terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Lições de voo




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A tristeza sempre é mais pesada que o ar.
Cavalos marinhos galopam
a pradaria das somas:
todos os dias é tomada
a tabuada da luz
até que um erro
leva à palmatória de zeros
e à dízima periódica do mal.

O meu balão de ensaio
se prepara para o ato final.
O convento dos ventos
fornece malícias
para a prática
das celas ao ar livre.
O longo calado do silêncio
flui para frear as correntes
até tudo findar
ao suave desprezo das corredeiras.
Setembro se esvai por uma fresta.




 (do livro Matadouro de vozes, 2018)








domingo, 26 de dezembro de 2021

A impostura dos néscios, poema RCF






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Tu me falavas
de futuros indecifráveis
que se podiam ler
no giroscópio das luas.

Sussurravas tuas queixas redondas,
grávidas de lamentos,
as mãos longas das esperas,
os olhos como pedras
que aguardam sem agitar-se.

A incerteza dos ventos
criava comboios negros
nas noites em claro e escuro
do quarto de concentração,
das febres que são mais altas
quando não queimam.




(do livro Matadouro de Vozes, 2019)




quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

União civil de afetos e maneiras, poema RCF



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Ah, eu prometo nunca mais me abandonar,
ouvirei minhas queixas
e prometerei não me tratar mal.
Serei sempre atento comigo,
viajarei  junto comigo
a lugares novos e exóticos
e, nas fotos, sorrirei comigo
para que, no futuro, meus filhos
vejam que sempre estive
acompanhado de mim.
Estarei comigo, na alegria e na dor,
na bonança e na pobreza,
na saúde ou na doença,
e serei, por fim, fiel a mim
até que a morte nos junte
definitivamente ao nada.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A ilusão das temperaturas, poema RCF

 

Georg Grosz


 

 

A umidade

com seu cobertor de água

lambe a pele do tempo.

O puçá das dúvidas

pesca hipóteses.

Os hidratantes perfilam,

soldadinhos de ferro,

a solidão vermelha,

como um anão no jardim

da esquina da infância.

A carne moída do passado

e a má digestão dos sonhos.

No grande ocaso de hoje,

a fortuna do círculo.

O futuro é um bicho hospedeiro do homem.

 

 

 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Rio preguiça, poema Matadouro de vozes




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O rio sobe nas árvores 
com suas garras de lentidão 
e seus olhos cheios d’água. 

A preguiça serpenteia 
a blandície das águas, 
quase é uma lagoa 
se não lhe escapam mãos.

O bicho pertence a uma época
quando não havia velocidade 
rumo ou destino ruidoso, 
tudo era fantasia de espaços, 
a maré contida por pelos, 
a morosidade dos braços d’água. 
O rio preguiça 
não se captura, 
flui em seu esforço pluvial 
de espécie a ser extinta: 
a podridão dos ossos 
e o rio a subir o arvoredo do homem.




(Matadouro de vozes, 2018, 7Letras)





quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Terra nostra, poema RCF

 



 

 

 

Teus rios são feitos de água

mais intestina: a água da terra

revolta que se move num

enorme estômago de areia,

barro e água, um tempero

que nem franceses, nem portugueses,

muito menos holandeses,

puderam acalmar na azia dos tempos.

Tenho em mim um bumba-meu-boi

numa caixinha de música:

a cabeça roda os pinos e os brincantes

bêbados se apresentam mambembes

no pátio da casa do desembargador.

Com os anos, rolei mundo,

esta outra caixa sem música,

que vai silenciando a memória,

e os casarões de pé direito alto

arquitetaram saudades e fotos

nos azulejos da infância

que se despregam fácil

e são substituídos

                        por outros falsos:

são gente de outra época

que se prega na parede dos dias.

Meu patrimônio são duas peças de roupa:

uma de marinheiro

com que posei, na fotografia, de órfão

e outra de índio

para um eterno carnaval

em que ia contra a corrente

de gente e versos,

que são correntes de gosto

e compostas de vazio e tombamento.

Tenho quatrocentos motivos

para ser uma cidade

em constante viagem,

sem paradeiro que a sossegue

e sem destino que a cumpra.

 

 

 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Romance recria a vida do padre António Vieira na ilha de São Luiz do Maranhão


