sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lusofonia, Isabel Fernandes






Adelto Gonçalves é escritor, jornalista, professor e colaborador assíduo em publicações no Brasil e em Portugal, nomeadamente no As Artes entre As Letras. Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana, nasceu em 1951, em Santos, São Paulo (Brasil). Recentemente foi convidado para assessor cultural e de imprensa do Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia, e foi nessa qualidade que respondeu por e-mail (e por isso foi respeitada a ortografia brasileira) à entrevista que pretendeu entender melhor o papel do Centro na divulgação do Português naquele país e como é que Adelto Gonçalves entra na história do organismo russo.

Quantos autores de Língua Portuguesa estão traduzidos pelo Centro Lusófono Camões? E quantas obras?

Logo depois de sua fundação em 1999, o Centro Lusófono Camões, da Universidade Estatal Pedagógica Hertezen, de São Petersburgo, produziu uma edição eletrônica dos Sonetos de Camões, que teve prefácio da professora Maria Raquel de Andrade e contou com o apoio dos professores José Manuel Matias, Zélia Madeira, Rogério Nunes, Alexandra Pinho e Madalena Arroja, do Instituto Camões, de Lisboa. Desde então, publicou vários livros impressos, como o Guia de Conversação Russo-Portuguesa Contemporânea, Poesia Portuguesa Contemporânea (2004), que reúne poemas de 26 poetas portugueses traduzidos com participação de Helena Golubeva (como tradutora-tutora), e Vou-me embora de mim (2007), do poeta português Joaquim Pessoa, todos em edição russo-portuguesa. O Centro tem ainda preparado à espera de apoio financeiro para publicação um livro de contos do escritor português Gonçalo Tavares, que contou com a participação do próprio autor. Além do Instituto Camões, o Ministério da Cultura, o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, o Colégio Universitário Pio XII, a Universidade Clássica de Lisboa, a Universidade Internacional de Lisboa, a Universidade Lusófona e a Universidade de Aveiro são algumas das instituições culturais portuguesas que têm cooperado com o trabalho dos lusistas russos. De autores brasileiros, publicou, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e da Embaixada brasileira em Moscou, os livros Contos, em 2006, e Contos Escolhidos, em 2007, ambos de Machado de Assis (1839-1908), em edições bilíngues, que contam com prefácios de minha autoria. Até então, da obra de Machado de Assis só os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro haviam sido traduzidos para o russo. Por enquanto, há outros projetos de lançamentos em edição bilíngue à espera de apoios financeiros de entidades culturais tanto de Portugal quanto do Brasil.

Como vê este interesse dos russos pela Língua Portuguesa?
É gratificante saber que há pessoas de outros países que admiram a nossa Língua a ponto de quererem estudá-la e aprendê-la. Por isso, é nossa obrigação estimulá-las e procurar oferecer melhores condições. Por enquanto, o Centro Lusófono Camões depende, praticamente, da colaboração do Instituto Camões, de Lisboa. Por isso, vamos procurar sensibilizar algumas instituições brasileiras, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Academia Brasileira de Filologia (Abrafil), a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) e algumas editoras de grandes universidades brasileiras a colaborar com o Centro não só com a doação de livros de autores brasileiros e de crítica literária, mas com a assinatura de acordos de publicação de livros em edição bilingue russo-portuguesa.

O que significa mais para o maior e melhor conhecimento dos autores que escrevem em Língua Portuguesa, o contacto com a obra (traduzida) ou o conhecimento da língua?
Todos os autores escrevem com a esperança de que sejam lidos pelo maior número de pessoas. Não há autor que não se sinta realizado ao ver a sua obra traduzida em outro idioma. Por isso, as duas coisas são importantes. Para o leitor estrangeiro, a oportunidade de uma edição bilíngue é única, pois facilita o aprendizado. No Brasil, tenho recebido algumas consultas de pessoas interessadas em aprender o idioma russo e que gostariam de ter acesso às edições bilíngues do Centro Lusófono Camões. Por outro lado, durante minha visita a São Petersburgo, tomei a iniciativa de levar e doar vários exemplares da última edição brasileira do livro Gente Pobre (Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2011), de Dostoievski, por gentileza do editor Nicodemos Sena, que também é escritor. Com isso, os estudantes de português do Centro têm também a oportunidade de confrontar a tradução de Dostoievski para o português. Além disso, o Museu Dostoievski, de São Petersburgo, colocou um exemplar da edição brasileira de Gente Pobre em lugar especial para que seja visto pelos visitantes, que são dezenas todos os dias.

