sexta-feira, 29 de abril de 2016

Carta aos crentes, Alberto Bresciani






Tudo é surpresa:
as palavras
nossa própria arqueologia
revelações metafísicas

E são imprevisíveis
as fábulas e as facas
que nos atiram
São imprevisíveis as tardes
e as árvores plantando raízes
nos dois rins

Traçados e cartografias
também são inúteis
porque os corpos e os nós
se escondem
aparecem quando querem
e tanto os achamos
como não

Mas um dia
no sofá
antes do jornal das oito
virá ao teu reino
o que vale às articulações 
e à medula
Apagarás de vez
o medo de meteoros
Saberás com certeza
de pedra
como afogar a tristeza
no sumo da ameixa

quarta-feira, 27 de abril de 2016

De como Fernando Pessoa chegou ao Brasil, Walnice Nogueira Galvão





De como Fernando Pessoa chegou ao Brasil – III,
por Walnice Nogueira Galvão
Com uma proposta nova, o grupo de declamação intitulado Os Jograis estreou a 16 de maio de 1955. Quem declamava era um quarteto masculino, que se apresentava de smoking. O líder, Ruy Affonso - cuja amizade com Cecília Meireles, fã e divulgadora pioneira de Fernando Pessoa, seria decisiva na escolha do repertório de lançamento – mantinha-se fixo, os demais revezando-se com maior ou menor freqüência: Rubem de Falco, Felipe Wagner, Ítalo Rossi, Maurício Barroso, Carlos Vergueiro, Raul Cortez, Carlos Zara, e tantos outros, todos atores que fariam brilhante carreira.
Seu êxito foi imediato e estrondoso, e quando no ano seguinte excursionaram ao Rio, ocuparam um palco de extraordinário prestígio, o auditório do Ministério da Educação. Primeiro edifício público modernista do país, assinado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, com assessoria de Le Corbusier, foi cantado em verso e prosa tanto por cronistas quanto por poetas. Pronto em 1947, o prédio era a concretização arquitetônica dos novos padrões estéticos, enquanto Brasília, a ser inaugurada em 1960, mal se delineava no horizonte. Na estreia da temporada carioca comprimiam-se 2 mil pessoas em 800 lugares.
Logo Os Jograis gravariam o disco Fernando Pessoa, tão disputado que exigiria sucessivas tiragens.  O grupo passou a ser atração obrigatória nas principais celebrações do país, como o IV Centenário do Rio de Janeiro (1965) e o 50º. Aniversário da Semana de Arte Moderna (1972).
Tal êxito, que já ultrapassou meio século de existência, pode ser aquilatado pelo fato de ter contribuído para a língua portuguesa se não com um neologismo, pelo menos com um deslocamento semântico. Ao utilizarem seu rótulo como litotes, procuravam com modéstia identificar sua performance à de artistas ambulantes como os saltimbancos e trovadores. Todavia, passaram involuntariamente a ser imitados em tudo quanto é festinha de escola e de paróquia, “fazer um jogral” tornando-se sinônimo de qualquer declamação coletiva. O novo significado não alcançou o Dicionário Aurélio, mas, com a data de entrada no léxico português devidamente registrada, já figura no Houaiss.
E deflagrou outros usos. Batizou a boate Jogral, que ficava na Galeria Metrópole ao tempo em que um dos epicentros de São Paulo passava por aquele quarteirão: atrás da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, onde se localizavam, entre outros, o Paribar, o Barbazul e o Arpège na São Luiz. Logo adiante, na Major Sertório, vicejaria por curto período o João Sebastião Bar, com seus shows de bossa nova. Entre as muitas boates da região a atrair a freguesia distinguiam-se o Michel, a Baiúca, a Oasis. O Jogral mudou-se para a rua Avanhandava em 1968, ainda no centro, onde resistiria mais um pouco, quando fechou as portas devido à morte do dono, o compositor Luiz Carlos Paraná, parceiro de Adauto Santos, que se apresentava ao violão. O bar era frequentado por intelectuais e artistas, e entre muitos outros por Marcus Pereira e por  Paulo Vanzolini, que lá cantava informalmente.
Na condição de filhote do TBC, os componentes de O Jogral pertenciam a esse teatro mas, sobretudo, representavam a dicção TBC: típica pronúncia paulistana de alta burguesia, escoimada de qualquer resquício estrangeiro, sobretudo italianado, como era comum em São Paulo. A voz impostada no laboratório dos mesmos mestres lhes dava um ar de família mediante uma fala meio empolada, verificável ainda hoje nos discos que deixaram.
Na sequência, Os Jograis fariam espetáculos de declamação dedicados a outros poetas, apresentando-se por todo o Brasil, Angola, México e Portugal. Neste último fariam 40 shows, em 1957, contribuindo também lá para a popularização de Fernando Pessoa. E gravariam vários discos.
O ator Ruy Affonso fora um dos fundadores do TBC, teatro destinado inicialmente à apresentação de trupes de amadores, como integrante do Grupo Universitário de Teatro, liderado por Decio de Almeida Prado, que o convidou. Todos, ou quase todos, provinham da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras/USP da Maria Antonia. Ruy Affonso já no segundo ano passaria a profissional. Foi ele a mola-mestra de Os Jograis, desde o lançamento até sua morte.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP