sábado, 10 de novembro de 2018

As veias desertas, O difícil exercício das cinzas




Caí em mim
e não consigo subir.
O dia tem ventos ásperos
e rompo a avenida
com a cunha do carro.
Dentro de mim trago
outras cunhas e asperezas:
o tecido grosseiro da dissensão,
a retina aguda do equívoco
que vê invertido
e não há cérebro
que me ponha em pé.
É um dia à deriva
sem o porto do trabalho
ou o motor da família.
No caminho da fila
das nuvens indecisas,
faço das horas pardas
– não há cor
nos olhos da manhã –
meu ritmo e meu voo:
o ritmo das veias desertas
e o voo vazante
das imaginações afogadas.

Avenida Beira-mar, 1960, poema RCF






Sob mangueira da Beira-Mar,
quando todos os adultos faziam a sesta,
talas do mormaço imobilizaram a tarde.
Fez-se silêncio de torniquete.
A tarde eriçou o pelo das árvores.
Enorme, plácida, placentária
e úmida, regurgitava
a inquietação dos quietos,
enquanto já se consubstanciava a exaustão de inquirir
e a cantaria do calçamento
formigava esplêndida nulidade
diante da pedra absorta.

 
 
(do livro Eterno passageiro, Ed. Varanda, 2004)
 
imagem retirada da internet: silvio rocha

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Testamento, poema RCF


Imagem relacionada

Tudo o que tenho está em papel passado.
Lavro meu testamento
que é uma terra feita de papel.
Os inéditos doo ao anonimato,
os publicados para os sebos.
Meu corpo enterrem
na lembrança
cuja terra é fofa
e o que nela está logo se decompõe.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 2012)



 (foto:vivian maier)

Um homem é muito pouco 10



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Clemente foi com a mulher e Aninha visitar a sogra pela primeira vez. A mulher do dr. Macedo, mãe de Yolanda e avó de Aninha, não reconhecia nem a filha nem a neta. A mansão do dr. Macedo era descomunal. Clemente foi ao banheiro e quando voltou não encontrou mais Yolanda. Ela havia ido para outro cômodo com a mãe. D. Severa (Clemente nunca soube o nome da mãe de Yolanda, ela só chamava a mãe de dona Severa) era servida por enfermeira.

A primeira visão da casa e da enfermeira fez Clemente se lembrar do internato em Bremen. Ele estaria de volta ao sanatório de Bremen, onde um médico alemão lhe fazia perguntas em espanhol. Talvez fosse melhor que o médico mesmo falasse em alemão. Ele tinha conhecimentos da língua universal dos marinheiros e que se fala em portos e que nela consta algumas frases e palavras em alemão. O espanhol do médico era péssimo e Clemente não conseguia entender o homem. E como o homem não se fazia entender, dava como apatia o silêncio perturbado de Clemente. O brasileiro só queria que o deixassem livre e o devolvessem ao navio de onde o tiraram. Amarraram Clemente numa maca, levaram para a câmara de raios X. Tiraram algumas chapas da cabeça e Clemente se perguntava que medicina maluca era aquela que tirava chapas de raios X da cabeça dele. O que queriam encontrar ali? Um tumor? O tumor de Clemente era mais denso e pouco visível numa chapa de raios X. O tumor de Clemente era a própria vida que andava intumescida.

O barco estava intumescido, as ruas estavam intumescidas, as pessoas andavam intumescidas pelo supermercado, pelas ruas, pelos cinemas, pelos edifícios de governo. Clemente acreditava que não estava nele a intumescência das coisas e, sim, nas coisas em si. Elas mesmas é que eram intumescentes. E o sanatório fazia parte daquela intumescência em que Clemente estava vivendo.

Agora andando pelos corredores da mansão do velho e falecido dr. Macedo, dono da fábrica de sabão que ele tanto comprara e usara, voltava-lhe a intumescência das coisas que viveu em Bremen. Ele mal podia andar e quando andava tinha que se segurar nas paredes como se segurava nas paredes quando sua embarcação pegava pela frente tempestade terrível e furiosa. Clemente tinha medo do fogo e da água. Clemente não sabia de qual elemento da natureza tinha mais medo. Qualquer um dos dois podia fazer arder ou afogar uma biblioteca. Podia queimar um homem, transformá-lo num pedaço horroroso de carvão ou podia inchá-lo de tanta água nos pulmões.

Clemente vira afogados monstruosos, cujas partes do corpo se largavam, se decompunham, se soltavam dos ossos como carne cozida passada do ponto. A velha senhora d. Severa, mãe de Yolanda, também era uma mulher intumescente. Ele não tinha nada o que conversar com uma mulher intumescente, com uma afogada, uma mulher que largava as partes da memória por onde andava.