A cooperação entre o Centro Lusófono Camões e instituições portuguesas é essencial para o desenvolvimento do Centro? E não seria uma mais-valia que essa cooperação se alargasse a instituições de outros países lusófonos?
De fato, essa colaboração tem, praticamente, limitado-se ao apoio de instituições portuguesas. Por isso, estamos procurando sensibilizar a Academia Brasileira de Letras e outras instituições que participem dessa cooperação. Infelizmente, no Brasil, não existe ainda um organismo como o Instituto Camões, de Portugal, que financia a publicação de obras de autores portugueses no exterior. Tanto que foi a Embaixada do Brasil em Moscou que assumiu as despesas com a gráfica para a edição dos dois livros de Machado de Assis publicados pelo Centro Lusófono.

O que significou para si este convite? Em que consiste exactamente o seu cargo?
Na verdade, o meu cargo é apenas informal. Antes de mim, Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010), que foi embaixador em Portugal de 1979 a 1983, sócio-honorário do Centro, fazia esse trabalho de divulgação, publicando artigos sobre as atividades da instituição em jornais e revistas do Brasil e Portugal. A pedido do professor Vadim Kopyl, diretor do Centro, estou procurando ajudar o Centro Lusófono Camões a difundir a Língua Portuguesa na Rússia. Além de professor universitário e jornalista profissional há 40 anos, sou escritor e resenhista de livros. Desde que voltei da Rússia, já escrevi recensões de todos os livros impressos publicados pelo Centro e as espalhei por jornais, revistas e sites do Brasil, de Portugal e dos países de expressão portuguesa, com o objetivo, em primeiro lugar, de tornar mais conhecido o trabalho do Centro. Além disso, sempre que o professor Kopyl quiser ou tiver alguma novidade a respeito do Centro, estarei pronto a transformá-la em notícia e distribuí-la para jornais, revistas e sites de expressão portuguesa. De minha parte, também tenho o interesse em que o meu livro Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003) venha a ser traduzido e publicado em russo, mas isso depende também de quem financie a publicação. Já entrei em contato com o Instituto Camões e, na época adequada, vou submetê-lo à apreciação do órgão.

Traçou objectivos para o seu 'mandato'? Quais são?
Os meus objetivos resumem-se em auxiliar, na medida do possível, a difusão da Língua Portuguesa na Rússia. E a divulgar as atividades do Centro entre os países de expressão portuguesa. Para tanto, conto também com a ajuda de alguns intelectuais dos países africanos de expressão portuguesa, que têm contribuído para a divulgação das resenhas dos livros editados pelo Centro, entre eles Nataniel Ngomane, João Craveirinha e Josué Bila, de Moçambique, e o jornalista Timothy Bancroft-Hinchey, editor em Lisboa da edição em português do site do Pravda. Aliás, quem quiser ler as minhas recensões dos livros editados pelo Centro e demais informações sobre a entidade deve acessar o site http://port.pravda.ru Conto também com o apoio do As Artes entre As Letras.

Como é que o Centro Lusófono Camões está a lidar com o Acordo Ortográfico? Que grafia estava a ser seguida?
O Centro entende que os estudantes devem conhecer como era a ortografia antes do Acordo Ortográfico e como é a atual, recomendada também pelo Instituto Camões.

