sábado, 12 de setembro de 2015

Carta para João Cabral de Melo Neto


Pediram-me um carta para o poeta a fim de incluí-la em livro. Eis a carta:

 

 

 

Caro poeta,

 

 

Leio-o e releio-o e não recordo de você ter comentado de que somos uma contradição bípede. Um ser metafísico pragmático, um religioso pagão. Tão metódico, tão “científico”, você também era frágil como seu corpo. Sua neurastenia não tinha ordem, não era controlada pela matemática. Ao contrário, a neurastenia nasce nas dobras da paixão. Além dos temas seus recorrentes, pergunto-lhe: nunca considerou a presença da temática de Deus e o diabo em sua poesia? Ora, você me responde que era ateu e marxista. Nada disso impede de trazer dentro de si o sertão onde os dois se desafiam. Eu diria que, mesmo antes mesmo de haver sertão, em Espanha, que tanto você amou, eles lá inquisitorialmente se enfrentaram. Ouso afirmar que você foi para Barcelona porque sabia que lá retornava à origem da metafísica que negou, mas que sempre existiu em sua poesia. Onde está a bainha onde se coloca uma faca só lâmina? E o que dizer do auto de Natal Morte e Vida Severina? Não foi buscar o modernismo de Miró, foi atrás de Deus e do Diabo, da luta fratricida e eterna entre razão e emoção, embora eu desconheça se o diabo é a razão ou se Deus é a emoção.

                Tudo isso é desnecessário responder porque sua poesia é maior do que qualquer pergunta e mesmo superior a qualquer resposta. Deus e o diabo já o acossavam na juventude. Lembro-me do relato de Lêdo Ivo, que aos vinte ou vinte um anos, foi visitá-lo no hospital psiquiátrico em Recife, antes de os dois se tornarem grandes poetas. Lêdo, arrebatador, vibrante, louco pela luz e alegria das praias de Maceió e você atraído pela mesma luz de duzentas janelas abertas, só que a luz de Lêdo era vida e a luz sertaneja era morte. A do alagoano era luz marítima, salgada e abundante, a sua era luz gretada, feita de barro, uma luz descarnada.

                Certa vez você deixou escapar que mesmo medindo com régua a poesia, deixava que o improviso o tomasse. Queria passar uma imagem de construtivista e os homens de razão (você foi mais Valéry que o próprio Valéry) elaboram previamente seus atos, mesmo que sejam atos poéticos. No fim da sua vida, tomei-me de compaixão por sabê-lo cego. Viveu os últimos anos de sua vida nas sombras que tanto odiava, nas penumbras que só levam à solidão dos sentimentos distorcidos, ambíguos, amargos e turvos.

                O diabo é o latifundiário, o capitalista, o dono das terras, o industrial. Mas não somente. O diabo também eram as ideias fixas da faca sem lâmina. O diabo era o próprio cenário, o sertão que o invadia. O sertão está em todos os lugares, disse seu companheiro de sertão Guimarães Rosa. Os sertões são vários sertões. O sertão de Rosa, o seu sertão, o sertão baiano e messiânico de Euclides.

                Embora na Venezuela existam los llanos, na província central do país, que é uma região seca, de ganaderia e penúria, era difícil para meus alunos absorverem o sertão sem til. De origem ibérica, era fácil entender a literatura de cordel, pois lá também havia algo assemelhado, mas o conceito de sertão, sabemos nós, é algo maior que a geografia.

                Eu não vejo na literatura de hoje nada mais avançado que sua produção dos anos 50 e 60 do século passado. A grandeza de sua poesia é uma lição para outros poetas brasileiros. E mais: poucas expressões da poesia internacional têm a sua grandeza. O diabo – e aí Deus nem aparece – é que você escreve em português. Você poderia ter sido nosso primeiro prêmio Nobel.

                Vicejam por aí velhos modismos, requentadas vanguardas, descobertas da roda poética que já são centenárias. Nunca estive com você, nem nunca me interessei em vê-lo. Lamento você não estar mais entre nós. Bastava-me e basta-me sua poesia que o fará atravessar os séculos.

 

                                               Com um abraço,

 

                                                                                                                             Ronaldo

O tempo das esperas, Alexandre Marino


 

 
                                                      Para Nádia

 

Quando de nós nada restar além da alma,
e tudo for passado ao fim do futuro,
faça de contas que a luz quando se apaga
não torna mais ausente o que é escuro.

