segunda-feira, 11 de junho de 2018

O sonho do celta, Mario Vargas Llosa


Ronaldo Costa Fernandes


A pujança narrativa de Vargas Llosa nos impressiona sempre, mesmo em romances com menor poder de sedução que, no passado, nos frustrou ao prometer o que não cumpriu. Desde a primeira leitura de A casa verde, ainda nos anos 60, acompanhei a trajetória do prêmio Nobel que já em La ciudad y los perros (A cidade e os cachorros, traduzido no Brasil, inicialmente, com o desconcertante título de Batismo de fogo) explodiu não apenas como fenômeno de venda, mas também um dos mestres do boom da literatura hispano-americana. Entre tanto fantástico, realismo mágico e o maravilhoso, surgia um realista a la Faulkner, ludicamente trabalhando o espaço e o tempo, as vozes narrativas e os enredos e incluindo o humor que, naqueles anos politizados, não tinha o status de grande literatura.
Volto então a ler Vargas Llosa em O sonho do celta, no original, editado pela espanhola Alfaguarra, e me surge o temor de rever algumas temáticas já encarquilhadas e que não faziam mais parte do repertório da literatura hispano-americana. O sonho do celta tem algumas características da literatura do próprio Llosa e outros traços que parecem permanentes na narrativa de língua espanhola feita nas Américas. Do velho Llosa lá estão a selva de A casa verde, o ambiente constrangedor, o jogo especular de opor dois mundos: o mundo civilizado e o mundo brutal da realidade latino-americana. Da literatura neorrealista da América espanhola estão os temas como a selva x mundo civilizado, a selva vencendo o homem civilizado ou derrotando-o com seu meio animal e primitivo, temática que serviu muito bem para Romulo Gallegos ou para Horacio Quiroga, e a denúncia social da exploração do homem pelo homem, de quando o próprio Llosa namorou o comunismo.

Depois, temi ver em O sonho do celta, uma biografia romanceada. As biografias romanceadas geralmente não obtêm bom resultado. Os biógrafos não são romancistas e acabam estragando um bom tema. Com Llosa, o romance não correria este perigo, embora ele, nas primeiras páginas, estivesse um pouco emperrado. Num romance, o narrador não coloca uma frase como: “em 13 de janeiro de 1904”, que cabe à biografia e à História e não à ficção (que talvez diria “naquela manhã nublada”) e à história.
O sonho do celta relata a vida de Roger Casement, um irlandês que, em nome da Inglaterra, cumpre missões diplomáticas no Congo Belga, no Brasil, no Peru, é sagrado Sir e, no fim da vida, torna-se um apaixonado nacionalista que luta pela causa da liberdade do seu país, é preso e condenado à morte. A primeira parte da aventura de Roger, passada na África, é uma enumeração cronológica das atrocidades cometidas pelos colonizadores europeus que, em nome da civilização, seviciam, maltratam, humilham, açoitam e matam os negros. Fruto talvez da pesquisa – e com pouca vivência africana –, Llosa se repete mudando apenas os crimes ou os nomes dos crimes, da violência e dos atos bárbaros.
Llosa, contudo, só passa a crescer como o velho narrador que conhecemos quando o cenário é o trópico, seu país natal, Peru, e sua cidade amazônica, Iquitos, onde Casement é mandado pelo governo inglês para uma auditoria numa empresa anglo-peruana que, para extrair o látex, trata desumanamente os indígenas. Preso ainda a sua pesquisa e fiel à biografia de Roger Casement, Llosa sente-se mais à vontade e seguro do tema que narra. É aí então que o personagem se desgarra da História e o pulso narrativo de Llosa retorna com vigor até mesmo, ou principalmente, ao contar as relações homossexuais do personagem e sua luta para uma Irlanda independente.
Aqui também ocorre o fenômeno já observado em outros romances de Llosa, principalmente em O paraíso na outra esquina. Em ambos, a utopia é um dos temas centrais, o cenário primordial é a Europa, cenário e campo de confronto de ideias. E os personagens principais têm vínculo com o Peru, assim Casement vai lutar pelos direitos humanos na selva amazônica peruana e a avó materna de Gauguin, a protomarxista Flora, irá abraçar o socialismo, discursar em meetings, tornando-se uma grande figura do movimento operário internacional. Logo se percebe que o vínculo entre a brava personagem e o Peru de Llosa vem a ser o nascimento burguês de Flora na bela e vulcânica cidade de Arequipa, empoleirada nos Andes.

