sábado, 6 de junho de 2015

Ariano Suassuna pelo biógrafo de Fernando Pessoa



 

Ariano Suassuna (1927-2014) representava um país implausível e, não obstante, real. Simples, fraterno e profundo. O melhor Brasil entre os tantos brasis de que somos feitos. Romancista, poeta e dramaturgo, seu discurso era baseado em nosso passado ibérico. Numa espécie de tradição medieval que ainda resiste, sobretudo por nossos interiores – em cordéis, cantadorias, circos, mamulengos, palhaços, danças e artes populares.

 

Esse permanente compromisso com a gente mais humilde se via na sua própria figura –  quase um Quixote, alto e magro. E que se revelava mesmo no vestir. O fardão com que tomou posse na Academia Brasileira de Letras não era feito de lã, como os outros. Mas de brim. E os adereços em ouro, que o orna, foi substituído por aplicações de fantasias. Bordados por costureiras do bloco de carnaval Pás Douradas.

 

Ariano era um erudito, sem dúvida. Alguém que amava perdidamente Camões, Dante, Dostoyevsky. Apaixonado pela figura mítica de Dom Sebastião e os sonhos de império e grandeza por eles representados. Mas que falava com a linguagem de seu povo, transplantados para seus personagens. Era especial sobretudo por isso. João Grilo (do Auto da Compadecida), por exemplo, vivia repetindo que “a esperteza é a coragem dos pobres”.

 

Ariano revelou, desde cedo, obcessão por uma identidade nacional que, até hoje, nos oprime. A partir da bem conhecida fórmula de Joaquim Nabuco: “De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. A propósito Carlos Drummond de Andrade, no seu Hino Nacional, disse: “Precisamos adorar o Brasil/ Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão/ No pobre coração já cheio de compromissos”. Só que, em Ariano, esse Brasil brasileiro surgia naturalmente. Como resposta para todas as suas preces. Tanto que, para ele, “globalização é um nome novo para o colonialismo”.

 

Seu pai, João Suassuna, era presidente (hoje, seria governador) do Estado da Paraíba. Foi sucedido por João Pessoa, que veio das várzeas do Paraíba do Norte para se tornar o estopim da Revolução de 30 – que sepultaria a Primeira República. O mesmo que acabou assassinado pelo advogado João Dantas, um aparentado dos Suassuna. Essa relação familiar levou a que o pai de Ariano também acabasse assassinado, memórias de um tempo em que a política brasileira se resolvia na bala. Ocorre que sua mãe, dona Ritinha (Rita de Cosmo Vilar Suassuna), jamais permitiu que a vingança manchasse ainda mais de sangue a família. E foi criar sua prole bem longe. Entre bodes. Na distante Taperoá, fronteira entre a seca e o fim do mundo. Uma cidade que tinha só duas ruas. Em honra desse pai depois escreveu esse que é um de nossos mais belos sonetos (Aqui morava um Rei):

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração. 

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão. 

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado. 

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.
 

Conto duas pequenas histórias para tentar dizer como era, entre os amigos. E começo por lembrar que, como sabem todos que o conheceram, não gostava de modernismos. Em um desses computadores com editor de textos, escreveu seu primeiro nome: “Ariano”. E o computador aceitou. Ainda bem. Depois escreveu seus sobrenomes. Primeiro “Vilar”. O computador recusou e sugeriu “Vilão”. Após o que escreveu “Suassuna”. O computador novamente rejeitou; e, talvez por conta dos muitos esses digitados, sugeriu “Assassino”. Ariano Vilão Assassino. Prova provada de que os computadores, dizia, é que não gostavam dele. Outra história é sua explicação para não ser vegetariano: “Cavalo vive hoje os mesmos 20 anos do começo da civilização. E só come folhas. Enquanto o homem, que naquele tempo vivia os mesmos 20 anos, hoje vive mais de 100. Comendo carne”.