Faça da ausência uma doce harmonia
que vem e traz o tempo entre pausas,
guarde no caderno de sonhos esses dias,
para que também não restem traumas.

Mire o horizonte além de outras ilhas
e além dos limites das jaulas e das celas.
Já desvendamos os possíveis enigmas
e nossa vida para sempre será terna.
Por certo terá sido longa, mas como medi-la
se não podemos contar o tempo das esperas?




 

 


 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Tesouro da Juventude, Cortázar



      
 

 

      As crianças são ingratas por natureza, coisa compreensível, pois apenas imitam seus amorosos pais; assim, as de agora voltam da escola, apertam um botão e se sentam para ver a novela do dia, sem pensar um instante nessa maravilha tecnológica que é a televisão. Por isso não será inútil insistir ante os párvulos na história do progresso científico, aproveitando a primeira ocasião favorável, digamos a passagem de um estrepitoso avião a jato, para mostrar aos jovens os admiráveis resultados do esforço humano.

      O exemplo do jato é uma das melhores provas. Qualquer pessoa sabe, mesmo sem ter viajado neles, o que os aviões modernos representam: velocidade, silêncio na cabine, estabilidade, autonomia de vôo. Mas a ciência é por definição uma busca infindável, e o jato não demorou a ficar para trás, superado por novas e mais portentosas mostras do engenho humano. Com todos os seus avanços, esse aviões tinham numerosas desvantagens, até o dia em que foram substituídos pelos aviões a hélice. Essa conquista representou um importante progresso, porque voando a pouca velocidade e altura, o piloto tinha maiores possibilidades de fixar o rumo e de efetuar as manobras de decolagem e aterrissagem em boas condições de segurança. No entanto, os técnicos continuaram trabalhando em busca de novos meios de comunicação ainda mais vantajosos, e assim anunciaram consecutivamente dois descobrimentos capitais: referimo-nos aos barcos a vapor e à ferrovia. Pela primeira vez, e graças a eles, chegou-se à extraordinária conquista de viajar ao nível do chão com a inestimável margem de segurança que isto representa.


       Acompanhemos paralelamente a evolução dessas técnicas, começando pela navegação marítima. O perigo de incêndios, tão freqüentes em alto-mar, incitou os engenheiros a encontrarem um sistema mais seguro: assim foram nascendo a navegação a vela e mais tarde (embora a cronologia não seja garantida) o remo como o meio mais vantajoso para propulsar naves.
 

      Tal progresso era considerável, mas volta e meia os naufrágios se repetiam por diversas razões, até que os avanços técnicos proporcionaram um método seguro e aperfeiçoado de locomoção na água. Referimo-nos, é claro, à natação, além da qual não parece haver progresso possível, embora a ciência seja pródiga em surpresas.


       Quanto aos trens, suas vantagens eram notórias em relação aos aviões, mas foram por sua vez superados pelas diligências, veículos que não contaminavam o ar com a fumaça do petróleo ou do carvão e permitiam admirar as belezas da paisagem e o vigor dos cavalos de tiro. A bicicleta, meio de transporte altamente científico, situa-se historicamente entre a diligência e o trem, sem que se possa definir exatamente o momento de sua aparição. Em compensação sabemos, e isto constitui o último elo do progresso, que o desconforto inegável das diligências aguçou o engenho humano a tal ponto que não demorou a ser inventado um meio de transporte incomparável, o de andar a pé. Pedestres e nadadores constituem assim o coroamento da pirâmide científica, como se pode comprovar em qualquer praia ao ver as pessoas passeando pelo calçadão e observando satisfeitas, por sua vez, as evoluções dos banhistas. Talvez por isso haja tanta gente nas praias, pois os progressos da técnica, embora ignorados por muitas crianças, terminam sendo aclamados pela humanidade inteira, sobretudo na época das férias remuneradas.    
 
 
 
(Júlio Cortazar, Último Round, 1969)


(foto: radu belcin)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O regresso, Manuel António Pina (1943-2012)






Como quem, vindo de países distantes fora de
si,chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.




Ritos de passagem, William Golding


Ritos de passagem é uma escrita à antiga, à maneira do séc. 18 ou 19. O grande perigo: o romance de Golding é um romance à antiga tout court. Não só escreve à maneira de como também tem cheiro de mofo de nau antiga. O drama do reverendo não tem tanto impacto do ponto de vista de hoje. O romance histórico contemporâneo opera com dois tempos: tempo da história x tempo da escritura. Se não houver maneira nova de fazer o velho, o romance histórico passa a ser bobagem escrita como imitação barata de antigüidade vendida em loja de departamento.

