segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Retrato do artista quando jovem, James Joyce




                Há um movimento circular, giratório, ao início do romance de Joyce, escrito entre 1904-1914, que permanece por várias páginas e leva ao leitor uma sensação de vertigem. Ao fugir do realismo, Joyce ingressa na narrativa do século XX onde predominará o fragmentário, o recorte, a dúvida antes que a onisciência e o personagem, como diria Zeraffa, engolfado por uma “miríades de sensações”, antes que descrição psicológica, coerente e linear do herói.
                Cabe bem aqui a afirmação de Forster: ”Gertrude Stein triturou e pulverizou seu relógio para dispersar seus fragmentos sobre o mundo como os membros de Osíris. Isto porque quis libertar o romance da tirania temporal, fazendo-lhe exprimir somente a vida dos valores.” Stephen Dedalus é puro papel sensível onde a fotografia do mundo vai sendo impressa. Logo não importam datas ou certa cronologia. Embora a narrativa avance desde a infância até a adolescência, não há explicação ou fixação de datas entre uma cena ou outra, o corte é abrupto e Joyce descreve a atuação do jovem Dedalus como se duas ações fossem contíguas e não houvesse intervalo entre elas.
                Joyce utiliza dois procedimentos, grosso modo, que são a narração pura e simples das ações dos personagens e, em vez da análise psicológica, aprofunda o perquirir do comportamento mental de Dedalus ou o seu estado de espírito. O grande drama do personagem adolescente é a luta do pecado dentro do espírito de formação católica e, mais ainda, jesuítica. As emoções tumultuadas do personagem fazem o autor suspender a ação e descrever as impressões do personagem, seja diante da casa da amada, seja no prostíbulo da cidade.
                “Queria pecar com alguém da sua espécie, forçar um outro ser a pecar com ele e exultar juntos no pecado. Sentia qualquer presença mover-se irresistivelmente para ele das trevas, uma presença sutil e murmurosa como uma torrente enchendo-o todo. O seu murmúrio alcançava seus ouvidos como o murmúrio de qualquer multidão em sono.”
                O clima de catolicismo exacerbado me incomoda (alguns dirão que a essência do livro é a discussão teológica, e eu aceito). O que me causa certo tédio não são as discussões teológicas, mas, por exemplo, a exaustiva, longa, desinteressante apresentação do retiro espiritual feita por membro do clero explicando (sem dialética) o que vem a ser aquele momento de religiosidade para os alunos que o ouvem. Não há criatividade, parece que Joyce copiou de algum catecismo as três páginas de lugares-comuns.
                O romance toma outro rumo, mais denso, original e ativo quando o personagem, instado a ser padre, reconhece sua mundanidade e sua opção pela vida não religiosa. O drama que antes era pueril, agora se torna mais adulto e o romance empina-se.
                Desagradam-me um pouco as mudanças de estilo, ou se quiserem, as mudanças de discurso. Há três modalidades de expressão que não se mesclam: uma mesma longa cena pode conter as três, separadas apenas por indicação de parágrafo. São elas: primeiro, as ações mais simples, quando o discurso se torna referencial como a ida ao colégio, as conversas, as descrições de paisagem (poucas). A segunda, num nível outro de construção, estão os pensamentos sobre cultura, feitos de forma mais clara, incluídas aí considerações concretas sobre a realidade do colégio, da vida familiar (observar que elas se tornam mais densas quanto mais o personagem passa da infância à juventude), mas de qualquer maneira são elaboradas como num ensaio. Nesta última podemos citar a seguinte passagem (para os brasileiros curiosa é passagem em que aparece a frase que será título do livro de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, sugerida pelo amigo Lúcio Cardoso):

“Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele estava desligado de tudo, feliz, perto do coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem.”

                E a terceira refere-se a uma expressão mais nebulosa, típica do impressionismo pelo qual Virginia Woolf advogava, inclusive aproximando a narrativa à pintura, perguntando-se porque a prosa não podia ser prenhe de descrições da desorganizada vida mental submetida às impressões da realidade como nos quadros dos franceses do fim do século XIX. (RCF)