(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Afogado, poema RCF



O mar, em sua ressaca,
vive em eterno vômito.
Cheio de algas e fantasia
devolve o que não lhe pertence.

E guarda em si o peixe
e o estômago embrulhado
e não devolve o navio naufragado
porque as embarcações
são árvores de ferro
que a tragédia plantou.
Em seus intestinos
de água em ebulição
só o náufrago ele rejeita
porque o náufrago
é uma outra caricatura mórbida
de um peixe
sem barbatana
de um peixe
sem guelra
o afogado é um corpo estranho
o afogado é, mesmo morto,
a presença da terra
na digestão salgada.

Tudo cabe no estômago
de água do oceano,
mas feroz e decidido
se recusa a digerir
o que é da terra
e não pertence ao desvario
piscoso das marés.

Assim também devolvo
o afogado que não pertence
à aquosa e uterina imaginação
de ânfora plena de liquens
e aflições de salitre
nada que não faça parte
do inconsciente marítimo
dos meus prazeres submersos.

 
 
(poema de A máquina das mãos, Rio de Janeiro: 7Letras, 2009)
 
 
imagem retirada da internet: trollada

Considerações finais, poema RCF


 



Esse homem que se passa por mim,
veste meu terno, dirige meu carro
e assina documentos com meu nome,
desconheço quem seja.

Esse homem que se apresenta com meu nome,
se reveste de comiseração para chamar meu obséquio,
é uma fraude dos nervos e uma viagem sem retorno,
aquela que não vivi e sempre em mim
permaneceu como bicho que se incrusta
na pele ou a simbiose submarina
de rocha e sua concha, de arrecife e rêmora,
coisas que se agarram a outras para poderem viver
como um só elemento.

Esse homem que vai ao meu trabalho,
cumprimenta meus colegas e senta-se à minha mesa,
rouba meu tempo sem remorsos ou renúncia,
devorado que está pela voracidade das horas,
inconformado com o serrote do tempo
e o horror de existir entre quatro paredes,
ser pago para escalar o martírio
dos minutos que são degraus
que não se sabe se subimos ou descemos,
quando o expediente finda
como animal que para existir
deve alimentar-se do próprio corpo
e, logo, não haverá corpo,
pois o corpo morto não será alimento do corpo,
mas pasto para outros minúsculos corpos.

Esse homem que entra no supermercado,
graceja numa loja de eletrônicos,
desconhece o perímetro dos acidentes,
a fratura dos erros, o desvio que toda reta
induz, a amargura da servidão da vida
que se impõe necessária e impeditiva,
pois não há como evitar ser humano,
o que é difícil e inexato como a pontaria
dos míopes ou respirar dentro de uma placenta
que, rompida, nos coloca na rota perigosa da vida.





(Memória dos Porcos, Rio: 7Letras, 2012)

(foto: rodney smith)


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O matadouro, poema RCF





O respirar lento
das cafeteiras
no silêncio imóvel
do apartamento
(vapores e tardes,
no feriado dos anos).
Sobreviver
como um pássaro
pousado na boca de um cão.
A alma seca e austera.
Vou à rua
trago o peso das compras
e a sugestão das vendas
                                   nos olhos
– tenho a esperança
dos bois de matadouro.


(Estrangeiro, 1997)


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Ventre frio, poema RCF


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O galo no meu jardim é uma planta de penas,
move sua crista em flor na inquietude verde.
As frutas azedam a existência pendurada.

A geladeira agasalha fragmentos dispersos de vida.
Uma coxa de galinha, meia garrafa de suco,
carne gelada do não,
ali, no ventre iluminado e frio,
a vida se dá nos pêssegos cortados
como fetos em conserva.

(Eterno passageiro, 2004)
 

Memória dos Porcos, por Hildeberto Barbosa Filho


 Evangelho pelo avesso

 Hildeberto Barbosa Filho

 Publicado no jornal Contraponto (João Pessoa, PR) e O Estado do Maranhão.

