sábado, 2 de fevereiro de 2013

Trecho de Um homem é muito pouco, romance




Ele trazia o mesmo e velho camarote dentro dele. Onde estivesse, num hotel em Nova Orleans ou no Recife, no navio ou numa pensão ordinária, em qualquer lugar que estivesse sempre estava no camarote dele. Clemente tinha a estranha sensação de que até mesmo na morte não seria enterrado num caixão, mas num camarote. Baixariam o camarote no buraco, haveria reza, choro de poucos e ele passaria a eternidade de cinco anos, quando as carnes acabam e não servem mais de pasto aos vermes, num camarote. Vinha-lhe a ideia absurda e distorcida – um pouco irônica, mas que Clemente gostava de alimentar – de que não fora gerado num útero, mas num camarote, passara nove meses num camarote e fora parido. A mesma sensação tinha ao ar livre. Quando queria estar só, a multidão o incomodava, sentia-se alheio a tudo, entrava no camarote imaginário e lá ficava, em silêncio, pensando nas coisas miúdas de sempre que pensava quando estava embarcado e ia para o camarote.
Yolanda era péssima cozinheira, e não queria saber cozinhar. Mas com Clemente na cozinha, começou a aprender alguns truques como tratar o alho para não azedar, despelar o tomate e outros pequenos artifícios que, se não fossem bem utilizados, podiam fazer da comida mistura de elementos disparatados ou conjunto harmônico para o paladar. Para Clemente, Yolanda era agradecida por ter salvado a filha dela, mas devia manter antipatia tremenda em relação a ele. Pouco falava com ele e, quando falava, evitava os olhos de Clemente. Os olhos de Yolanda eram olhos perdidos. Ou melhor, os olhos de Yolanda eram tão azuis e tão belos que eram pequenos recortes de mar. Clemente gostava de olhar para os olhos de Yolanda e mergulhar nas águas claras, mas cheias de arrecifes. Ele sabia que aqueles olhos também podiam ferir.
Embora fosse canalha, conforme opinião geral, Clemente teria que ouvir a outra parte, os que defendiam Josué, mas como dizia, conforme a opinião geral, o marido de Yolanda podia não valer nada, mas tinha Yolanda na conta de joia valiosa. Não era valiosa apenas porque era herdeira de fortuna, mas era valiosa pelo corpo de alabastro, pelos olhos oceânicos, pelos seios mais perfeitos que já tocara, pela suavidade da voz que era música, pelas feições tão finas que parecia ter sido montada com pedaços de outras mulheres: o nariz de uma, a boca de outra, as maçãs do rosto de uma terceira artista de cinema, miss ou mulher que a unanimidade chamava de bela.
Yolanda era animal múltiplo, sempre em cio para os homens que lhe sentiam o cheiro de fêmea, as coxas gregas, o colo com que são desenhadas as deusas nas gravuras mitológicas ou apareciam nas revistas de mexericos como Cinelândia que, uma década antes, estampava as divas de Hollywoodona
Por seu lado, Clemente viu crescer o interesse por Yolanda – já não chamava mais de dona, dispensado que fora depois da viagem de volta. Ele, entretanto, logo percebeu que os sustos dele, o nervosismo diante dela, o atrapalhamento, tudo isso era coisa que ele conhecia de sobra e era senhor de suas conquistas, mas pela primeira vez voltava a ser grumete, voltava a ser aprendiz, ela o rebaixara à adolescência dos sentimentos. E a conquista, se conquista queria ter com a sua senhoria que lhe dera quarto de várias janelas – as coisas no mundo não são gratuitas, talvez Yolanda, sabedora de que a janela de Clemente era a escotilha, quis lhe recompensar com duzentas escotilhas, talvez porque desaprendera a arte de amar, tão machucada que fora por Josué e seu corpo e mente minorados – pois bem, se Clemente queria conquistar sua senhoria, primeiro tinha que tirar da mente a palavra senhoria e depois aprender o que desaprendera e que a natureza sabia de sobra ensinar, como ensinava os pássaros a cantar, os bisontes a darem chifradas entre os machos na hora do cortejo da fêmea, a plumagem exagerada dos outros voadores, o estufar do peito de certos animais, as danças exóticas e desencontradas de outros bichos que não sabiam que dançavam e não sabiam que o faziam com deselegância embora às fêmeas de sua espécie aquele canto e aquela dança eram o refinamento maior da conquista das raças.
Deus criara o cio das fêmeas e deu olfato aos machos. Clemente teria que aprender com outros de sua espécie a arte da conquista que já soubera em outros tempos, mas que a beleza e classe social de Yolanda o transformavam em bicho que bufa para conquistar, outros ainda esperneiam – talvez espernear não fosse o método mais correto –, há ainda outros que se mutilam – método muito doloroso –, alguns cantam, andam em roda como índios, emitem cheiros nauseabundos para humanos, há aqueles que abrem asas se têm asas.
Mas Clemente não precisou reaprender nada, porque a lei da atração é mais forte e os dois iam subindo a escada e ela se desequilibrou, ele a amparou e ela caiu nos braços de Clemente e quando viram estavam se beijando, se tocando, tirando a roupa um do outro, dentro do quarto de duzentas escotilhas de Clemente que teve de fechar as persianas que caíram desajeitadas e brutas para fazer noite o dia no quarto a fim de que não apenas não os vissem de fora, mas a penumbra diminuísse o pudor e ela pudesse ser plenamente fêmea e ele plenamente macho.
Durante os dias seguintes o quarto estava presente em toda a casa. A cozinha passou a ser quarto, as escadas passaram a ser quarto, a sala passou a ser quarto, o banheiro passou a ser quarto. E qualquer superfície virou cama, cama dura, cama de madeira, cama de azulejo, cama de chão. Isso porque nunca a empregada fora tão dispensada e fora tanto ao cinema levar a filha de Yolanda, a menina Aninha que sofria de gritos e convulsões e que nunca mais teve gritos e convulsões e como era época de férias escolares até mesmo uma viagem para o interior de Minas Yolanda preparou para que a empregada fizesse de dama de companhia que dama de companhia não mais existia, mas Yolanda, com seu linguajar de outro tempo e de outra classe, deu à empregada termo novo e função outra a fim de que ela pudesse mudar a arquitetura da casa da Tijuca e transformasse tudo em quarto e cama a fim de serenar o furor da espécie quando mistura paixão e sexo ou faz sexo com paixão ou se apaixona e faz tanto sexo que parece que o corpo que é único pode se exaurir de tanto amar e definhar de tanto gozo e felicidade.