quarta-feira, 24 de abril de 2024

Bananeira, poema

 


 


 

 

 














Tanto proíbo

os olhos que não enxergo

meus juízos.

Meu coração não sente

o que meus zelos

não veem.

De noite, floresto meus medos:

um mato sem cachorro.

Planto bananeira:

as certezas de cabeça para baixo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 20 de abril de 2024

O sagrado e o profano, poema

 

 

 


 

 

 

Entre os versículos

de que mais gosto

estão os do profeta

Carlos que foi um anjo torto.

 

Os salmos são

os de Andrade

que recitam o desvario

da cidade

e a gota de sangue

que pinga em cada aleluia.

 

Meus cânticos

são do jardineiro

Charles que cultivava

rosas do mal.

 

O meu Cântico dos cânticos

é o do cantor cego:

Homero ou Borges:

um cantou a guerra,

outro Ulisses sem mastro

ou cera de abelha

para cair na tentação

das bibliotecas.

 

Minha bíblia

é um evangelho

segundo João,

não o Batista,

mas o do Recife,

primo de Manuel,

neto de outro Cabral.

 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Um homem é muito pouco 20



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          Há também moças em flor. Mas as moças em flor do apartamento do andar de cima são flores murchas. Também são flores vadias. A verdadeira flor vadia é a do campo. Posta aqui, sem tomar sol, trabalhando de pernas para o ar, as flores logo pegam doença venérea. E doença venérea não é boa pras flores. A polícia já apareceu aqui para conferir o jardim. A polícia queria saber se era jardim de infância. Mas como não tinha nenhuma menor a polícia decidiu pegar um pouco de grama. A grama que a senhora dona do estabelecimento dá pros guardas também é verde e vale uma nota. Toda semana a polícia vem visitar o jardim de d. Sereja: as moças não desabrocham, embora tenham pernas firmes e andem sem raízes.
            Fui duas vezes lá. Pensei até que uma delas, Marilene, deixava escapar um botão de Rosa. Eu a chamava de Rosilene, ela ria. Ela ria mais, depois tossia. Uma tosse vadia. Não era doença de pulmão. Os peitos de Rosilene tinham duas camélias de dar inveja a qualquer expositor. D. Sereja cultiva pecado e doença. Por isso as flores dela não duram muito. Ele tem que plantar outras mudas, que logo adoecem. Se não adoecem de doença venérea, adoecem de droga.
            Certa vez encontrei dr. Máximo na floricultura de d. Sereja.
            O que o senhor faz aqui?
            Vim descansar.
            O senhor está louco, aqui não se descansa, o que tem mais é suor, não sente o cheiro de suor?
            O cheiro de suor que eu sentia não era cheiro de sexo. O cheiro de suor que eu sentia era cheiro de animal que trabalha muito. O cheiro do lombo do cavalo, por exemplo. O lombo de cavalo das meninas ficava suado e aquela exuberância de coxas e peitos era falsa como pivô dos dentes do dr. Máximo. Elas tinham que cavalgar a tarde inteira e a noite inteira.
            Não voltei lá, é uma furada se apaixonar por puta. Elas dormem quando você acorda, elas acordam quando você vai dormir. D. Sereja aluga cinco apartamentos. D. Sereja também dá grama para o síndico. E não o deixa pagar quando ele arranca as flores do pé do jardim dela. Tenho muito grama na cabeça, às vezes me pego pensando erva daninha. Não gosto de pensar coisas daninhas que podem apodrecer meu pensamento. Por isso evito qualquer coisa que possa tirar seiva da minha cabeça.


(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)




quarta-feira, 17 de abril de 2024

As nuvens solidárias, poema

 


 

 


 

 

As nuvens têm

quatro paredes:

a parede do céu,

outra da terra,

uma do horizonte

e por fim a parede do tempo.

Nenhuma nuvem

vive fora das quatros paredes.

Ela só escapa

das quatro paredes

quando chora.

O tempo da nuvem

não é o tempo do relógio

que é uma nuvem presa

pelos ponteiros.

Homem e nuvem

muito se parecem,

se agitam,

mudam de lugar

e estão presos às quatro paredes.

 

As paredes do homem

são paredes do pensamento,

que são infinitas

como as bolas

que não tem começo nem fim;

a terra que pisa,

o horizonte do futuro

que se afasta

quando dele se aproxima

e o tempo

que tudo esfarinha.

 

 

 

 

 

terça-feira, 9 de abril de 2024

Vício, poema

 


 

 






 

 

 

Meu ar é viciado.

Sou dependente

do vício de mim.

Queria a abstinência,

me purificar de outro.

Os vícios são circulares.

São carrosséis

de dependência.

Os mesmos cavalos

rodopiantes da obsessão.

Busco a reabilitação

da alegria,

que é outro vício,

que logo requer

aumento de dose.

Dopado de enganos,

procuro a amizade

e a literatura,

dois fármacos

cujo comércio é raro.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Fogo, poema

 


 


 

 

 

 

Queria antes a frieza

dos olhos de vidro

e a impureza das torrentes

que tudo iguala

na voragem das inquisições.

 

Há labaredas em mim

difíceis de apagar:

a combustão da verdade.

