sábado, 2 de dezembro de 2023

Um homem é muito pouco 17





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Ouvia-os falar de body art, de Duchamp, das instalações de Hélio Oiticica e de Lígia Pape e outros e Clemente nunca tinha ouvido falar naqueles nomes, embora se considerasse sujeito informado e que conhecia o mundo e era leitor de livro. Mas aquele universo de artes plásticas ele não dominava e as palavras queimavam, esquentavam-no, logo se tornavam cinzas e o significado delas eram apenas borralho. Clemente percebeu que era o mais velho do grupo, que ficava calado, com o copo de vinho tinto na mão – o velho olfato de Clemente percebia o buquê, mas era falácia associar olfato com paladar –, que ouvia a gargalhada do grupo e via que Yolanda trocava olhares com Toninho Marcos, ela abaixava os olhos com sorriso nos lábios e Clemente percebia que aquela linguagem ele conhecia. Estava embarcado num navio estrangeiro, que falavam língua estrangeira, tinham gestos estrangeiros, risos estrangeiros, olhares estrangeiros. Clemente tinha medo de desembarcar em Bremen. Não queria ficar em Bremen na casa de Juliana. Diabo de profissão que afasta a gente da família. Quando se volta se é quase um estranho. E a mulher não pode ir pra cama com um estranho, tomar café da manhã na cozinha com um estranho, usar o banheiro com um estranho dentro dele. Yolanda tinha bebido demais.

Vamos embora, disse Clemente.

Não, quero ficar mais um pouco, a gente nunca sai e quando sai você quer ir embora logo.

Yolanda tanto riu que deitou a cabeça no ombro de Toninho Marcos. Clemente não teve ciúme. O que sentiu foi enorme solidão. Estava ali solitário. Solidão tão ampla e desprotegida que o fazia desembarcar em cidade que não conhecia, nem tinha porto para desembarcar.

O espírito de Clemente foi ficando fraquinho. O espírito dele precisava de cama, adoentado, débil dos pulmões, as pernas inchadas de tanto dar voltas e voltas com a cabeça dele. O quarto – a gente não deve duvidar dos quartos – estava cheio de ruas, de beijos, de risos, de olhares furtivos. Os olhos mostram a alma. Como a alma não tem braço e não tem pernas, como a alma não tem músculos e não tem quadris, o modo de a alma mostrar descontentamento é pelos olhos que têm seus músculos, pernas, braços, intenções, medidas, carências e outras partes do corpo e do repertório das emoções.
(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)




segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Vieira na ilha do Maranhão, resenha de Arnaldo Godoy, em CONJUR

 

Vieira na ilha do Maranhão", de Ronaldo Costa Fernandes

26 de novembro de 2023, 8h00

Editorias:  

O romance histórico é um gênero dificílimo para quem escreve. E é um gênero delicioso para quem lê. Há problemas historiográficos por vezes intransponíveis, o que exige ousadia de romancista. E há problemas de composição literária também intransponíveis, o que exige método de historiador.

Segundo Ana Miranda, que se destaca no gênero, ficcionistas são historiadores que fingem mentir, e historiadores são ficcionistas que disfarçam dizer a verdade. O autor do romance histórico é um historiador com imaginação ilimitada e, ao mesmo tempo, um romancista cuja fantasia é pautada pelo tempo que descreve.

Spacca

O romancista-historiador é submisso aos constrangimentos do anacronismo e do presenteísmo. Precisa escrever como se falava (ou se escrevia) na época. Mas necessita também ter em mira o auditório universal do tempo no qual vive. Um paradoxo: escrever na língua dos mortos e ser compreendido na língua dos vivos. Como fazê-lo?

Em “Vieira na ilha do Maranhão”, Ronaldo Costa Fernandes vence todos esses obstáculos. É rigoroso com a história, e é generoso para com a narrativa. O livro explora as ambiguidades do padre Antonio Vieira (1608-1697). Porém, o jesuíta, ainda que nuclear na trama, e colocado no título, não é efetivamente o personagem central do livro. Mas, quem é o personagem central desse delicioso livro?

O personagem central é formado por miríade de personagens, poucas reais, porém meticulosamente descritas, e outras, incontáveis e imaginárias, e também meticulosamente criadas e descritas. O autor compôs com competência um quadro descritivo de quem poderia ter vivido em São Luís ao tempo em que o jesuíta lá esteve, por volta de 1653 a 1651, quando retornou ao Brasil. Já não contava com a proteção de dom João 4º.

Data de 1653 o “Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma”, conhecido pela tentativa de Vieira de convencer os proprietários locais para que libertassem os índios, que viviam escravizados. Trata-se do grande problema que Vieira enfrentou, e que é um dos panos de fundo desse impressionante livro. Nesse sentido, o argumento é também substancialmente atual: qual a relação do colonizador (sic) com o colonizado? Nesses tempos de revisionismo, tudo suscita debate apaixonado. Não é à toa que se quebram estátuas e se reescrevem nomes de ruas e de pontes.

