sábado, 24 de fevereiro de 2024

O personagem do romance, ensaio

 








(Trecho do livro Narrativas da vida, o personagem do romance. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2023. Também encontrado em e-book, na Amazon)


As leituras sobre o personagem de Vicent Jouve, Michel Zérrafa e Philippe Hamon

 

            Na escassa bibliografia que trata apenas do personagem, Philippe Hamon tentou abordar o personagem dentro do romance de Zola. Embora seu esforço para construir uma teoria do personagem estivesse subjacente ao estudo, Hamon se apoiou somente numa expressão reduzida do comportamento do personagem zoliano. Buscou procedimentos, comportamentos repetitivos, isolou caracteres, analisou modelos que, infelizmente, ainda que não diminua seu trabalho, reduziu-se à esfera romanesca do naturalismo do autor francês. Sua intenção, como ele mesmo afirma em seu livro, não é tratar da psicologia do personagem, uma psicologia social, ou de uma estética, campos de atuação de Michel Zeraffa. Mas

 

            ... privilegiar um estudo que dê conta do personagem como objetivo de uma estética romanesca, estudo que, contudo, poderá integrar, mas sem privilegiar, o ponto de vista do autor da criação, logo, igualmente e por esse ângulo, uma certa concepção do personagem histórica e ideologicamente datada. Simplesmente, nós escolheremos chegar a essa determinação histórica e ideológica assimilando a um tipo e pacto de comunicação (comunicação realista – plausível – pedagógica) e a um estilo de época (a escritura artista-impressionista), antes que um dado filosófico ou moral. [1]

           

            Hamon entende, como vários outros, o ideológico como sinônimo de ideias e, aqui, as ideias do autor e não como um sistema de operação que é traiçoeiro até mesmo para o criador revelando contradições sobre o que ele expressa e até mesmo escreve.

            Outro que estuda apenas o personagem é Vicent Jouve, teórico da leitura. Seu livro não se afasta tanto, ele reconhece, do estruturalismo, mas acrescenta que sua vocação é o estudo da recepção do personagem pelo leitor. Não deixa de incluir a psicanálise, o cinema e outras manifestações que influem e interferem na captação da imagem do personagem durante a leitura. O estudo da recepção não se opõe à aproximação imanente, é complemento indispensável. Sem categorias não se pode pensar a experiência, segundo ele.

            Nosso estudo não despreza a interpretação e o modo como o leitor é afetado pela leitura. Tampouco despreza a psicanálise. Mas há diferenças. A psicanálise, para Jouve, tende à apreensão do leitor, enquanto nós trabalhamos com a produção e recepção. Além de tratar a psicanálise não apenas do ponto de vista freudiano ou da terapia convencional, mas incluindo aí a ideologia, a sociologia e as manifestações míticas. A angustiosa produção da fábula nos interessa tanto quanto a “leitura” internalizada pelo leitor. O personagem é uma simbiose de projeções mentais profundamente arraigadas na produção da mitologia pessoal e social.

            Da mesma maneira não descartamos as teorias da leitura dos hermeneutas como Jauss, Iser e Ricoeur sobre o impacto do leitor, incluímos também aí as projeções idealistas feitas pelos leitores em relação aos autores. Da mesma forma que vimos os efeitos das projeções do texto sobre o leitor, também queremos enxergar um comportamento mítico e múltiplo no promotor da emissão da leitura: o autor, como ser social e sua ontologia. Nosso propósito seria também entender esses dois elementos, autor e leitor, como “personagens”, um ao produzir o texto ficcional e outro a cumprir uma tarefa que sem ela não existe a literatura.

            O livro de Jouve, pelo próprio título, já explicita sua concepção e sua intenção de estudo: o efeito que o personagem provoca no leitor. É o livro mais completo sobre o personagem a que tive acesso, aí incluindo o estudo sobre o personagem levado a cabo por Michel Zéraffa. Embora mais didático, mais “estruturalista”, mais comprometido com a leitura, o livro de Jouve é provocativo e aponta para várias questões inquietantes relativas ao nosso tema.

            Já havia escrito três quartos do livro quando tomei conhecimento de Jouve. Nossa concepção do efeito da psicanálise em certas horas converge, em outras toma caminhos diferentes. Nossa visão trabalha com a sistemática produção do autor – não a sua intenção – e com o mecanismo de engano de toda produção mitológica e inconsciente. O certo é que não conheço até agora livro mais completo do que L’effet-personnage dans le roman[2], apesar de minha discordância com tantas formalizações, esquemas e gráficos.

