quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Cartão poético

 




(publicado no facebook do poeta Carlos Machado que mantém o blog Alguma poesia)

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Tattoo, poema RCF






As tatuagens são grafites
na pele que só desaparecem
na morte, onde a parede murcha,
o muro apodrece, e o tattoo
migra para a alma,
que tem outra espécie de grafite,
as cicatrizes das perguntas
que logo desaparecem
– algum cretino vem e sopra
a chama da vela e deixa escuro
o que era inquieto e bruxuleante.

As tatuagens na alma
têm sua tabuada do medo,
lá onde um e um nunca serão dois,
porque nela não existe soma,
apenas a subtração dos vestígios.
As tatuagens da minha alma são feitas do desassossego do linho,
que, mesmo engomado, não suporta pressão,
tem a engenharia das obras abandonadas
que por sua vez são uma espécie de tattoo sobre a pele do tempo
e à incúria de Deus que não gosta das cidades.

Todo meu corpo é devoluto,
terra grilada ou invasão,
Meu muro é minha pele lúcida
que vai se esburacando
e meu contrato é com a imaginação
e se alguma certidão tenho
é a certidão de nascimento do fim.


(do livro Memórias dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)

Timbales, poema RCF

Resultado de imagem para Annie Leibovitz


O poeta não gosta dos papéis que não escrevem.
Não gosta dos formulários onde nenhuma poesia é possível.
O poeta rejeita os escaninhos porque nos escaninhos
não é possível escrever a palavra nunca.

O poeta gosta é da folha em branco
porque sabe que os poemas já estão escritos na folha em branco.
O poeta escreve a ponta de faca, o lápis tem gume
e a folha se abre na gordura branca da carne exposta.

A fila serpenteia e o poeta olha as cabeças como timbales
de onde saem notas.
O poeta sonha com a folha em branco
onde estão escondidas as palavras.




(do livro Andarilho, 2000)





terça-feira, 6 de outubro de 2020

A vida tem pés pesados, O difícil exercício das cinzas


radu belcin
Tomba o flash do dia,
acende a escuridão da noite.
O elástico da emoção se estira.
A flor mais bonita do meu jardim é venenosa.
E vem o martelo da obsessão
que bate e rebate.
A vida – tem que saber tocá-la
como um chapa
que não se sabe
se queima ou esfria.
Aqui visto meu pijama listrado
e deito no catre
de prisioneiro do pensamento.
O suco gástrico da fome
se alimenta de mim.
O dia retrátil que se
nega quando se deseja,
minando por fora
como um olho d’água.
(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

Um homem, poema RCF



 



Não conhece os homens,
nem as marés, nem o murmurar do vento.
Quer ser a rocha,
imune e presa a si mesma,
que se desgasta aos poucos
à passagem solar dos séculos.

Quer a paz dos gerânios,
que sopra dentro dele
como uma brisa marítima.
Quer a simplicidade do pão
que se divide e alimenta a manhã,
ser apenas:
o vento, a pedra, um homem.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


(pinacoteca de são paulo: bruno giorgi)

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Medo de voar, poema de Memória dos Porcos


Os aviões estão parados no ar
como pássaros que se aninham
nas nuvens, rochas brancas de névoas.
Só um instrumento o homem necessita:
o altímetro para medir
a altura da sua queda.
Se fosse trezentos, trezentos e cinquenta,
fretaria um avião de eus para voar.
Mas não tem nem certeza
de que viaja no seu lugar vago.
O corpo que carrega
é como camisa emprestada,
em algum momento,
sonha que terá que devolver
camisa ou corpo.
Quando está só
nunca se acompanha.
Ser trezentos deve ser
muito barulhento.
Não se ouve
e por isso é surdo à felicidade
que é multitudinária, manche,
e só tem posição para subir.
Já o sonho é uma aeronave
perigosa porque só tem o instrumento
do inconsciente.
E o inconsciente não costuma ser bom piloto
e gosta da turbulência dos abismos.
Dentro dele não há imagens moventes
como nos filmes que são sucessão de fixidez.
Dentro dele, só há fotodrama.
Nada se move, além, é claro,
surrupiando, a velocidade da morte,
zás, um segundo, e oxida o sonho.