quinta-feira, 28 de abril de 2011

Orley*, poema de Everardo Norões



Ele cruzava
as pontes do Recife
em direção à Abissínia.

Nós o seguíamos:
havia sempre um cais,
um segredo,
o elixir das noites mortas.
Aprendíamos
a verdade incompleta,
o sortilégio dos desenganos,
as formas de penetrar,
(de leste a oeste)
a pálpebra das coisas.

Sempre um átomo a pulsar
no vidro,
no sexo,
nos móveis da casa:
a substância mais viva
do esquecimento.

Digo:
o silêncio é uma rua
de janelas fechadas.


*Orley do título é o nome do poeta paraibano/pernambucano Orley Mesquita.

(do livro Retábulo de Jerônimo Bosch, 7Letras, 2008)

Everardo Norões é uma das grandes vozes da poesia contemporânea. Nasceu no Ceará. Publicou os livros Poemas argelinos (1981), Poemas (2000), Nas entrelinhas do mundo (2002), A rua do Padre Inglês (2006).

terça-feira, 26 de abril de 2011

O pão nosso de cada dia, vosso reino, conto de Hugo Almeida

“Quem não acredita em milagres talvez
os considerasse menos impossíveis
se desse mais atenção a um sentimento
simples e antigo: o amor.
Peço ao leitor que, antes de me chamar de
piegas, tenha um pouco de paciência
e vá comigo até o fim do texto.”

Raul Drewnick, O milagre do amor


Calma, calma. Calma nada. Você já devia ter decidido há muito tempo. Se quiser, vai. Vai. Pode levar qualquer coisa, até tudo, não me levando. (Quem dera.) Você acha tudo muito simples, Zenaide Maria, muito fácil. Chega aí escornado. (Quebra-quebra.) Para. Já quebrou dois pratos. Dois, não. Posso beber água? Três. Devia te dar era veneno. Está tudo espatifado, como eu. Isso é coisa de selvagem. Nisso que dá casar com primo sem-vergonha. Devia ter ouvido meu irmão. Agora não tenho pai, não tenho mãe não, nem marido, mas ainda eu sou gente, entendeu? Falo alto sim, grito se tiver vontade (o vento sopra na árvore, moto na rua). Desgraçado. Nojenta. Sua mãe. Se é que algum dia teve.

– Quem é a coitada?
– Falar isso do filho? É um menino bom.
– Você que escolheu o nome.
– Mas ainda não casou. Depois, conserta.
– Conserta...

Nem tempo pra conversar sobre os problemas de dentro de casa não tem, porque o animal não tem estrutura pra resolver nada. (Alguém liga o rádio alto.) Duas horas, duas e meia. Com aquela vagabunda. Me dá sossego... Só porque ela que tem dinheiro, é isso?

– Sério? O Juan?
– Ele mesmo.

Eu sou pobre, não tenho nada, mas mereço um pingo de respeito. (Passa um ônibus, predinho treme.) É você. (Criança ri alto, nervosa.) Fico em casa o dia todo pra quando o diabo chegar virar esse inferno. (O rádio. Outro ônibus.) Por isso que eu não fui. Você não pode ficar mais aqui não. Sai daqui. Vai pra casa dela, pelo amor de Deus. Vai! (Bate a porta. Ele se tranca no banheiro. Acende a luz.) Ela: aparece aqui pra você ver a faca que eu comprei.

– Tenho pena dela.
– Depois toma jeito.
– Outro dia mesmo estava na farra.
– Mas ele só casa pra semana. Ela vai pôr cabresto nele.
– Vai.

Você não sai daí não, não vai trabalhar amanhã. (Silêncio. Encurralado.) A semana que vem eu vou pra... embora. Pra qualquer lugar. Não complica as coisas mais não. Que complicar o quê!

– Na alegria e na tristeza...
– Sim.

Eh, mulher cha-ta. O trem tá feio pra danar. (Quem conhece não esquece.) Quer parar? Abre aí. Que abrir o quê! Eu não vou fazer nada. Abre logo.

– Meu Juanito.
– Todinho seu, Maria. (Ave, Mestre Dalton!)

Eu vou arrebentar, vou acordar todo mundo, você vai ver. (Ele abre.) Cadê a minha sandália? Taí. Agora você vai resolver. Eu sei que você está mal... Fala pra mim que é mentira. Mais fácil é eu sair, porque você é covarde. (Fala como se latisse, sem parar, chorando.) Com a outra lá você pode sair, comigo não. Já chega. Tá achando o quê? Agora decide: ou eu ou ela. (Silêncio.). Ai, amor, por que você faz isso?



                   Para Apollo Natali e Raul Drewnick

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Hugo Almeida (1952), mineiro residente em São Paulo desde 1984, é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Nestlé-1988), e os infantojuvenis Meu nome é Fogo e Viagem à Lua de canoa (PNBE 2011).

imagem retirada da internet: francis bacon

domingo, 24 de abril de 2011

Trêmula, poesia mexicana contemporânea



A palavra medo treme
Talvez porque tenha nascido sem armas
Não tem dentadura nem forças nos membros
Faltam-lhe sombra e cabelos que a envolvam
É uma ideia imprecisa no ventre na garganta
Aperta os músculos e geme sem saber a causa
Vomita tudo aquilo que ainda não come
Esvazia-se antes de ser
Nessa palavra encolhida como coelho acuado se aninha o ar
o olhar interrogante que faz despontar o nariz
e cheira o passo de luz na floresta


tradução: Ronaldo C. Fernandes

José Ángel Leyva nasceu em Durango, México, em 1958. Poeta, narrador, editor, promotor cultural, jornalista. Dirigiu diversas publicações, entre elas, destacam-se as revistas de poesia Alforja e La Otra. Atualmente é coordenador de Publicações da Universidade Intercontinental.