A propósito, tem uma posição sobre o assunto?
Sou francamente favorável ao Acordo Ortográfico e acredito que, desta vez, temos um acordo que tem tudo para dar certo. Precisamos entender que ninguém é dono da língua, ou seja, seus donos são seus usuários, vivam onde viverem. Somos mais de 230 milhões de indivíduos que se orgulham de se comunicar em português, entre os quais, mais de 180 milhões de brasileiros, além, naturalmente, de grande número de indivíduos que utilizam o idioma como segunda língua. Tendo dois sistemas ortográficos, o português não podia ser contado como língua de cultura tão amplamente expandida, pois a língua de cultura é representada por um padrão de língua escrita culta. Dessa forma, o Brasil ficava isolado dos outros sete países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que utilizam o sistema ortográfico de Portugal. O Brasil sentirá menos as mudanças porque elas ocorreram praticamente só na acentuação gráfica e na hifenização, enquanto os outros países tiveram de abrir mão de numerosas letras que só eram utilizadas por força da origem das palavras, sem qualquer amparo na pronúncia (ou na fonética). Portugal teve a grandeza de aceitar essas mudanças, pois, afinal, os brasileiros constituem quase 80% dessa população luso-falante – e, portanto, em tese, é compreensível que os restantes 20% se “sacrifiquem” mais. Por isso, é natural que Portugal e os demais países de expressão portuguesa sintam mais as mudanças. Além disso, nos países africanos e no Timor Leste é baixo o percentual daqueles que têm o português como primeira língua. Portanto, para quem ainda não tem o domínio da ortografia, com o novo sistema será mais fácil aprender o português do que com o anterior. Na relação internacional, é de ressaltar que teremos a nossa língua (unificada) oficializada na Organização das Nações Unidas, que hoje reconhece a Língua Portuguesa com as regras de escrita observadas só em Portugal e nos demais países de língua oficial portuguesa (Palops). Com a língua unificada, haverá ainda maior possibilidade de ampliar o Ensino a Distância (EAD) pelos sistemas virtuais. Ao mesmo tempo, haverá um significativo barateamento no custo das edições de livros, pois o mercado será ampliado tanto para as editoras do Brasil e de Portugal como também para as dos demais Palops. Também não serão necessários mais dicionários com verbetes na ortografia brasileira e ortografia portuguesa. Com o idioma unificado, será mais fácil àquela pessoa que não tem o português como língua materna aprender o nosso idioma e torná-lo a sua segunda língua.



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Cabrita e o futuro da lusofonia, Adelto Gonçalves

LETRAS AFRICANAS





A África não dorme. Vive em eterna vigília. Essa é a metáfora que explica A maldição de Ondina, do português-moçambicano António Cabrita (1959), livro que tem tudo para empolgar o leitor brasileiro não só por suas qualidades literárias como pelas marcas de várias culturas afins ao Brasil que impregnam suas páginas. Como toda boa metáfora, o título A maldição de Ondina tem duplo sentido. Ou seja, explica o fenômeno que faz parte da natureza intrínseca dos golfinhos, mamíferos que não podem dormir jamais, já que, para sobreviver, necessitam vir à tona de cinco em cinco minutos para respirar. E, portanto, não podem esquecer a condição em que vivem, sob o risco de desaparecerem.

Não se pode esquecer que a referência à Ondina, ninfa das águas na mitologia germânica, serve também para qualificar uma rara síndrome – em 2006, havia apenas 200 casos conhecidos no mundo –, cujas formas graves exigem que a pessoa receba ventilação mecânica 24 horas por dia. Ou seja: vigília ininterrupta.

Mas explica também o sentir e o estar africano ao longo dos séculos. Um povo – feito de muitas nações, etnias e tradições milenares – que está condenado à permanente vigilância, diante daqueles povos que se mantêm sempre à espreita para espoliá-lo, como fizeram os europeus por séculos a fio. E, agora, ao que parece, fazem os chineses, os colonizadores do século XXI, que estão a explorar as florestas do Norte de Moçambique até o ponto de transformá-las em vasto deserto. Sem esquecer aqueles que saem do próprio povo africano – que, afinal, é resultado de muitas e distintas etnias – e que, no poder, acabam também por espoliá-lo. Mas essa não é uma característica do africano, mas da espécie humana, seja lá qual for a sua matiz de cor.

Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.

Pelo contrário. É provável que estivesse imerso em mais obscurantismo, ao menos sob o prisma da visão eurocêntrica que nunca iremos perder. Não é isso o que se contesta aqui: até porque essa é uma opção irremediavelmente perdida na História. E que remete ao lamento do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) sobre a vida que podia ter sido – e que não foi.

A África é o que é hoje. E ponto final. Entrecruzamento de raças e etnias, suas mazelas – a miséria de muitos povos, a falta de perspectivas para muitos, a opressão de uma classe sobre outras – são iguais às de todos os homens que vivem na Terra – uns mais, outros menos. Uma espécie de Brasil nenhum pouco às avessas. Se aqui o partido que se dizia de esquerda e defendia os oprimidos chegou ao poder pelas vias da democracia chamada burguesa e, naturalmente, não o quer largar, ainda que tenha de recorrer a meios inconfessáveis, ao estilo das antigas máfias napolitanas, lá o partido dos oprimidos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), alcançou o poder pela força das armas, depois de ter, primeiro, colocado o colonialismo para correr e, em seguida, em meio a anos de contendas e mortandades, destruído pelos fuzis adversários que tinham os mesmos objetivos.