            Operando apenas com a análise do personagem, Zéraffa investe pesadamente na tentativa de apreender o fenômeno da passagem de uma figura de papel, um ator, um representante de um comportamento humano, e adentrar-se na psicologia do personagem, tanto e convicentemente, até que ele se torne uma pessoa. Buscou o recorte de quarenta anos dos romances vanguardistas do século passado e que fez uma revolução, das maiores, na expressividade romanesca (nada mais nada menos do que os romances de Joyce, Proust, Mann, Gide, Kafka e os outros da modernidade). Uma das grandes teses de Zéraffa é que modificando a psique dos personagens logo haveria uma mudança de expressão estética. A interiorização do personagem levou a maior complexidade experimental e expressional. A necessidade de aprofundar-se na mente dos personagens, torná-los mais vizinhos a nós, fazê-los íntimos e densos, levou a uma estética mais pessoal e que a estética do século XIX não podia mais comportar ou representar esse mergulho no inconsciente do personagem.

 

            ... nosso estudo conjuga duas pesquisas: uma de ordem psicossociológica – tendo por objeto a pessoa – e outra de caráter estético – tomando por objeto a vida das formas. Associando essas duas pesquisas, nossa maneira de proceder irá distinguir-se daquela do sociólogo, que, com justiça, concebe o romance como o significante privilegiado do estado de uma sociedade, e pode descobrir relações necessárias entre as estruturas de uma obra e os traços essenciais de um momento de uma civilização; distinguir-se-á também daquela do psicólogo que, legitimamente, encontra num romance a descrição de fatos psíquicos. De nossa parte, consideramos a pessoa, mas no romance; isto é, tal como a traduz uma linguagem que tem suas próprias leis e estruturas, a linguagem de uma arte.[3]

 

Não nos interessa, como vários já fizeram, estudar o personagem como percurso ou historiar sua trajetória. Não apenas o bom e despretensioso livro de Forster, as manifestações folclóricas em Propp e as categorias dos estruturalistas, apontaram para uma tipologia do personagem, o que muito contribui para o conhecimento do surgimento das figuras no texto. Várias tentativas de criar uma tipologia para os personagens já existiram, mesmo no florescer do gênero romanesco. Elas esclarecem e ajudam a classificação, mas não resolvem, para nós, o problema do fenômeno do personagem, sua caracterização como elemento visceral da obra de arte literária, instrumento de prática e exercício de fabulação. Logo nas primeiras manifestações dos grandes romances do século XVIII, “Johnson chamava ‘personagens de costumes’ e ‘personagens de natureza’”, definindo com a primeira expressão os de Fielding, com a segunda os de Richardson:

 

Há uma diferença completa entre personagens de natureza e personagens de costumes, e nisto reside a diferença entre as de Fielding e as de Richardson. As personagens de costumes são muito divertidas; mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial do que as de natureza, nas quais é preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do coração humano. (...) A diferença entre eles (Richardson e Fielding) é tão grande quanto a que há entre um homem que sabe como é feito um relógio e um outro que sabe dizer as horas olhando para o mostrador[4]

 

            Entre outros autores que usaram o personagem para estudar algum fenômeno sociológico-literário está o de Ian Watt com seu Mitos do individualismo moderno, onde estuda alguns protagonistas de clássicos para marcar a ascensão do romance (outro título seu), a afirmação da modernidade e, ao mesmo tempo, entender a projeção de concepções do personagem que permaneceram no imaginário dos leitores e passaram de personagens a mitos sociais. Eles são Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e Robinson Crusoé. Watt e Campbell muito se aproximam, embora o primeiro trabalhe com uma visão antropológica e o segundo com um modelo junguiano. Acreditava eu que os mitos já correspondiam não apenas à necessidade de dar respostas não científica aos fenômenos naturais e, como Malinowski, os mitos mantinham a união grupal e ratificavam e sacralizavam as instituições sociais. Campbell, ainda que o próprio Ian Watt o veja como redutor, analisa o mito como modelos que se repetem desde as mais prístinas expressões. Desta maneira, os mitos revelam um inconsciente coletivo, o que não aproveitamos de todo, mas nos alertou para uma possível gramática de formação do personagem. Por isso, distinguimos a mitologia de forma geral e as mitologias individuais dos autores literários para formação de seus personagens. “A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique”, afirma Campbell. Não usamos de forma assertiva as conclusões de Campbell, mas sua presença permanece aqui e ali.

 

            Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aquele que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses “seres eternos do sonho” não devem ser confundidos com a figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique.[5]

 

Reconhecemos que só esta afirmação – que é a única de Campbell, já que o restante do livro é para provar com exemplos sua tese – é simplista e, por essa razão, utilizamos também, entre outros, citados e não citados, pressupostos de Cassirer em relação ao mito. A concepção do mito como linguagem, e que “a consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento, da arte [...] todas elas se encontram originalmente ligadas à consciência mítico-religiosa”[6], insinuou-se em nossa análise para sugerir que haveria uma gramática do personagem. A ficção, é óbvio, não é uma criação coletiva, mas a formação gestáltica do personagem como elemento constitutivo de uma protonarrativa que, junto a uma criação idiossincrática e de “mitologia pessoal”, forneceria um modelo que o leitor já teria incorporado a sua dinâmica mental.

