quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Dois velhinhos, Dalton Trevisan


 

 

 

                Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

                Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espirar lá fora.

                Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro:

                – Um cachorro ergue a perninha no poste.

                Mais tarde:

                – Uma menina de vestido branco pulando corda.

                Ou ainda:

                – Agora é um enterro de luxo.

                Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto. O mais velho acaba morrendo, para a alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

                Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do cachorro, da menina, do enterro de rico.

                Cochila um instante – é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um monte de lixo.



 

A vida e a morte estão acabando comigo, Mo Yan






Minha história começa no dia 1º de janeiro de 1950. Nos dois anos anteriores, nas profundezas do inferno, eu tinha sofrido torturas cruéis que nenhum ser humano seria capaz de conceber. Sempre que era trazido ao tribunal, proclamava minha inocência em tons solenes, comoventes, tristes, desgraçados, que penetravam cada greta do Salão de Audiência do Senhor Yama e repercutiam em muitas camadas de ecos. Nem uma palavra de arrependimento saiu de meus lábios, embora eu fosse torturado cruelmente, o que me valeu a reputação de homem de ferro. Sei que ganhei o respeito silencioso de muitos dos funcionários do submundo de Yama, mas sei também que o Senhor Yama não me suportava mais. Assim, para me obrigar a admitir a derrota, submeteram-me à mais sinistra forma de tortura que o inferno tem em seu estoque: atiraram-me numa tina de óleo fervente, na qual eu rolei, me contorci e chiei feito um frango frito por cerca de uma hora. Palavras não têm como fazer justiça à agonia que senti até que um servente me espetou com um tridente e, carregando-me bem alto, me conduziu à escadaria do palácio. Juntaram-se a ele dois outros serviçais, um de cada lado, que guinchavam como morcegos-vampiros toda vez que o óleo escaldante pingava de meu corpo nos degraus do Salão de Audiência, produzindo borrifos e pequenas nuvens de fumaça amarela. Com cuidado, depositaram-me numa laje aos pés do trono e fizeram uma profunda mesura.
– Grande Senhor – anunciou o servente que me carregara. – Ele está frito.
Tendo fritado até ficar crocante, eu sabia que o mais leve impacto me transformaria num monte de fragmentos estorricados. Então, das alturas do salão acima de mim, de algum ponto no meio do clarão de velas do salão acima de mim, ouvi a pergunta zombeteira do próprio Senhor Yama:
– Ximen Nao, cujo nome significa Rebelião no Portão Ocidental, há mais rebeliões em seus planos?
Não vou mentir para você: naquele momento eu balancei, meu corpo quebradiço jogado numa poça de óleo que ainda borbulhava, estalando. Eu não tinha ilusões, havia atingido o limiar da dor e não conseguia imaginar qual tortura aqueles oficiais venais empregariam em seguida se eu não cedesse agora. No entanto, se eu fizesse isso, não teria sofrido todas as brutalidades anteriores em vão? Ergui com grande esforço a cabeça, que poderia facilmente se soltar do corpo, e olhando na direção da luz das velas vi o Senhor Yama ladeado por juízes do submundo, sentados com sorrisos oleaginosos em seus rostos. A raiva se agitou dentro de mim. Ao inferno com eles!, pensei, o que era bem apropriado. Que me reduzam a pó num moinho ou me transformem em pasta num pilão, se quiserem, mas não vou recuar.
– Sou inocente! – bradei.



(tradução de Sérgio Rodrigues, do romance A vida e a morte estão acabando comigo, de MoYan)