manteve-se certo conservadorismo temático na literatura açoriana, o que não se tem dado nos últimos anos, quando houve maior abertura a novas experiências literárias.
        Como a emigração é um acontecimento central na história dos Açores, não poderia deixar de estar presente na literatura. Por isso, Mónica dedica ao tema um capítulo de sua tese, o quinto. O ponto central da tese, porém, como observa a autora, está no fato de que a literatura açoriana, em especial o conto, apresenta “uma certa coesão feita de recorrências, sobretudo um modo açoriano de tratar essas recorrências, as quais estão intimamente ligadas à especificidade da vivência açoriana, marcada por um domínio espaciotemporal opresso e circular”.
            Na verdade, esta é a primeira vez que, em Portugal, estuda-se, numa tese de doutoramento, a evolução do conto de temática açoriana. Por isso, a autora não pode se prender ao estudo de um autor ou uma época, procurando oferecer uma visão panorâmica do gênero, destacando os seus grandes temas e imagens: a sensação de cárcere de quem vive em ilhas, o chamamento do horizonte, a partida, a errância, o apelo das raízes e, por fim, o regresso à casa. “Mesmo quando ainda residia na ilha, sentia a força das raízes e um amor muito profundo pela terra de origem, dois sentimentos que se intensificaram com a partida”, diz Mónica. “Por isso, tal como muitos escritores açorianos que abandonaram o arquipélago, encarei meu trabalho como uma forma de mitigar a distância e a saudade, um meio de sentir a ilha mais próxima de mim”, acrescenta.
                                                           III
            Em outro texto, “Entre o conto e a crônica: o estudo de narrativas de autores açorianos”, que também faz parte da edição nº 8 da revista Forma Breve, dedicada à crônica, Mónica Serpa Cabral estuda quatro autores açorianos praticantes desse gênero, Manuel Greaves (1878-1956), Daniel de Sá (1944), Manuel Ferreira (1916) e Dias de Melo (1925-2008). De Greaves e Sá, a investigadora diz que em Histórias que me contaram (1948) e Crônica do Despovoamento das Ilhas (e Outras Cartas de El-Rei) (1995), respectivamente, ambos aproximam os seus textos da realidade factual, explorando episódios da História dos Açores.
            “Assim, a realidade histórica confunde-se com a ficção e origina um misto de conto e crônica que não deixa o leitor marcar com exatidão a fronteira entre fato e ficção”, observa, acrescentando que, dos dois, Greaves é o que mais dá importância à ação, usando uma linguagem simples, sem grandes artifícios literários. Enfim, lembra, os textos de ambos contemplam aspectos regionais, nomeadamente a pronúncia, o léxico, os costumes e tradições, além de pormenores geográficos.
            Já em Manuel Ferreira a fonte de inspiração vem da realidade social e histórica insular e dos casos gravados na memória coletiva. Jornalista de profissão, diz a crítica, o escritor mostra preferência pela realidade factual, entrando, assim, no domínio da crônica. Mónica cita o conto “O alevante da isca”, do livro O Barco e o Sonho (1979), que é baseado num episódio verídico da história açoriana, em que a massa desfavorecida da cidade de Ponta Delgada se levanta contra a exploração e a ganância de um fiscal enviado de Lisboa, “um cão sem escrúpulos nem consciência, a governar-se à grande e à francesa, à coca e à custa do povo, entre rodadas de vinho e polvo na tasca do Simão, gabarola e cachaceiro – um rejeira de mil raios o partisse! (....)”.
            Em Cidade Cinzenta (1971) e Vinde e Vede (1979), de Dias de Melo, diz a investigadora, fica difícil identificar o gênero, o que a levou a chamar os textos de narrativas, que constituem mais reflexões de um narrador que deambula pela paisagem física, humana e social. São, portanto, textos híbridos que extrapolam os limites do conto e entram no domínio da crônica, define a autora.
            Um exemplo apontado pela estudiosa é o conto “Vinte contos em cinco minutos”, que fala de um personagem, o João Carroça, “homem de pé descalço” que fora enriquecendo ao longo do tempo e transformou-se num grande senhor, um respeitável burguês, que não hesita em explorar friamente um antigo companheiro dos dias em que andava de carroça a vender a mercadoria, comprando-lhe a batata a cinco escudos e vendendo-a, cinco minutos depois, a 25 a um oficial do exército, o que explica o título da narrativa. Portanto, diz, o conto representa o lucro fácil de um homem rico, sem escrúpulos e indiferente à desgraça alheia.
 
