quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Origem, poema

 


 

 

 

 


 

Todo homem é seu veículo.

Um veículo de duas pernas.

Os pneus de passos,

a alavanca dos braços

e a estrada dos pés.

 

Um homem em pé

é sempre um belvedere.

A matéria, que é bípede,

luta com o pensamento réptil.

 

Gosto das estradas que têm desvios

e me pergunto se enveredei

para uma marginal que tem mãos duplas

que mais freiam que ofertam.

 

Meus olhos têm o vício do radar.

Não quero viver uma vida cheia de placas

a limitar a velocidade do pensamento.

A vida é sempre pulsante

a 80 batidas por minuto.

 

Toda origem se alimenta do fim de algo morto.

 

 

 

 

 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Jogos de azar, poema

 



 

Consultei os búzios

e suas ondas sem água

a fim de revelar

o turbilhão nas conchas de minhas unhas.

 

Meu mal se afina

e não posso cortar

pela raiz dos dedos

que acusam o destino.



domingo, 25 de dezembro de 2022

Um homem é muito pouco 13



Resultado de imagem para um homem é muito pouco
Não era bem o que Yolanda queria para sua vida. Agora que passaram as grandes dores como a perda do pai, a perda do marido e a perda da filha com Clemente, ela olhava para o companheiro e via nele traços que antes não vira. Na casa de Juliana, ela conheceu Toninho Marcos, que era pintor e amigo de Horário. Os irmãos todos de Toninho eram metidos com negócios, ações da Bolsa, construção imobiliária e fábrica de materiais de limpeza. Dr. Macedo e o pai de Toninho Marcos tinham sido amigos e parceiros em várias associações de classe. Yolanda já conhecera Toninho Marcos numa visita que fizera à casa da família dele lá pelos fins dos anos 50, salvo engano, e Toninho Marcos era um menino que falava inglês, tinha projetor de filmes e máquina de filmar – ele mostrara a ela, tantos anos depois, fita com os dois correndo no jardim, mergulhando na piscina, subindo em árvore. Toninho Marcos também morou pelo mundo, mas ao contrário de Clemente não conhecia apenas os portos.

 Também andou em hospital psiquiátrico, foi internado e tratado pela dra. Nise da Silveira. Contudo, nunca esteve em sanatório de Bremen, largado lá como carga irregular que o navio não podia carregar e só voltaria ao navio da Mercante quando pusesse o raciocínio no lugar e pudesse ser considerado carga com a documentação em dia. Toninho Marcos pintava como Roy Liechtenstein que conheceu nos EUA e vivia como os beatniks, a quem assistira a leitura de poemas numa universidade do Novo México.

Mas ninguém levava a sério a pintura de Toninho Marcos. A família pensava que ele era degenerado, consumidor de ácido e cogumelo, amante de blues, enquanto os outros artistas não davam crédito a ele justamente porque Toninho Marcos era filho de filho da puta como era o pai dele que financiava a repressão como o pai de Yolanda e achavam que filho de socialite e empresário filho da puta não podia ser artista aqui nem nos EUA, conhecendo ou não conhecendo Roy Liechtenstein, ouvindo ou não ouvindo poesia beatnik na universidade do Novo México.

O que levou Toninho Marcos a ser tratado por dra. Nise é que, ao contrário do que todos pensavam que para ser drogado deveria o sujeito ter crise familiar, Toninho Marcos gostava do pai, admirava o pai, embora sabendo que o pai tinha sua face negra e ele não podia admitir que o pai tivesse face negra porque ele, Toninho Marcos, admirava o pai e o pai era carinhoso com ele e ele sabia que o pai pagava para que um monte de sujeitos violentos e reacionários não fossem carinhosos com os estudantes, os comunistas e outros rebeldes que caíam nas mãos dos homens poucos carinhosos da repressão. Toninho Marcos não gostava é da mãe.

Ele mamava em Helena Maria Isabel Teresa de Andrada Bonifácio Souza Campos, que era o nome de solteira da mãe dele, porque socialite tem que ter o nome longo como os príncipes que tinham nome longo e Helena Souza Campos eram apenas os nomes que ela escolhera entre os vários nomes dela para se apresentar em sociedade e quando Toninho Marcos olhava não era a mãe que o amamentava mas o pai que ganhara seios e o amamentava. O pai não tinha formas femininas, nem cabelo grande, era o mesmo pai, o peito cabeludo e a voz grave e serena, mas tinha seios e o alimentava. O pai era homem culto e conversava sobre arte com Toninho.

Várias vezes falaram de política e o pai discordava do filho, mas não se explicava e evitava o assunto e quando Toninho via estavam falando de arte abstrata, de cubismo e dos quadros que o pai queria comprar, dos leilões que frequentava e coisas desse tipo. Toninho Marques tinha então dois pais, Dr. Jekyll e Mr. Hide, o que o alimentava de leite materno e falava de artes e o outro que também fora visitado pelo intermediário do grupo Ultragás para contribuir com o delegado Fleury.

