sábado, 30 de março de 2024

Um homem é muito pouco 32



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          A família de Alice tinha grana. Ela é que não tinha grana. Estudara inglês e era poeta. Eu andava com os amigos poetas de Alice e não entendia aquela história de Kerouac, Ginsberg e Silvia Plath. Alice gostava dos poetas beat mas não queria ir on the road. Não era judia, gostava da poesia de Ginsberg, mas não queria ser internada no sanatório para malucos do Bellavue. Nem muito menos queria se matar como Silvia Plath. A maioria do grupo de Alice gostava mais da vida dos escritores do que propriamente dos escritores.

            Li os livros que Alice trouxe para casa. Literatura de confissão. A literatura de confissão – se você tem vida louca, on the road ou suicida – é literatura que chama a atenção. E literatura fácil de ler, mesmo para um cara que não lia muito, embora não desgostasse da leitura, nem fosse idiota. Eu apenas não tinha a pretensão de ser poeta e discutir poesia. Dos brasileiros, eles não comentavam muito. Os franceses eles tinham dificuldade de ler, mas quem eles não podiam deixar de ler eram os malditos franceses, ou melhor, os poetas malditos franceses. Alice via duas ou três sessões seguidas do mesmo filme e eu não entendia como alguém podia assistir a duas ou três sessões seguidas do mesmo filme. A impressão que eu tinha é que ela era burra e queria ver o filme para elucidar alguns detalhes. Mas é claro que Alice não era burra nem queria elucidar alguns detalhes. Alice via os filmes para que os filmes entrassem nela, fizessem parte do passado dela, que fossem como lembranças do que havia vivido e não imagens de filme feito por um diretor e passado no Metro Copacabana ou no Paissandu. Alice fugia da família e do passado, talvez fosse por isso que entrava no cinema em busca de um passado alheio que ela pudesse incorporar no repertório do passado dela.

(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

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quarta-feira, 27 de março de 2024

As calçadas, poema

 


 


 

 

 

 

 

 

 

As calçadas do Leblon

se inclinam,

homens não podem

andar inclinados,

como se estivessem

com a vida inclinada.

Os homens inclinados

não têm prumo

e um homem sem prumo

é um barco ébrio à deriva.

Tenho a inclinação

para ver a vida de viés,

quando o mundo

é mais líquido.

 

Deve ser difícil

andar como Cristo

sobre as ondas

que são calçadas

que se movem,

Cristo devia ter

muito equilíbrio.

Um homem equilibrado

é tudo.

Meu desequilíbrio

é uma calçada

de pedras portuguesas

que me inclinam

na vida pedestre que levo.

 

Ao fim do percurso penso

que poderia ter

dois tamanhos para as pernas,

uma mais curta

para a beira dos edifícios

e outra mais longa

para perto do meio-fio.

Minha vida

é tão desequilibrada,

que também tenho

dois pensamentos:

um mais curto

para as coisas ordinárias

e outro mais longo

para o desequilíbrio do mundo.