No poder, num congraçamento entre “marxistas-leninistas arrependidos” e oportunistas incrustados nas máquinas partidárias, tanto lá como cá, os partidos e seus dirigentes logo esqueceram os miseráveis que tanto defendiam, deixando-se levar pelas delícias do dinheiro fácil das grandes corporações nacionais e internacionais, que, afinal, ninguém é de ferro e a vida é uma só e tem de ser vivida à larga, ainda que à custa da dilapidação do patrimônio público, da corrupção generalizada, do gangrenamento da vida da nação e da destruição dos bens naturais do país. Tudo em troca de “consultorias”, “sobras de campanhas” ou “numerário não contabilizado”, conhecidos eufemismos brasileiros para a maldita taxa de corrupção e outras formas de enriquecimento ilícito. Obviamente, sempre revestidas por “bazófias patrióticas”, como diria o autor.

É o que se pode sentir neste romance de Cabrita, um retrato de uma África pouco conhecida no Brasil, mas facilmente reconhecível, que se desenha na vida de meia-dúzia de personagens: César, luso-moçambicano, professor e escritor de romances policiais; Raul, amigo de César, policial; Beatriz, mulher de César e professora universitária na área de Literaturas Africanas; Argentina, concubina de César por dez anos e gestora numa ONG; Aurora, antiga ama-seca de César e sua cozinheira; e Filipa, irmã de César e médica. Além de outros personagens secundários apenas citados, como a famosa atriz Rita Hayworth (1918-1987), estrela de Gilda (1946), que, entre outros casamentos, viveu com o príncipe Aly Khan, de 1949 a 1953, num palácio na Ilha de Moçambique, para quem, no romance, Aurora – provavelmente, macua ou maconde – teria prestado serviços culinários.

Por trás de tudo, um pano de fundo facilmente reconhecível: uma estrada de terra batida é aberta só para que presidentes (das câmaras) de duas cidades e secretários do partido se visitem; um presidente da câmara de Maputo é atropelado de modo acidental, mas ninguém acredita na versão oficial; enfim, crimes que nunca se explicam, como aquele com o qual o policial Raul se vê às voltas com investigações a respeito de pessoas que desviaram dinheiro para o partido, mas para os quais o partido volta as costas. Como nesse tipo de regime o agente policial anda sempre sobre o fio da navalha, dependendo das facções que estão no poder, Raul trata de colocar as barbas de molho, pois teme que o seu fim possa estar próximo. E pede a César, que nunca teve filhos, que leve o seu “miúdo daqui para fora”, pois não quer que fique com a mãe, em Quelimane, pois “isso seria condená-lo a uma vida medíocre...”.

II

Observador arguto do linguajar moçambicano, Cabrita constrói os diálogos com fidelidade à oralidade, o que permite suspeitar que, em pouco tempo, o idioma de Camões estará totalmente substituído pelo de Shakespeare não só em terras que foram do sultão Mussa Bin-Mbiki como em todo o antigo e vasto império Monomotapa e nas antigas terras do reino do Ndongo, cobrindo todo o “mapa cor-de-rosa” imaginado, um dia, pelos colonialistas lusos. Até porque a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organismo internacional, não passa de uma bela fantasia. E, até prova em contrário, pouco faz em defesa da lusofonia. Que o digam os rebeldes da Casamansa, província do Senegal, que desde 1982 empreendem uma inglória guerra de guerrilha para se livrar da opressão do governo de Dakar e virar país independente na órbita da CPLP.

Cabrita nasceu português de quatro costados, pois é do Pragal, freguesia do concelho de Almada, cidade do distrito de Setúbal, que fica à entrada do rio Tejo, em frente a Lisboa. Mas, como muitos de seus ascendentes, achou de tentar descobrir na África, não a árvore das patacas dos quinhentistas, porém outra maneira de viver. Quem sabe, menos morna e asséptica, porque sob o sol africano e em meio a ameaças físicas e até contagiosas. Como gosta de viver na contramão, foi para Maputo há poucos anos, a uma época em que raros lusos se dispõem a ir para a África e os que de lá retornaram choram até hoje o “império colonial derramado”. Não se arrependeu, pois encontrou material, o chamado “tecido da vida”, para escrever novas e surpreendentes histórias como estas que o leitor brasileiro tem a oportunidade de conhecer.