Ariano foi um homem e um personagem, defensor intransigente de nossas tradições mais antigas, a quem por malandragem chamava de... Ariano Suassuna. Nas aulas-espetáculo, assim designava conferências que dava pelo país, não era bem o homem que falava. Era o personagem. E quem visse o rosto da meninada que lhe assistia, ouvindo lições de Brasil dadas por um dos poucos brasileiros que tinha méritos e autoridade para fazê-lo, se comovia. O público era, quase todo, composto por jovens que ali desejavam conhecer um pouco do Brasil apenas pressentido. Um Brasil distante das Pizzas Huts e dos cheeseburgers MacDonald’s. Um Brasil verdadeiro, ainda rude e ibérico, que não renunciou a sua identidade como povo. E, naquela meninada, se via fascinação. Uma como que celebração do país que corre silencioso em nossas veias. Como se alguém viesse de longe para ensinar um pouco do Brasil a brasileiros que, mesmo morando por aqui, sentem saudades do Brasil. Porque o personagem não cabia no corpo magro de seu criador. Era maior. Era a própria alma do seu povo. 
Com Ariano, tudo acaba convertido em algo alegre. Reproduzindo as farsas que tanto sucesso fizeram na literatura portuguesa do século XIX. No riso de quem o ouvia se revelando, pouco a pouco, o temperamento especial de quem nasceu em nossa civilização de terraços. Veja-se o que deu quando, mais tarde, quis voltar ao Palácio do Governo da Paraíba, em que nasceu. Sem gravata, algo que nunca usou. Gravata não casa bem com alpercatas. Dando-se que o policial da guarda não deixou. O traje era inconveniente, segundo ele. Só para ouvir Ariano dizer: “Engraçado, na primeira vez que entrei aqui, estava nu e ninguém reclamou”. Como se fosse uma ironia do destino esse homem, de vida simples, foi velado não num “palácio à beira do lago, longe da vida, alheio ao mundo”, como sonhado por Fernando Pessoa (em O marinheiro). Mas noutro Palácio, o do Governo de Pernambuco.

 

Em frente à Velha Caetana, como carinhosamente chamava a Indesejada das Gentes (aproveitando título de um conto de Eça de Queiroz), dizia: “Tenho duas armas para lutar contra o desespero e a tristeza: o riso a cavalo e o galope do sonho. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo”. Seu velório foi marcado pela presença de cidadãos comuns, em filas intermináveis, que lhe foram dar um último abraço. Nunca se viu nada igual, no Recife. Multidões prestando homenagem a um escritor. Alguém que nunca teve poder, salvo a força de suas palavras. Alguém que nunca saiu do Brasil, por simplesmente não querer conhecer o mundo. Mas que nunca viveu no Brasil de nossas elites, posto que seu Brasil era outro. O dos injustiçados.

 

Nossos homens públicos sonham com um Brasil longínquo; enquanto o personagem sabe que ele está por baixo de nossos pés. Neles, a crença no país soa como um gesto de utilitarismo político; e o personagem nem precisa falar, que sua fé se traduz no trajar coerente, no sotaque manso e arrastado, no brilho do olhar. Por tudo isso é justo declarar, a quem interessar possa, que esse cavaleiro andante é o melhor intérprete da “língua errada do povo, língua certa do povo”, como dizia seu amigo e poeta Manuel Bandeira. Porque ele, mais que outro qualquer, e usando palavras com que encerrará romance que está para ser publicado (O jumento sedutor), está sempre disposto a “erguer a fronte, honrar o chão da Raça e entrar, como no sol, a terra estranha”. Saudades de Ariano.

 

José Paulo Cavalcanti Filho


 

 

Para o Jornal de Letras (Lisboa).

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Crônicas de um leitor apaixonado, Vera Lúcia de Oliveira


Shakespeare
                                                

            Disse Stendhal que “A vocação é a felicidade de ter como ofício a paixão”. Como toda máxima, essa encerra uma grande verdade. Pelo menos é o que transparece na leitura de Crônicas de um leitor apaixonado (Ed, Thesaurus, 2015), livro de Fábio de Sousa Coutinho, carioca/brasiliense, escritor e acadêmico que dedica seu tempo e entusiasmo a literatura. E, pela quantidade e qualidade de relatos em seu livro, podemos imaginar a grande viagem do autor: de Shakespeare a Vinicius de Moraes, passeando pelos talentos de vários séculos e lugares, sua acuidade e sensibilidade mostram um leitor que não só é apaixonado como também é um crítico perspicaz.

