sexta-feira, 2 de abril de 2021

Aos dezoito anos, poema RCF

radu belcin

Aos dezoito anos,
havia mais noite em meus dias,
aos dezoito, tropicalizei-me,
aos dezoito, fui recruta e recrutei,
aos dezoito, rock enrolei-me,
alberguei-me nas esquinas, onde a
cidade é mais cidade,
aos dezoito, pari desertos,
a periferia virou centro,
aos dezoito anos de idade,
vendi um jipe e comprei
um sol a pino para
aparafusar minha velocidade,
aos dezoito anos,
desde o começo namorei o fim,
li Whitman e Álvaro de Campos
e acreditei que uma máquina
triturava minhas manhãs,
as rodas dentadas na maçã
e o coração flamejante de coca-cola,
o sangue a 24 quadros por minuto,
uma roupa brilhante de futuro
e não perdi a ternura,
faca que se amola
sem nunca chegar a ter gume,
aos dezoito anos,
mimeografei meus dedos
e encarcerei-me na liberdade.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)
                                                                                             

terça-feira, 30 de março de 2021

Um homem é muito pouco 37



Resultado de imagem para mabel frances

            Vim lhe fazer uma proposta.
            Proposta? Não temos nada em comum, negócio ou amizade, por que você vem me fazer uma proposta?
            Não se altere, estou aqui em missão de paz.
            Não sabia que agora você deixou a Bolsa de Valores para ser missioneiro.
            Ele não gostou da minha ironia, mas não tinha outra arma a não ser a ironia. Ele vestia um terno bem cortado – devia ser um terno bem cortado, eh bem, nunca soube exatamente o que era um terno bem cortado, devia ser um terno que cabia perfeitamente na medida certa da pessoa, eu acreditava que havia pessoas bem cortadas e que qualquer roupa lhes caía bem, aquele terno do irmão de Alice, por exemplo, podia ser bem cortado, mas o rapaz não era bem cortado, tinha braços longos, era de altura mediana, barriga proeminente e pernas curtas, não, Marcos, o irmão de Alice definitivamente não era um homem bem cortado – mas dizia que vestia terno bem cortado, carregava pasta e lá de dentro retirou alguns papéis.
            Posso sentar?
           Não consigo ser irônico com a delicadeza. A única arma que me vence é a delicadeza. É ela que cria armistícios e alivia o desconforto de situações inertes. A proposta de Marcos não era a proposta de Marcos. Era a proposta da família. Ele apenas vinha trazer o recado. Não era original a proposta de Marcos. A família queria que eu deixasse Alice em troca de grana. Expulsei-o de casa. Ele havia declarado guerra a meus nervos. E atacava a única coisa da qual me orgulhava de ter herdado dos meus pais que nunca nasceram: a honra.
            Não sabia nada sobre eles, nem física nem mentalmente, não sabia se eram comerciantes ou funcionários públicos, se eram religiosos ou comunistas, mas de uma coisa tinha certeza: se Alice herdara bens, eu herdara apenas um bem. Meu bem era saber que tinha honra. Não honra inerte, desconfortável e bélica. Não contei nada para Alice, sabia que ela ia arrumar confusão com a família. Não tanto por mim, não tanto por amor a mim, embora tivesse certeza de que Alice me amava, mas porque eles também duvidavam da capacidade de Alice de discernir. Tratavam-na como pessoa que precisava de curatela. Uma pessoa sem paz de espírito, enquanto Alice tinha o espírito devorador e acusatório da arte e a paz dos que justamente não precisam de curador, seja da família, seja de companheiro. A única curatela que Alice desejava ter era a curatela da poesia. A qualquer momento ela poderia irromper e desnorteá-la, tornando-a uma Alice que ela mesma desconhecia.


(Um homem é muito pouco. São Paulo, Nankin: 2010)

domingo, 28 de março de 2021

Imolação. poema RCF




O sol se imola
qual corpo em chamas
para cumprir seu alvoroço de hélio.

Ó tempo incendiário,
sem minudências, sem delicadezas,
os corredores da morte das calçadas,
a discórdia fahrenheit em seus mais altos graus.

 
(do livro Eterno passageiro, 2004)
 
imagem retirada da internet: van gogh