III

O que se lê neste romance, para quem conhece a vida nas favelas e subúrbios das grandes e médias cidades brasileiras, não haverá de surpreender. Talvez uma ou outra expressão autóctone que o escritor esclarece devidamente em notas de rodapé. Um personagem era bem visto pela comunidade porque colocara a filha a estudar – já estava na 11ª classe –, ainda que o seu verdadeiro negócio fosse o tráfico. Outro, que exibia uma cara da ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos e vivia de biscates. Um terceiro, professor primário, fora abandonado pela mulher, depois de tê-la espancado até quase à morte, com oito meses de gravidez, por causa de ciúmes do pastor.

Em meio a uma natureza paradisíaca, a violência doméstica é corriqueira em algumas aldeias, onde o isolamento parece enlouquecer os homens. “As pessoas catanavam-se à primeira, por medo, cativos. À mínima tensão o marido acusava a mulher de feitiço e a família dele acabava por cataná-la, a cobro da noite (...)”, diz Beatriz. Catanavam-se, ou seja, cortavam-se com facão.

O estilo de Cabrita é de fácil e envolvente leitura, ainda que os capítulos em flash nem sempre permitam acompanhar o foco da narrativa ou o fio-condutor da trama com facilidade, exigindo novas e detidas leituras. O texto, porém, vale por si mesmo, pois não deixa de explorar todas as técnicas desenvolvidas pelos grandes mestres da literatura. Com mestria, Cabrita recorre ao discurso indireto livre sempre que pode: “(...) A sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças, advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o polícia do sétimo”.

A história, porém, é conduzida em torno de César, uma espécie de alter ego do autor, professor, intelectual que vive rodeado de livros, casado com Beatriz, mas que teve uma amante com o sugestivo nome de Argentina. Filho de “boa família portuguesa”, que é como se diz daquelas famílias que conseguiram amealhar um bom patrimônio e dinheiro no banco, César não hesita em chantagear o pai, em troca de que este o deixe levar consigo a amante negra para com ele estudar em Lisboa. Afinal, o pai sabe que ele sabe de sua segunda mulher, “a quem instalara casa nas Torres Vermelhas, em Maputo”. O silêncio vem “em troca de uma passagem para Argentina e de um aumento chorudo na mesada”.

Se não conseguiu entrar no curso de Direito como o pai ansiava, enquanto Argentina concluía o de Economia, César ganhou fama com seu primeiro romance policial, a que se seguiram outros. Quando se sentia secar por dentro, retornava a Moçambique em busca de reciclagem e renovação. Depois de anos com Argentina como amante, resolve casar a sério com a professora Beatriz, talvez em busca de uma união estável. Mas aqui não há como deixar de pensar que, para ele, as “pretas” só servem como amantes, ainda que Argentina seja uma mulher extremamente culta. Ranço do racismo colonialista, quem sabe. Mas, quando o casamento com Beatriz entra na fase morna, César volta a Moçambique, atrás novamente de Argentina, que, a essa altura, também voltara para a África de olho num mestrado no Zimbábue.

Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranqüila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.

Eis a metáfora de volta: na África nunca ninguém pode dormir, o que significa que não se pode esquecer o passado, essa assombração que vai aonde quer que se vá. Em outras palavras: como não podem esquecer o que lhes fizeram, os africanos não conseguem superar o ressentimento e atingir o perdão. Nem perdoar os outros nem a si mesmos. Essa é a maldição que paira sobre a África. A maldição de Ondina.

IV

António Cabrita publicou Oblíqua Visão de um Cristal num Gomo de Laranja ou Perene o Sangue que Arrebata os Anjos Vingadores (1979), Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo (Teorema, 2008), Carta de Ventos e Naufrágios (Teorema, 1998) e Cegueira de Rios (Relógio de Água, 1994). Parte considerável da sua obra poética está reunida em Arte Negra, livro de 2000 publicado pela Editora Fenda. Crítico literário e de cinema de 1988 a 2004 no semanário Expresso, de Lisboa é também editor das edições Íman, diretor da revista Construções Portuárias, autor de contos e argumentos para o cinema.

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(*) Posfácio do livro A Maldição de Ondina, de António Cabrita (Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2011).

E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br

Site: www.letraselvagem.com.br

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(**) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage -- o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).