            São crônicas literárias, homenagens e saudações a seus pares, na melhor tradição da Academia como lugar do saber e do encontro entre aqueles que, muitas vezes, vindos de universos diferentes, comungam o espírito da inteligência e se ocupam da palavra-arte. Ainda bem. Os textos curtos, enxutos/caudalosos, numa linguagem fluente e bem articulada, com a palavra (que parece) fácil e o estilo alto e claro como as estrelas, para lembrar quem entende do assunto, o padre Vieira. Tudo de que necessita essa narrativa chamada crônica, tão brasileira!

            Pelos seus olhos apaixonados, os grandes se agigantam e se tornam apaixonantes. E, como um Virgílio moderno, ele nos conduz  com a experiência de leitor culto e refinado num longo percurso no tempo e no espaço, rememorando fatos emocionantes como o discurso de Rui Barbosa no adeus a Machado de Assis, que são “passagens extraordinárias da vida nacional, verdadeiros marcos da nossa civilização tropical” (Pág. 100). É também um passeio no museu de tudo onde vemos o que há de belo na literatura brasileira, aí considerando de modo especial a brilhante prosa dos jornalistas que se destacaram entre nós. Nesse museu, inspirado pelas musas da Eloquência, da História e da Poesia, Fábio Coutinho nos leva ao salão em que perfilam prosadores, poetas, contistas, cronistas e biógrafos  -  todos merecedores da fama que os eleva e da nossa admiração pelo muito que fizeram pela língua e cultura do país. Temos o mestre Rubem Braga, o incrível Otto Lara, a genial Lucia Miguel Pereira, a doce Ana Miranda, o poeta e amigo Antonio Secchin, mais os que em Brasília viveram e produziram, como Cyro dos Anjos, Almeida Fischer, e os que vivem, escrevem e distinguem a cidade com obra significativa, como Edmílson Caminha. E muitos, muitos mais. Aqui santo de casa faz milagres.

            Ler Crônicas de um leitor apaixonado  é, sobretudo, apaixonar-se pelo encanto das letras nacionais e lembrar que temos uma literatura sofisticada, imensa, que nos orgulha, com um rico passado que só um autor apaixonado pode presentificar. Essas Crônicas são um presente. Se lhe fosse perguntado quanto tempo levou para escrever o livro, Fábio Coutinho poderia parafrasear uma de suas musas, Lygia Fagundes, e responder: a vida inteira!

                                                Vera Lúcia de Oliveira é professora  de literatura.

 

Encontro em Samarra, de W. Somerset Maugham




A MORTE

 

Havia um mercador em Bagdá que enviou seu servo ao mercado para comprar provisões. Pouco depois o servo voltou, pálido e trêmulo, e disse: Mestre, agora mesmo, quando eu estava no mercado, fui empurrado por uma mulher da multidão; quando me virei, vi que era a Morte que havia me empurrado. Ela olhou para mim e fez um gesto de ameaça; ora, empreste-me seu cavalo e eu cavalgarei para longe desta cidade e evitarei meu destino. Irei para Samarra, e lá a Morte não me encontrará. O mercador emprestou-lhe seu cavalo e o servidor montou, fincou as esporas nos flancos dele e se foi tão rápido quanto o cavalo podia galopar. Então o mercador desceu ao mercado, me viu no meio da multidão e veio até mim, dizendo: Porque você fez um gesto de ameaça para meu servo, quando o viu esta manhã? Aquele não foi um gesto de ameaça, respondi, foi apenas um movimento de surpresa. Fiquei espantada ao vê-lo em Bagdá, pois esta noite eu tinha um encontro marcado com ele em Samarra.

Somerset Maugham, 1932.

Essa pequena história, inspirada em antiga lenda oriental, é a parte final do drama Sheppey, representado pela primeira vez em 14/9/1933 no Wyndham's Theatre de Londres. O inglês William Somerset Maugham (1874–1965) era inglês, novelista, contista e dramaturgo.