quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A vida é sonho, Calderón de la Barca



Pedro Calderón de la Barca 01.jpg




Ai de mim, ai, pobre de mim!
Aqui estou, ó Deus,
para entender
que crime cometi contra Vós.
Mas, se nasci,
eu já entendo o crime
que cometi.
Aí está motivo suficiente
para Vossa justiça,
Vosso rigor,
porque o maior crime
do homem é ter nascido.
Para apurar meus cuidados,
só queria saber que
outros crimes cometi contra Vós
além do crime de nascer.
Não nasceram outros também?
Pois, se os outros nasceram,
que privilégios tiveram
que eu jamais gozei?
Nasce uma ave e, embelezada
por seus ricos enfeites,
não passa de flor de plumas,
ramalhete alado quando
veloz cortando salões aéreos,
recusa piedade ao ninho
que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce uma fera e,
com a pele respingada
de belas manchas,
que lembram estrelas.
Logo, atrevida e feroz,
a necessidade humana
lhe ensina a crueldade,
monstro de seu labirinto.
E eu, tendo mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce um peixe,
aborto de ovas e Iodo e,
feito um barco de escamas
sobre as ondas,
ele gira, gira por toda parte,
exibindo a imensa habilidade
que lhe dá um coração frio.
E eu, tendo mais escolha,
tenho menos liberdade?
Nasce um riacho,
serpente prateada,
que dentre flores surge
de repente e de repente,
entre flores se esconde onde
músico celebra
a piedade das flores
que lhe dão
um campo aberto à sua fuga.
E eu, tendo mais vida,
tenho menos liberdade?
Assim, assim chegando a esta paixão,
um vulcão qual
o Etna quisera arrancar do peito,
pedaços do coração.
Que lei, justiça
ou razão pôde recusar
aos homens privilégio tão suave,
exceção tão única
que Deus deu a um cristal,
a um peixe, a uma fera e a uma ave?
É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
Vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.


Tradução de Renata Pallotini. Rio: Ed.Scritta, 1992.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Três breves contos de Cortázar



Resultado de imagem para cortázar

Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.


Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.


As linhas da mão


De uma carta jogada em cima da mesa sai uma linha que corre pela tábua de pinho e desce por uma perna. Basta olhar bem para descobrir que a linha continua pelo assoalho, sobe pela parede, entra numa lâmina que reproduz um quadro de Boucher, desenha as costas de uma mulher reclinada num divã e afinal foge do quarto pelo teto e desce pelo fio do para-raios até a rua. Ali é difícil segui-la por causa do trânsito, mas prestando atenção a veremos subir pela roda do ônibus estacionado na esquina e que vai até o porto. Lá ela desce pela meia de náilon da passageira mais loura, entra no território hostil das alfândegas, sobe e rasteja e ziguezagueia até o cais principal, e aí (mas é difícil enxergá-la, só os ratos a seguem para subir a bordo) alcança o navio de turbinas sonoras, corre pelas tábuas do convés de primeira classe, passa com dificuldade a escotilha maior, e numa cabine onde um homem triste bebe conhaque e ouve o apito da partida, sobe pela costura da calça, pelo jaleco, desliza até o cotovelo, e com um derradeiro esforço se insere na palma da mão direita, que nesse instante começa a fechar-se sobre a culatra de um revólver.


(in Histórias de cronópios e de famas de JULIO CORTÁZAR, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1998, trad. De Gloria Rodríguez)