            Seja como for, para a investigadora, as narrativas de Manuel Ferreira e Dias de Melo aproximam-se mais do conto e apresentam, de forma mais visível, uma estrutura de ficção. Por aqui, vê-se a importância dos trabalhos de Mónica Serpa Cabral resgatando o trabalho não só destes ficcionistas açorianos como de outros, despertando no leitor a curiosidade de conhecê-los. Com certeza, será a partir de trabalhos bem estruturados e escritos com paixão como estes que a literatura açoriana há de se tornar mais conhecida não só em Portugal como no Brasil e em outras nações e comunidades dispersas do mundo lusófono.
                                       IV
            Se para alguma coisa servir, é de lembrar que também este articulista é descendente de açorianos – seus avós maternos – que para a cidade de Santos, no Litoral de São Paulo, na região Sudeste do Brasil, vieram ao final do século XIX, estabelecendo-se no Morro de São Bento, que até hoje é um reduto das tradições dos Açores e da Ilha da Madeira de que melhor exemplo são as suas famosas bordadeiras. E teve como co-orientador, em Portugal, em seu trabalho de doutoramento em Letras pela Universidade de São Paulo, o professor Fernando Cristóvão, assistente e depois sucessor do açoriano Vitorino Nemésio na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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FORMA BREVE – Revista de Literatura. Departamento de Línguas e Cultura da Universidade de Aveiro, dezembro de 2010. E-mail: antonio@ua.pt
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
 

domingo, 13 de setembro de 2015

Canto de mim mesmo - XLVI, Walt Whitman





Sei que tenho o melhor do tempo e do espaço, e nunca fui medido e nunca serei medido.
A minha viagem é eterna, (venham todos ouvir-me!),
Os meus sinais são de uma gabardine, bons sapatos e um cajado que cortei no bosque,
Nenhum dos meus amigos se instala na minha cadeira,
Não tenho cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo ninguém à mesa de jantar, à Biblioteca, à Bolsa,
Só te conduzo a ti, homem ou mulher, a um outeiro,
A minha mão esquerda aperta-te a cintura,
A minha mão direita assinala a paisagem dos continentes e o passeio público.

Nem eu nem ninguém pode percorrer por ti esse caminho,
Deves percorrê-lo por ti mesmo.

Não fica longe, está ao teu alcance,
Talvez tenhas andado por ele desde que nasceste e não o saibas,
Talvez fique em toda a parte, na água e na terra.

Carrega os teus farrapos, meu filho, e eu carregarei os meus, apressêmo-nos,
Chegaremos a maravilhosas cidades, chegaremos às nações livres.
Se estás cansado, deixa-me levar os fardos, e põe a tua mão na minha anca,
E no devido tempo hás-de retribuir-me,
Pois já que partimos nunca poderemos descansar.

Hoje, antes do alvorecer, subi a uma colina e olhei os céus e as constelações,
E perguntei ao meu espírito: Quando abraçarmos essas orbes, quando tivermos
o prazer e o saber de quanto nelas há sentir-nos-emos realizados e satisfeitos?
E o meu espírito respondeu: Não, se alcançarmos esses cumes é só de passagem,
é só para continuar mais além.

Tu também interrogas e eu escuto,
Respondo que não posso responder, tens de descobrir por ti.

Senta-te um instante, meu filho,
Aqui tens bolachas para comer e leite para beber,
Mas logo que adormeças com a tua roupa fresca, dar-te-ei um beijo de
despedida e abrir-te-ei a porta para que partas.

Tempo que baste já sonhaste os teus sonhos maus,
Agora afasto as remelas dos teus olhos,
Deves habituar-te ao esplendor da luz e de cada momento da tua vida.

Muito tempo rondaste timidamente a praia agarrado a uma tábua,
Agora quero que sejas um nadador intrépido,
Que saltes no meio do mar, que te ergas outra vez, que me faças sinal, grites
e rias enquanto a água cai dos teus cabelos.



Walt Whitman in Canto de Mim Mesmo