“Vieira na Ilha do Maranhão” é o mais novo clássico da literatura brasileira. A história deve redundar num belo filme de época
Wil Prado
Especial para o Jornal Opção
Se você vai ler esse livro agora, quero adverti-lo. Antes de fazê-lo, consulte sua agenda e certifique-se de que não tem nada urgente. Sim, meu amigo ou amiga, porque depois de ler o primeiro parágrafo você não vai mais conseguir largá-lo.
Começo por ressaltar que este é um romance absolutamente original, não conheço nada parecido na literatura brasileira ou estrangeira. Seu parente mais próximo seria, talvez, “Viva o Povo Brasileiro”. E não posso deixar de imaginar que, a exemplo do que João Ubaldo Ribeiro fez com a Bahia, com “Vieira na Ilha do Maranhão” Ronaldo Costa Fernandes também recriou uma importante página da história colonial do seu Estado.
Pesquisador perito e minudente, Ronaldo Fernandes escarafuncha um dos mais fecundos períodos da história — maranhense e brasileira —, os sete anos da estada do padre António Vieira (1608-1697) em São Luís. O jesuíta é, naturalmente, o protagonista do romance, que encontra, na ilha, uma sociedade moralista, mas ao mesmo tempo permissiva, que se divide entre as missas e os cabarés, os altares religiosos e as camas de adultério.
Como um títere, o autor manipula seus cordéis e dá vida a uma imensa galeria de tipos os mais pitorescos e exóticos imagináveis. Gordilho, o sapateiro profeta e sua filha Luísa, com uma cabeça enorme, presa a uma espécie de gaiola de ferro, para evitar o crescimento. Arduíno da Babel, o falso poliglota que passa a vida construindo uma torre para falar com Deus, ainda que não saiba ao menos qual o idioma divino. O padeiro que alimenta visões apavorantes de seres metade homem, metade animal. A interiorana pobre, mas robusta, que, mesmo em meio à fome trazida pela peste da bexiga negra, alimenta o filho e o marido com o único recurso que dispõe: o leite dos seus próprios peitos. Mariana, a menina-mulher que, sem ter relações com o marido, um dia pariu um rato.
Mas também ressaltam as fortes personagens femininas, como a bela viúva Ana Jacomé, a despertar a libido nos homens mesmo nos trajes discretos com que frequenta as missas.  Ou a filha do porqueiro, a ninfomaníaca Ritinha.
Mas todos os personagens, como satélites em volta de um sol, procuram o jesuíta para se aconselharem, se queixarem ou protestarem contra os desmandos da coroa, do governador ou do vizinho usurpador. E Vieira, sempre solícito e mediador, vai distribuindo bênçãos e conselhos.
Ronaldo Costa Fernandes: escritor | Foto: Isabela Fernandes
O autor — “ampassã”— reproduz alguns trechos dos famosos Sermões de Vieira, com suas metáforas poderosas, suas terríveis ameaças ao fogo dos infernos, mas que, ao final, sempre abrindo uma porta de salvação para os que, largando a vida do pecado, se arrependam a tempo de serem acolhidos aos braços do Salvador.
Mas nem tudo são fores nessa passagem do jesuíta. Ronaldo Fernandes também flagra um Vieira contraditório, pois, ao mesmo tempo em que conclama os nobres da terra a soltar as “ataduras da injustiça” e deixar “ir livre os cativos e oprimidos”, referindo-se aos índios colonizados, como fez no sermão da Primeira da Primeira Dominga da Quaresma, sugere aos poderosos a aquisição de escravos negros, que, para ele, seria até uma forma de libertá-los de suas hereges práticas religiosas na incivilizada e perdida África.
Romance bem estruturado e de largo fôlego, perpassa por suas páginas um sopro de sensualidade tropical, fomentado, talvez, pelo clima quente e úmido da Ilha Maldita, como a ela se referem alguns personagens. E, com efeito, o cheiro inebriante de sexo está sempre no ar, como uma flor prestes a espocar. E todo esse erotismo latente é descrito numa linguagem viva e despojada, como a dos seus próprios personagens embriagados nos puteiros da Ilha durante toda a passagem da peste.
Não tenho, pois, qualquer dúvida de que estou diante do mais novo clássico da literatura brasileira. E mais. Sem querer dar uma de profeta-de-esquina — aliás muito em moda nesses tempos em que falsos gurus alardeiam que a terra é plana — diria que essa história qualquer dia ainda vai redundar num belo filme de época.
Wil Prado, escritor, publicou “Sob as Sombras da Agonia” (Chiado).

domingo, 5 de dezembro de 2021

Nadar quando se voa, poema RCF




Um pequeno ser – vespa
ou algo parecido – bate
asas no ar pesado da água.
O ser alado não entende
como seu habitat  se tornou
denso e líquido
e que voa na horizontal,
sem fôlego, à beira da exaustão.
Nunca imaginou que existir
exigisse tamanho esforço
e aquilo que era fluido e gasoso
passou a ser um tormento aquoso.
Retirado da água,
longe do pesadelo molhado
esquece que um dia esteve
preso a sua própria precariedade
e que nadou numa piscina
como um peixe que voasse.
A vespa nos lembra
que, como uma gravidez de pânico,
às vezes esquecemos a dor do parto
de nadar quando se deveria voar
ou voar quando nadar é preciso.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Terraplenagem, poema RCF

 


 

A pia conta-gotas não remedia

a moléstia das correspondências.

 

A manhã taciturna

é um destinatário de rugas nervosas.

 

A distância tem mania de remetente das fraturas

e a terraplenagem das ausências.




segunda-feira, 29 de novembro de 2021

As janelas , poema Matadouro de vozes




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As janelas piscam 
o olho maroto 
para a vigília amarela
dos abajures.

Na água furtada, 
o olho d’água é mágico 
e mina acusações
de mirantes.
E a retina recolhe o lixo de luz dos espelhos. 

Passava pela rua do Sol 
e os sótãos 
solfejavam domesticidade.
Não sei a escala 
de música,
tudo o que ouço tem dó,
às vezes escuto
meu pensamento em falsete.

Quando durmo nas alturas 
tenho a vertigem da calçada.
Prefiro a rua 
aos passos domésticos
das viagens em volta
do meu quinto
dos infernos. 

De noite, todos os olhos 
são negros 
e miram a palidez das adivinhações
que gostam de imitar a vida. 



(do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)