William Golding ( 1911-1993 ), prêmio Nobel, mais conhecido pelo seu O senhor das moscas, serviu na Segunda Guerra. É daí que vem o conhecimento náutico do autor. Conhecimento que cansa o leitor com tantas referências técnicas. Roland Barthes fala de um barômetro em Madame Bovary que não teria significado no texto além de produzir ilusão referencial. Aqui os “barômetros” abundam.

O autor nos induz a ler o livro dentro do marco da teatralidade. Frequentemente cita marcações de teatro, recorda lições de drama e, por fim, ao final, existe uma representação teatral feita pelos passageiros. O navio, é claro, é alegoria da sociedade, reduzida em espaço minúsculo. Mas, antes do teatro, o que existe ali é a velha luta do homem x barbárie. Se em O velho e o mar, o personagem luta contra um peixe, assim como em outras narrativas náuticas o mar é o grande adversário, aqui, na duração de uma viagem, o grande vilão é o próprio barco, que encarcera os homens e animaliza-os.

Ritos de passagem, publicado em 1981, ganhador do maior prêmio inglês (Booker Prize), primeiro de uma trilogia, é narrado principalmente pelo nobre Talbot e, subsidiariamente, pelo reverendo Collie, através de seus diários. Híbrido de romance epistolar, romance de formação, Ritos de passagem não consegue criar o Horror com que é anunciado. Golding não chega nem aos pés da tensão, horror e grandiosidade criados, por exemplo, numa outra viagem náutica ao mundo colonial inglês como No coração das trevas, de Conrad.

O romance inicia-se lento e um pouco disperso. O leitor não chega a perceber aonde o autor que levá-lo. Caracteriza o narrador como nobre e impiedoso, mas as maldades de Talbot são contradições comuns aos homens. Há um caso fortuito e de romance de capa e espada com uma mocinha de nome Zenóbia que, praticamente desaparece o resto do romance. Só a partir da metade do livro é que o ritmo de suspense, mistério, desconfiança, tramas sutis é estabelecido. E aí o leitor, não há como negar, deverá ser tomado por uma volúpia de leitura.

A ironia de Golding é pesada. Ora, a Inglaterra gerou alguns dos maiores humoristas e satíricos da história da literatura. A ironia de Golding existe, mas é tão rígida e não corresponde ao formidável humour de Fielding, Sterne, Swift ou mesmo a ironia culta de Oscar Wilde. A ironia poderia aliviar o tom passadista do romance de Golding. De qualquer maneira, penso que para o leitor comum, que busca apenas passatempo, a leitura de Ritos de passagem pode ser entretenimento refinado. Ultrapassados os objetos de náutica espalhados no convés da narração, a leitura flui, prende e cria a surpresa final.

Curioso é observar como o diário de Talbot passa a ser um instrumento de chantagem, de insinuações de ameaça e constrangimento. O capitão teme como será representado nele. O diário vira escrita dentro da escrita. Desta forma, o diário não é metáfora da literatura, mas da força da palavra que pode escrever a “realidade”. A palavra não tem o dom de nomear o mundo e, por força de origem, criá-lo. É mais um instrumento de perversão. Um depoimento que pode mudar o rumo da realidade, bastando apenas que se mudem as palavras.

A viagem marítima já foi vista como a mais cobiçada forma de experiência ( Benjamin ). Golding pertence a um país marítimo ( Inglaterra ), com seu poderio naval, que já nos abasteceu com uma bibliografia imensa sobre o mar. O título do livro é significativo: formação e penetrar mundo novo. O rito de passagem antropológico e atravessar o equador, passando do mundo da cultura para o mundo da barbárie, o trópico, as Antípodas que é a Austrália. No fundo, é a visão eurocêntrica: abaixo do equador está o Mal.




imagem retirada da internet: william golding

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Soneto 31, José Chagas







Ah, meus irmãos, o primo Severino,
morto já e em silêncio resguardado,
mas semeando estrelas no divino
campo, onde pasta, livre, do outro lado
dos nossos sonhos, um rebanho fino
de carneiros de nuvens, pastoreando,
dia e noite, no azul, por um menino
que é nosso irmão no leve e no pesado.
Ah, o açude infinito, onde o imagino
querendo agora atravessá-lo a nado,
e o quanto ele trocou pelo destino
de fechar-se no azul e, assim fechado,
dominar uma paz que não domino,
nesta perdida guerra do passado.




(in: Colégio dos ventos)