Aponta Cassirer:

 

O caráter comum dos resultados, das configurações que produzem, indica, aqui também, que deve haver uma comunhão última na função do próprio configurar. Para reconhecer esta função como tal e expô-la em sua pureza abstrata, cumpre percorrer os caminhos do mito e da linguagem, não para a frente, mas sim para trás – cumpre retroceder até o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes. E este ponto comum parece ser realmente demonstrável, já que por mais que se diferenciem entre si os conteúdos do mito e da linguagem, atua neles uma mesma forma de concepção mental. Trata-se daquela forma que, para abreviar, podemos denominar o pensamento metafórico. Portanto, parece que devemos partir da natureza e do significado da metáfora, se quisermos compreender, por um lado, a unidade dos mundos míticos e linguísticos e, por outro, sua diferença[7].

 

            Não se procura aqui uma análise do personagem preso a uma linha crítica específica, mas entender o fenômeno utilizando todo o material a que tivemos acesso para formular sua gênese, sua conformação e sua atuação. Diferentemente do personagem das artes dramáticas que se corporificam, o personagem da literatura não dispõe de mecanismos visuais e sua corporificação advém de um mecanismo complexo e requer do leitor uma outra experiência ontológica e epistemológica. Ao mesmo tempo que não pode funcionar sozinho e ter de atuar num espaço/tempo e mover-se para promover uma cinese que permita que a trama se concretize, o personagem não é apenas mais um elemento da narração, mas o catalizador de uma série de experiências emotivas e sensoriais que leva autor e leitor a um mundo de provocações existenciais.

            Este livro é mais especulativo que afirmativo. Não desejamos que nossa análise seja vista como um estudo fechado, mas que tenha a simpatia do leitor para uma aventura inquieta e interativa. O que em alguns momentos pode soar como pretencioso ou indiscutível é apenas um descuido da escrita. Nosso propósito é o compartilhamento de inquietações sobre este fenômeno que nos fascina e que foi preciso escrever sobre ele a fim de sossegar algumas perguntas que ao longo de anos nos perseguiam.

 

 

 

 

 



[1]  “Notre intention est plutôt de nous situer sur un terrain autre que celui d’une psychologie sociale, ou d’une esthétique, terrains qui sont ceux de M. Zeraffa, pour privilégier une étude que rende au personnage sa détermination d’objet stylistique romanesque, étude qui cependant pourra intégrer, mais sans privilégier, le “point de vue” de l’auteur sur sa creátion, donc, également et par ce biais, une certaine conception de la “personnage” historiquement et idéologiquement datée. Simplement, nous choisirons d’accéder à cette détermination historique et idéologique en l’assimilant à un type et pacte de communication (communication realiste – vraisemblable – pédagogique) et à un style d’epoque (l’escriture artiste-impressionniste), plutôt qu’à une donnée philosohique ou morale.” HAMON, Philippe. Le personnel du roman. Le sistème des personnages dans les Rougon-Macquart d’Emile Zola.  Genève: Droz, 2011. p. 14.

[2] “Pour reprendre la termonologie de W.Iser, nous allons attacher au pôle esthétique du roman, non à son pôle artistique: ‘on peut dire que l’ouvre littéraire a deux pôles: le pôle artistique et le pôle esthétique. Le pôle artistique se réfère au texto produit par l’auteur tandis que le pôle esthétique se rapporte à la concrétisation réalisée par le lecteur’. En termes linguistiques, nous étudierons la force perlocutoire du texte (as capacite à agir sur le lecteur) plutôt que son aspect illocutoire (l’a intention manifestée par le auteur).” A citação de Iser vem do seu livro O ato de leitura, teoria do efeito estético. Vicent Jouve o cita em seu livro L’effet-personnage dans le roman. Paris: Press Universitaire de France, 1992. p. 14.

[3] ZÉRAFFA. Michel. Pessoa e personagem. O romanesco dos anos de 1920 aos anos de 1950. Tradução Luiz João Gaia e J Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 9.

[4] Citado por Antonio Candido ap. CANDIDO, A., ROSENFELD, A., PRADO, Decio de A., GOMES, Paulo E. S, in A personagem da ficção. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 61.

[5] CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1989. p.27

[6] CASSIRER, Ernest. Mito e linguagem. 3ª ed. Tradução J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 64.

[7] Idem, p. 102.