Um dia tudo será cinzas,

até mesmo o resto

que pretendi me sobreviver.

Meu fogo é fátuo

e já abuso

da queima das horas.

Viver é outra

forma de incêndio.

 

 

 

 

 

domingo, 31 de março de 2024

Gato, poema

 


 

 


 

 

 

O gato passeia em mim

suas garras de retorcido tédio.

Mia suas desavenças

com o corpo dúctil

das dificuldades da espécie.

Ora está no parapeito

da queda

– muitos de nós nos

acostumamos ao abismo –

ora se aquece

no labirinto do seu

casaco de pelos.

 

Com seus olhos de caçador,

se cobrem de escuridão

para se esgueirar

do sono, das sombras e do instante.

Quatro patas ejetam

a mola do corpo para fugir

do cão da morte

ou para se espantar

do susto da vida.

 

 

 

 

 

sábado, 30 de março de 2024

Um homem é muito pouco 32



      Resultado de imagem para miró

          A família de Alice tinha grana. Ela é que não tinha grana. Estudara inglês e era poeta. Eu andava com os amigos poetas de Alice e não entendia aquela história de Kerouac, Ginsberg e Silvia Plath. Alice gostava dos poetas beat mas não queria ir on the road. Não era judia, gostava da poesia de Ginsberg, mas não queria ser internada no sanatório para malucos do Bellavue. Nem muito menos queria se matar como Silvia Plath. A maioria do grupo de Alice gostava mais da vida dos escritores do que propriamente dos escritores.

            Li os livros que Alice trouxe para casa. Literatura de confissão. A literatura de confissão – se você tem vida louca, on the road ou suicida – é literatura que chama a atenção. E literatura fácil de ler, mesmo para um cara que não lia muito, embora não desgostasse da leitura, nem fosse idiota. Eu apenas não tinha a pretensão de ser poeta e discutir poesia. Dos brasileiros, eles não comentavam muito. Os franceses eles tinham dificuldade de ler, mas quem eles não podiam deixar de ler eram os malditos franceses, ou melhor, os poetas malditos franceses. Alice via duas ou três sessões seguidas do mesmo filme e eu não entendia como alguém podia assistir a duas ou três sessões seguidas do mesmo filme. A impressão que eu tinha é que ela era burra e queria ver o filme para elucidar alguns detalhes. Mas é claro que Alice não era burra nem queria elucidar alguns detalhes. Alice via os filmes para que os filmes entrassem nela, fizessem parte do passado dela, que fossem como lembranças do que havia vivido e não imagens de filme feito por um diretor e passado no Metro Copacabana ou no Paissandu. Alice fugia da família e do passado, talvez fosse por isso que entrava no cinema em busca de um passado alheio que ela pudesse incorporar no repertório do passado dela.

(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

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quarta-feira, 27 de março de 2024

As calçadas, poema

 


 


 

 

 

 

 

 

 

As calçadas do Leblon

se inclinam,

homens não podem

andar inclinados,

como se estivessem

com a vida inclinada.

Os homens inclinados

não têm prumo

e um homem sem prumo

é um barco ébrio à deriva.

Tenho a inclinação

para ver a vida de viés,

quando o mundo

é mais líquido.

 

Deve ser difícil

andar como Cristo

sobre as ondas

que são calçadas

que se movem,

Cristo devia ter

muito equilíbrio.

Um homem equilibrado

é tudo.

Meu desequilíbrio

é uma calçada

de pedras portuguesas

que me inclinam

na vida pedestre que levo.

 

Ao fim do percurso penso

que poderia ter

dois tamanhos para as pernas,

uma mais curta

para a beira dos edifícios

e outra mais longa

para perto do meio-fio.

Minha vida

é tão desequilibrada,

que também tenho

dois pensamentos:

um mais curto

para as coisas ordinárias

e outro mais longo

para o desequilíbrio do mundo.

 

 

 

 

sábado, 16 de março de 2024

Os anjos, poema

 


 


 

 

 

 

Os anjos pertencem

à espécie das aves

ou ao gênero humano?

São seres voadores

ou animais bípedes?

Se são espíritos,

então por que aparecem

pairando como beija-flores?

São várias

as espécies de anjo,

como são várias

as espécies de ave.

 

Pode um anjo ser maior

do que seu protegido?

O anjo da guarda

das crianças

são anjos pequenos?

Um anjo pode caber no bolso,

pode ter o tamanho

de um pardal?

A Bíblia fala em doze anjos

e os classifica.

Não quero saber

da lista fabulosa

dos anjos da Bíblia,

com seis asas,

outros com duas cabeças,

uns reduzidos

e outros um pouco maior

que um homem,

pecador e ordinário.

 

Trago comigo meu anjo

e sei quando se alvoroça,

mexendo as asas,

inquieto, meu anjo

não me protege dos outros,

dos homens maus

e cobiçosos,

mas de mim mesmo, quando

me encontro nervoso e febril,

tomado por outro anjo,

este decaído, mundano

e infernal.

Ora pertence

aos escândalos da carne,

ora me perdoa ser débil, 

de me servir da gula

do mundo

e das delícias da vida.