           São Clemente de Alexandria, citando Heráclito, escreve: “O porco tira seu prazer da lama e do esterco”. Com raras exceções, a imagem do porco, nas diversas mitografias, encerra um conteúdo negativo associado às ideias de devoração, luxúria, ignorância, egoísmo, enfim, toda uma simbologia disfórica que tende a representar o lado obscuro, perverso e abjeto das coisas, conforme as informações preciosas do Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.
            Creio que não me engano, neste breve comentário crítico, se vincular semanticamente o título Memória dos porcos (7 Letras, 2012), do mais recente livro de poemas de Ronaldo Costa Fernandes, a esse arrazoado de noções e conceitos, símbolos e temas, que lastreiam seu discurso poético.
            Há, na sua poesia, uma tensão permanente entre o eu lírico - ensimesmado, irônico, reflexivo -, e a realidade, em sua formulação contraditória, ameaçadora, injusta e violenta. Não se tem, contudo, uma voz meramente de denúncia que instrumentalize a palavra poética a serviço das “boas causas” e das “boas intenções”, precisamente porque o contexto, tecido pela operação textual, transmite um “saber”, ou melhor, uma imagem, que ultrapassa os limites desse ou daquele contexto histórico particular, embora não se devam excluir os apelos sintomáticos do modelo social degradante no qual está imerso o eu poético. Modelo que um Zigmunt Baumann resume muito bem como “modernidade líquida”.
            Citemos alguns versos. Logo no segundo poema, “Espiral dos caminhos”, diz o poeta: “Deus deveria ter um caderno / de caligrafia para melhorar a letra”. Isto é, deveria..., mas não tem. Nem Deus, no seu poder absoluto (absoluto?), parece dar conta dos “caminhos espiralados / os caminhos sem chão, / as retas que não levam a lucidez”. Em “Minha foz do Iguaçu”, vê-se o aproveitamento, diria, pelo avesso, de uma imagem aquática, nesta sequência de versos: “Um arame de água / - o desconforto do abismo - / nada de mar vertical, / o drama de esperar / a catarata do tédio / as sete quedas da semana”. Logo em seguida, no texto “Código postal”, arremata o eu lírico: “No fundo sou um sujeito que não dá pé. / Por isso cada mergulho é um naufrágio. / E não faz bem à saúde / naufragar todos os dias”.
            Partindo, assim, do inadiável desconforto de existir e da necessidade poética de pesar os elementos da vida, Ronaldo Costa Fernandes como que faz de sua dicção lírica um contrapeso estético e filosófico à gula da esterilidade, a esse sorvedouro de miasmas morais, enfim, a essa memória suína e decadente da sociedade contemporânea.
            À desconstrução dos conceitos e das experiências, das convenções e das ideologias, evidentemente sob a gramática da linguagem poética, também passa pelo toque concreto e pelo arranjo formal e estilístico perante as camadas do signo. Dito de outra maneira, os ingredientes externos, isto é, os fatores reais (assuntos, temas e motivos), são reduzidos estruturalmente no poema enquanto dados internos, resultantes, portanto, da singularidade da elaboração discursiva.
            Um verso, como o já citado “as sete quedas da semana”, legitima o que estou dizendo. Mas vejamos outros: “Aprendeu as cinco declinações do latim / mas não aprendeu a declinar do mundo” (p. 20); “Não fui criado para ser multidão. / Já tenho dentro de mim bastante gente. / Meus olhos têm vários crepúsculos por dia” (p. 21); “(...) o vasto latifúndio de sementes perdidas / fazem o verdadeiro silo do homem” (p. 50); “(...) nenhuma catástrofe é maior / que acordar a beleza” (p. 80); e “A vida – na vida só há ida, / não há retorno no que me torno” (p. 92).
            No posfácio de A máquina das mãos, coletânea de 2009, destaquei este traço formal e linguístico na poética de Ronaldo, para acentuar o fato de que no poema não só importa o conteúdo temático; importa sobretudo o como este conteúdo temático se apresenta e se resolve no âmbito concreto da linguagem, pois é da relação orgânica entre forma e fundo que brota a beleza e a verdade da poesia.
            Não esqueço ainda a célebre parábola bíblica das “pérolas aos porcos”, naquele sentido de enunciar verdades aos ignaros e aos estúpidos, porque quer me parecer que essa Memória dos porcos, ironicamente, constitui um evangelho pelo avesso, isto é, a boa nova da arte como um desafio à esclerose e à vulgaridade do mundo atual.
            À corrupção dos valores e aos fundamentalismos ideológicos a poesia comparece com seus caminhos possíveis e com suas alternativas surpreendentes. Com mais este lançamento, Ronaldo Costa Fernandes, maranhense radicado em Brasília, dá continuidade a essa sugestão que se esboça e se cristaliza em obras anteriores, como Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004).  

 Hildeberto Barbosa Filho é crítico literário, professor da UFPR, poeta  e ensaísta. Um dos grandes nomes da poesia contemporânea, acaba de publicar sua Poesia Reunida.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Fleuma do sangue, poema RCF



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Onde estará o pensamento do sangue,
o temperamento da carne, a alegria dos pelos,

a melancolia dos vegetais – em mim
ou na capacidade das coisas de existir com humores?

 
 
(Eterno passageiro, Brasília: Ed. Varanda, 2004)