O autor explora com inteligência as imprecisões do Padre Vieira. O jesuíta combatia a escravidão dos índios, porém era a favor da escravatura negra: “o argumento do padre continha elementos de teologia (…) Era preferível que se aprisionasse, pusesse os gentios africanos em barcos insalubres e tumbeiros e os trouxesse para a nova terra do Brasil do que os dispusesse Deus em seus rituais bárbaros, perdidos na selva e na fé. Cativos, postos em ferro, tinham a liberdade da alma (…) podiam morrer em paz e batizados, mesmo que o corpo pertencesse não a Deus, mas a seus donos”. Difícil explicar hoje esse pensamento.

A ênfase no contraste é o núcleo da prosa barroca, e o autor descreve o pensamento de Vieira, no contexto e na forma argumentativa que o padre certamente utilizaria, ou que de fato tenha mesmo utilizado.  A leitura do romance pode ser ampliada com a leitura dos estudos de Alcir Pécora, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e especialista em Vieira.

A Inquisição também está no livro e, em se tratando de Vieira, não poderiam faltar as profecias de Gonçalo Bandarra (1500-1556), o sapateiro-poeta-profeta que tanto incomodou, inclusive a Fernando Pessoa. Há descrição de delitos alcançados pelo Santo Ofício, reais ou imaginários, e o leitor parece ter em frente “O trópico dos pecados”, de Ronaldo Vainfas, ou mesmo as célebres “Confissões da Bahia” que Vainfas reuniu e publicou.

Há também vários temas laterais, porém de importância superlativa. O autor explora tópicos de censura, de práticas genocidas, de transposições culturais, de comportamento sexual, de canibalismo, de medicina colonial, de justiça canônica. Descreve, com pormenor, a antropofagia: “Os mais gordos são os mais apetitosos e desejados, deixando escorrer na grelha a gordura que, salgada, é um acepipe único (…) há quem prefira as entranhas. O fígado é por demais apreciado. O coração o disputam por ser o centro da máquina do corpo e ter fama de dar coragem ao guerreiro. Moqueiam e assam”.

O mais fascinante no livro é o desfile de personagens. O leitor tem a impressão de que está sentado em uma praça, e todos desfilam, com seus problemas, dilemas, características, complexidades: Antonio Porqueiro, Jorge Sampaio, Frei Virgílio, Padre Carcavaz (que cultivava um gosto pela Inquisição), Vicentina (e seu caso com Maria a Lavadeira), Ritinha, Mendonça (emboscado por dois índios que o flecharam), Seu Agostinho, Pedro Nogueira, Dom Aragão, Manuel de Lima, Padre Ambrósio (que entendia de Bíblias e não de enfermidades seculares), Jacomé, Tomás Pires Tavares, Olegário, e tantos e tantos outros.

Há também Rui (que fazia as vezes de médico, prático, que não conseguira estudar na Catalunha ou em Coimbra). Lera Galeno, Hipócrates e Avicena, explorava a biblioteca dos jesuítas, onde estudou os livros de Antonio da Cruz e de Antonio Ferreira, que eram operadores, bem como estudou os clínicos, que o autor sintetiza em Zacuto Lusitano e Ambrósio Nunes. Será que existiram?

Zacuto Lusitano (1575-1642) de fato existiu, foi médico, era de origem judaica, nasceu em Amsterdam, mas não consegui comprovar se viveu no Brasil, embora perseguido pela Inquisição, o que poderia justificar sua presença entre nós. Porém, ainda que por aqui tivesse passado, teria morrido cerca de dez anos antes da chegada de Vieira em São Luís.  Um mistério na narrativa, que somente pode ser esclarecido por uma crítica genética implacável e obsessiva ou pelo testemunho do autor. Melhor: o leitor que imagine. Sabe desde já que a pesquisa do autor foi incansável.

Há também no romance traços de surrealismo, quase imperceptíveis, e quase borgianos, a exemplo de um certo macaco “fêmea, branca, de cabelos alourados e ralos, olhos assustados, sem pelo nos braços e pernas”. Num determinado momento o leitor sente que não precisa mais catalogar todos os personagens, porque, como na vida real de uma cidade, há vidas independentes. Em algum momento o leitor preocupa-se apenas em apreciar as figuras que desfilam no livro e intuir um pouco sobre suas vidas. É transportado no tempo. O autor o cativou totalmente. A única escapatória é ler até o fim, e com vontade de começar de novo.

O leitor acompanha Vieira, despede-se do padre que embarca de volta para Portugal no “Sacramento”, pressentindo o que o esperava. Há, mais à frente, uma cena apocalíptica que lembra o fim dos “Sertões”. Havia três mortos, falecidos pela fome e pela miséria e pela secura da fonte de vida que era os seios de uma mulher (Juliana). Barrocamente, uma criança de boca aberta, sedenta e faminta, é contrastada com um homem que se agarra a um peito descarnado. O jogo de ideias e o dualismo não podem ser maiores. Tudo muito barroco.

“Vieira na ilha do Maranhão”, de Ronaldo Costa Fernandes (maranhense, radicado em Brasília, da Academia Brasiliense de Letras, e também da Academia de Letras do Maranhão, sucedendo a Josué Montello) é, ao mesmo tempo, uma aula de história colonial e uma passeio perspicaz e compreensivo por um tempo cujas contradições e ambiguidades marcam radicalmente nossa cultura e costumes.