sexta-feira, 15 de maio de 2020

Um homem é muito pouco 24


    
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            A casa tem mais habitantes. 
            Está cheia de percevejos, baratas e outros insetos. 
            Nunca vi um percevejo. Se percevejo é bicho redondo de várias patas, já vi percevejo. A impressão que tenho é que estão dentro de mim. De noite me coço e não sei que família de bicho me ataca. Passei muito tempo inerte, paralisado, alimentando-me do sangue das sopas ralas. Não tenho os nervos abalados, não, tenho poucos nervos. E meus nervos estão cheios de percevejos.

            Eu contratara uma empregada que vinha aqui duas vezes por semana. D. Etiópia. Eu dizia pra ela que o nome dela era nome de país, ela ficava me olhando e talvez pensando que eu era meio gira. D. Etiópia é uma branca gorda e forte e não tem nada a ver com a Etiópia. Como a Itália, na Segunda Guerra Mundial, invadiu a Etiópia, numa ópera bufa, d. Etiópia podia muito bem ser filha de emigrante pobre italiano que deu o nome atravessado para a filha. Mas Etiópia não tinha nada de italiana, a não ser a gordura napolitana e a força mafiosa de suas mãos capaz de suspender um homem em cada mão. Depois não tive como pagar d. Etiópia e a casa foi sendo tomada pelos bichos. Toda minha louça está suja e engordurada na pia. As baratas se equilibram sobre o copo, outras sobre o cabo das panelas, outras até fizeram ninho no interior de uma lata aberta. As formigas passam por mim indiferentes e sem medo. As formigas não têm medo. Não há na fisiologia da formiga nenhuma glândula que excrete o medo. Se pudesse arrancava a minha glândula que secreta medo. Iria até o dentista e pediria ao dr. Máximo que me tirasse a glândula do medo e ele responderia que não era cirurgião, o que fazia era extrair dente e, além do mais, não queria se meter em minha vida, mas nunca tinha ouvido falar em extrair a tal glândula do medo. Dr. Máximo é tão velho que a glândula do medo dele deve ter secado. A loucura e a velhice devem entupir a glândula do medo. Só um sujeito com a idade de dr. Máximo ia até o puteiro de d. Sereja sem medo. E a razão era que a glândula do medo dele não excretava mais líquido nenhum.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010.)

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terça-feira, 12 de maio de 2020

A insalubridade dos pensamentos, poema RCF


 
Antes que numa cidade,
o homem habita
a metrópole do corpo.
Na fronteira da pele,
há vários tipos de passaporte.
Por mais que se vigie,
deixa os contrabandos do sexo e do amor
burlarem a aduana da vigília.
O outro é um imigrante ilegal,
que finge, tem outra foto no documento,
troca de nome e de carícia,
até se instalar não mais na periferia,
mas na cidadania do coração.

O homem leva seu território
por onde viaja
ou mesmo na dita sua cidade,
mas não pode fugir de si,
logo constrói o muro das lamentações
ou derruba o muro de Berlim
que o oprime e delimita.
As veias e artérias da sua
cidade murada pela pele
permitem que ele se mude
sem se mudar e,
assim, em sua terra de carne,
vai o homem prisioneiro
do seu corpo
como numa cidade medieval,
cheias de becos e ruas sem saída,
cercada pela insalubridade
do triângulo.

(do livro O difícil exercício das cinzas. rio: 7Letras, 2014)
pintura: otto dix