Toninho desenhava homens femininos com aparelhos de tortura na mão e dra. Nise queria apresentar as pinturas de Toninho como surrealistas, mas Toninho não queria aparecer nas exposições dos quadros dos loucos da dra. Nise da Silveira, porque sabia que em vez de surrealismo ele estava fazendo era realismo socialista e ele não considerava os quadros coisa que prestasse, mas acerto de contas entre emoção e razão. Toninho Marcos se chamava Pedro Augusto. Era nome de imperador da casa dos Bragança e augusto é coisa real. O nome mesmo, de artista, que ele queria era outro, mas no grupo de dra. Nise, uns o chamavam de Toninho, sabe-se lá por que cargas d’água, e outros malucos o chamavam de Marcos. Dra. Nise é quem o batizou de Toninho Marcos para acabar com aquela esquizofrenia de um ser dois. Dra. Nise da Silveira tinha a casa cheia de gatos e um bando de nomes que ela distribuía como quem distribui doce às crianças e pílulas aos loucos.





(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, dez. 2010)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

O rosto, leitura do poema em vídeo


sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Ventríloquo, poema

 


 


 

 

 

 

Tenho um boneco dentro de mim

que fala a madeira do mundo.

Minha boca

dura um minuto antes de minha fala.

Aos poucos me acostumo

a ouvir vozes que sussurram bonecos.

Ainda terei a malícia

dos olhos fixos e azuis

arregalados de riso.

Meus pés flutuam

calçados de submissão.

As tristezas são guturais

e ficam presas na dublagem da vida.

Quem fala por mim?

O que boneco

que sou entre gentes

ou o humano

que fala entre bonecos?

As pessoas têm o dom

de colocar palavra na minha boca.

Falam por mim,

mexem meus braços por mim,

dão pulos de madeira por mim.

Ser ou não ser um boneco?

Minha fala shakespeariana

ainda vai hamletizar minha existência.

Cara de pau, dirão os inimigos.

Meu silêncio

fala pelos cotovelos.

Todo meu corpo

é uma fala de outra pessoa.

O que tenho medo

é do madeirame das opiniões,

da vida gepeto que levo

que quer ter vida própria.

 

 

 

 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Palavras cruzadas, poema RCF


 


 

 

 

Meu vício

são as palavras cruzadas.

O pau de sebo

onde discos da coluna vertical

misturam as letras da História

à mitologia dos faunos.

 

O leito quadricular horizontal

onde os adjetivos dormem

e os nomes,

na batalha naval,

destróier e submarina

a enciclopédia dos tempos.

 

Meu vício

são as palavras cruzadas

da poesia.

 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Mirante, poema

 


 

 


 

 

 

O que mira o mirante?

O horizonte de si mesmo?

As montanhas de sua casa?

O vale dos corredores?

O mirante também pode se abismar

diante de sua pia.

Cada batismo

é um Jordão encarcerado.

O mirante vê em cada escada

uma ascensão ou queda,

embora haja subidas que nos derrotam

e descidas que nos sublimam.

Há um cânion

que erode as paredes de casa,

um deserto

que desidrata as cadeiras da sala.

O mirante é um visitador das horas.

Até onde a vista alcança

busca a dimensão do homem.

O mirante tem a dimensão do homem

e tudo o que o apequena

ele mede seu medo e seu tempo irrisório.

O mirante é sempre um trapézio

e nos lança à hipótese de um salto sem rede.

O mirante flana indiferente

às marés altas da cidade.

A torneira é um córrego

que corre para um rio vertical.

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 20 de novembro de 2022

O perdão, poema

 






A lixa vai limando o tempo.

Tem gente que se lixa para o tempo.

Mas ninguém escapa da folha áspera. 

Da folha que retira camadas de anos 

e dá a primeira mão do passamento. 

Quando a lixa fica velha, 

porque a lixa também tem sua lixa,

perde os dentes e saliva apenas esfregão.

A lixa arremata móveis, 

gente, ferrovia, bola de gude, pensamento, 

amores, dissidias, mas não fere o ódio, 

nem outras moléstias de desaforo do sentimento. 

Só a morte, que é a lixa final, 

que logo dá superfície sem tinta,

consegue lixar o desacordo.

Há gente que diz que o perdão 

é uma lixa cor de rosa 

que alivia, lima, 

corrompe o que já é corrompido, 

logo por oposição, dá brilho no fosco. 


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Bolsos, poema

 


 

 


 

 

 

Trago nos bolsos um pedaço de vida.

Um troço pequeno, virulento, mas dócil.

Às vezes me corrói,

penso que pode me escapar.

Outras vezes, rumina memórias,

anúncios antigos, brincadeiras na fábrica abandonada.

