quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

O sonâmbulo, poema RCF














Tudo se inflama 
ao toque do dedo 
em chamas.
O cabelo do tapete 
despenteia-se
aos pés de vento.

O sonâmbulo que em mim caminha
conhece todas as variações do solo.




(do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

O viúvo, 2º capítulo



Resultado de imagem para vivian maier






Não sou dos que pensam que a noite apazigua. Mesmo protegido, a sensação é de que há um furto qualquer e que a noite está cheia de roubos que se perpetuam sem que se saiba o quê exatamente foi roubado. Sonhei com ela de forma diminuta. É a vontade que tenho de diminuí-la, digo logo, ela que é tão gigantesca para mim. Então no sonho ela tem o tamanho e a espessura de um cartão de telefone. Coloco-a no bolso da camisa.
 Ando com ela pela cidade. Entro num armarinho que em vez de ilhoses, zíperes, botões e colchetes, vende apenas pernas, mãos, braços e pés mecânicos. O senhor deseja algo, posso ajudá-lo? pergunta o senhor careca com forte sotaque alemão. É o gerente da loja. Enquanto fala comigo esfrega ansioso as mãos. Os lábios são constantemente umedecidos pela língua. Encaro aquilo como licenciosidade. Recuo dois passos, olho para trás, não existe mais a porta por onde entrei.
O armarinho se transforma em imenso galpão e as pernas, pés, mãos e braços mecânicos passam a ser de carne. Estão pendurados como num açougue. Toda a movimentação é de matadouro. Esteiras, ganchos, operários de jaleco e barrete cortam, examinam, selecionam pedaços de gente. Ela, como está no meu bolso, sente meu coração bater mais rápido e pergunta se estou nervoso.
– Você está nervoso, meu bem.
– E não era para estar?
– Eu, ao teu lado, não te dou paz.
– Esta é a maneira de estar ao meu lado?
–Fica calmo.
– Este homem é um maluco.
– Que homem?
– O alemão.
– E por quê?
– Não está vendo?
– Sei, pelos membros expostos.
– São restos de pessoas, é carne humana, e você acha tudo natural. Estou num matadouro, açougue, frigorífico ou coisa que o valha e tudo aqui é perna, coxa, pedaços de gente e você acha tudo isso natural?
– Você se escandaliza com tudo.
– E não é para me horrorizar?
– O horror está aqui.
– Aqui onde?
– Em casa.
– Em casa?
– Olha as frestas.
– Que tem as frestas?
– É uma forma de corte.
– As rachaduras na parede então são cortes como um corte na pele, é isso que você quer dizer?
– Os cortes...
– Você diz as rachaduras.
– As rachaduras são daninhas e nervosas.
– É um apodrecimento das paredes.
– Não, é uma forma das paredes respirarem.
– Se você meter a mão vai esfarelar tudo. A umidade estragou a parede.
– Não é umidade. A parede sua. 
– Ah, a parede sua.
– E outra coisa.
– Diga.
– A casa é um grande intestino.
– Ora, me deixe.
– Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair pra fora.
– Me deixe em paz.
– Você já está em paz.
– Desde que você se foi que não tenho mais paz.
– Não seja sentimental.
– E você sabe disso.
A sujeira está sempre em carne viva. Os lençóis são redundantes. Eles têm o meu cheiro. Então me sinto em mim, deito sobre mim, cheiro-me, empapo-me do que sou, do suor do bicho gosmento que à noite rumina. O que em mim rumina não é coisa aproveitável, é o bolo gástrico do pensamento que não me deixa dormir, faz insones as paredes, dá voz à pia. Quando D. Benedita não está aí não entro na cozinha porque posso ser tragado pela fedentina da casa. Todo meu lixo é orgânico. Não existe casca de laranja ou a laranja mesmo. O que está ali é um pouco da boca que a chupou. Do estômago embrulhado que a deglutiu. Sou um animal gorduroso e fescenino, por isso não gosto do bicho cozinha que pode me engolir e não me vomitar mais.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Garrincha, alegria do povo, poema RCF

 

 





Em algum lugar,

            estrela solitária,

            estarás brilhando como Macunaíma,

                        Herói de nossa raça,

                        Cantinflas do Maracanã,

            confirmando

            então

            que Deus escreve certo por pernas tortas.

 

Cabo Garrincha,

                        servindo no 3 quartel do século,

                        subordinado a General Severiano,

                                                                       sentido!

 

Que sentido tem as pernas

                        vazias,

                        caminhantes,

                        sem bola?

 

Tu,

            homem de lata

            – como os cachorros –,

            leão medroso,

            espantalho alvinegro

            – os corvos te dão injeção –,

            sucumbes,

                                    ao alarido da geral,

                                    coro de insanos do coliseu.

 

  Agora

            vives nos noventa minutos

                                               da eternidade.

            Onde só há empate,

            numa partida sem fim,

            driblando o tempo,

                                    no replay das coisas imutáveis.

 

Onde estão teus companheiros de time?

            Time dos bêbados, desastrados,

                        jogadores de bilhar de subúrbio,

                        ingênuos, anotadores de jogo de bicho,

                        párias e poetas,

            que têm a mesma sensação tua

                        um minuto antes da morte:

                        chutar a gol fechado por 11 goleiros.

 

Quando desapareces da

                        memória

                        dos homens

                        que te viram,

                        os filmes não revelarão a mágica dos teus dribles

                        – os filmes não têm cheiro, não suam nem pulsam–

                        e serás apenas mito

                                               que é uma história

                                                           contada

                                               pela imaginação dos homens.

Alegria do povo

 

 

Em algum lugar,

            estrela solitária,

            estarás brilhando como Macunaíma,

                        Herói de nossa raça,

                        Cantinflas do Maracanã,

            confirmando

            então

            que Deus escreve certo por pernas tortas.

 

Cabo Garrincha,

                        servindo no 3 quartel do século,

                        subordinado a General Severiano,

                                                                       sentido!

 

Que sentido tem as pernas

                        vazias,

                        caminhantes,

                        sem bola?

 

Tu,

            homem de lata

            – como os cachorros –,

            leão medroso,

            espantalho alvinegro

            – os corvos te dão injeção –,

            sucumbes,

                                    ao alarido da geral,

                                    coro de insanos do coliseu.

 

  Agora

            vives nos noventa minutos

                                               da eternidade.

            Onde só há empate,

            numa partida sem fim,

            driblando o tempo,

                                    no replay das coisas imutáveis.

 

Onde estão teus companheiros de time?

            Time dos bêbados, desastrados,

                        jogadores de bilhar de subúrbio,

                        ingênuos, anotadores de jogo de bicho,

                        párias e poetas,

            que têm a mesma sensação tua

                        um minuto antes da morte:

                        chutar a gol fechado por 11 goleiros.

 

Quando desapareces da

                        memória

                        dos homens

                        que te viram,

                        os filmes não revelarão a mágica dos teus dribles

                        – os filmes não têm cheiro, não suam nem pulsam–

                        e serás apenas mito

                                               que é uma história

                                                           contada

                                               pela imaginação dos homens.