A maior invenção da humanidade

foi o bolso, dizia meu pai.

Meu pai não era filósofo.

Era alfaiate de leis.

Eu costumava costurar letras,

mas eram muito pequenas

e difíceis de pregar no tecido da vida.

Mas não desisti.

Alguns poemas nasceram para serem amassados.

Os bolsos se avolumam durante o dia.

Eu diria que o homem são seus bolsos,

e, mais ainda, mais além das circunstâncias,

o homem se veste de bolsos,

todo o homem é um grande e díspare bolso.

À noite dormem no silêncio dos vácuos.

Na vesícula dos bolsos,

o homem pode sonhar.

No apêndice dos bolsos,

o homem é uma excrescência.

De repente, sinto

que me transformo num bolso.

Que ando pela cidade

como se fosse somente

um carregamento de coisas.

Inflo, contorço-me,

todos os segredos me engordam.

Ou então desfaço-me de tudo.

Minhas roupas não podem me fornecer.

Não guardo nada em mim.

Minha memória,

que é um bolso cinzento,

não me oferece nenhum abrigo.

Busco por um número telefônico,

um verso perdido, um bilhete de socorro,

e o bolso cinzento

se recusa a guarnecer-me.

Ando por ruas movimentadas,

rostos estranhos e sisudos

se recusam ao reconhecimento.

Olho-me numa vitrine

e o vidro balança

a cabeça negando-me bolso.

Meus sapatos,

que são outra espécie de bolso,

mas que não carregam nada além de metros,

se recusam a reconhecer meus passos.

Desarrazoados, iníquos, vazios e torpes,

os bolsos abrem-se em abismos.

São rudes, perversos,

diluídos, devassos e difusos.

Há um carrossel de impurezas

que rodam sob o realejo

mecânico e dentado

indiferente ao sopro do improviso.

Uma casa também pode ser um bolso.

A minha é larga,

respira pouco,

e mergulha na ânsia perdida

de tudo preencher.

O bolso da casa

está cheio de memórias

e não posso caminhar entre tantos objetos

que se acumulam

na algibeira dos tempos.

O bolso,

a cada dia que passa,

mais se acumula.

Não sei em qual dos dois

bolsos da casa me encontro:

se no largo e bojudo

espaço do passado,

ou se na edícula do presente

que perverte os sentidos

e manipula a realidade.

Haveria diferença

para o bolso da casa

e o bolso do trabalho,

minúsculo, preso ao peito,

respirando suas batidas ordinárias?

O bolso do trabalho

está cheio de rostos fabris.

Enérgicos, fluidos,

vagos, semidesconhecidos,

todos circulam

pelo bolso com suas obrigações

administrativas,

entram nos becos das salas,

circulam pelos corredores

e artérias de um coração sem sangue.

 

 

 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Viagem do pensamento, poema

 


 

 

Rebecca Dautremer
 

 



 

Aterrizo no meu apartamento

que tem todas as pistas de quem eu sou.

Todos os pousos

que deixei para trás me fez mais passageiro.

 

Meu pensamento

está sempre um passo à frente.

Por isso caminho devagar

para não me alcançar.

 

Sempre que meu pensamento voa

aperto o cinto de insegurança

e sei que vou passar

pela turbulência dos sentidos.

 

Tenho um relógio de pulso forte.

A pressão alta dos minutos de silêncio.




 

domingo, 16 de outubro de 2022

A tarde, poema

 



 


 

 

 

A tarde está sempre atrasada.
Em sua idade madura,
os corpos já estão corruptos
de matéria ordinária.
Em sua infância,
é apenas um torpor,
digestão do tempo.
 
O coveiro que lhe dá
a pá de cal negro
a silencia com constrangimento.
Ando com uma tarde
no bolso para eventuais encontros.
 
Na noite, o sol nasce para os outros.
Fiat Light disse um Deus canadense
e nos deu a companhia
por muitos anos no século passado.
 
Para onde vai a tarde
com sua girândola laranja,
fenecendo de fragrância humana
e desespero da Ave Maria
orai por nós
e pelo monóxido carbono que nos incensa?
Todas as tardes borbulham
e serenam o calor
penitenciário do trabalho.
 
A tarde tarda,
a manhã amanhece,
a noite anoitece.
O coração arde,
a razão conhece
e o corpo tece.
 
Flaubert dizia que se sentia viúvo de sua juventude.
O olho alpino observa
o viúvo peripatético
escondendo-se nas sombras das calçadas.
As pedras portuguesas
são olhos quadrados que se pisa sem olhar.
O poente é testemunha do cônjuge
que fomos.
Um cativeiro
com suas portas abertas
se oferece a quem já se nega
a liberdade
ou o medo do cárcere ao ar livre.
Tarde e manhã: duas irmãs siamesas
ligadas pelo ventre do dia.