imagens retiradas da internet

domingo, 10 de junho de 2018

Clarice Lispector, uma biografia, de Benjamin Moser



A primeira vez que vi Clarice Lispector foi no verão de 1971. Três rapazes e uma moça decidiram publicar um volumezinho de poemas iniciais chamado Canto aberto. A moça era a poeta e compositora Denise Emmer e os rapazes o poeta e ator Sérgio Fonta, Paulo Gurgel Valente e eu. Estávamos na Prudente de Morais, na bilheteria àquela hora dispensável e amigável do Teatro Ipanema. Tony Ramos leria os poemas de Denise. Os de Sérgio Fonta caberiam ao ator e dono do teatro Rubens Correa (Sérgio acaba de publicar a biografia desse grande ator do teatro brasileiro); de Paulo Valente, os poemas seriam lidos por Claudio Cavalcanti. Os meus por Mário Lago. Alguém me bateu no ombro e escutei a voz do Paulo: “Ronaldo, quero te apresentar minha mãe”. A mãe do Paulo era Clarice Lispector.

Vi uma senhora – para mim, aos dezoito anos, uma senhora – vestida de preto, com batom vermelhíssimo e que me estendeu a mão mais para beijá-la que para o aperto. Sem jeito, apertei a mão que não inclinara. Ela deixou escapar um longínquo sorriso e um olhar que até hoje não esqueço. Tudo isso me voltou ao ler a biografia de Clarice, escrita por Benjamim Moser, e publicada pela Cosacnaif.

Mais tarde, quando Clarice começa a ser publicada pela editora Artenova, de Álvaro Pacheco, via-a duas ou três vezes. Não me arriscava a chegar perto dela. Era o tempo em que publicou Onde estivestes de noite ou Via crucis do corpo, se não me engano. O editor não ficou bem na foto na biografia de Moser: os autores não recebiam os direitos autorais e Clarice chegou a ser vítima de um parecer sobre suas traduções em que a parecerista acusava-a de modificar “o significado das palavras e mesmo inversão do sentido das frases”. O mais cruel para mim era ver um despreparado jornalista que se fazia de assistente do editor desconhecer o talento e a grandeza de quem lhe levava as traduções. Pobre Clarice.

O livro Clarice, uma biografia, de Benjamin Moser, é excelente. Começa com os lugares-comuns que conhecemos sobre Clarice e pensei comigo que ia ler algo que já conhecia de sobeja, quando o autor interrompe e, num corte, leva o leitor até a Ucrânia dos antepassados de Clarice. Numa pesquisa rigorosa e inteligente, o autor nos conduz a um mundo obscuro, faminto e desumano da perseguição aos judeus e da fuga dos Lispector até o Novo Mundo, em Maceió e depois Recife. Para mim, é a melhor parte da biografia, pois mais ou menos sempre sabemos algo da personalidade e, pelos livros, temos uma visão muito idiossincrática da autora de Perto do coração selvagem.


É comum nas biografias os autores utilizarem o texto do biografado para dar suporte a determinadas fases da sua vida. Desta maneira, geralmente ficam a meio caminho entre encontrar indícios que comprovem suas afirmativas ou fazer crítica literária. Moser muito inteligentemente utiliza o texto de Clarice, principalmente aqueles mais biográficos e que parece não haver discordância, para apoiar sua análise. Envereda um pouco pela crítica literária – o que é saudável –, quase sempre se apoiando também na repercussão que os textos tiveram à sua época. Todo cuidado é pouco, contudo, para que não se misture o processo criativo que tem sua autonomia e a vida dos biografados.

Moser consegue criar um clima de curiosidade e revela-se exímio pesquisador, desvelando para o leitor uma Clarice Lispector de corpo inteiro: a paixão segundo C.L. Não é à toa que o livro teve uma vendagem expressiva. Algumas considerações sobre Água Viva me pareceram exageradas, mas respeito a visão e a análise do biógrafo. O certo é que o livro é fascinante e mostra uma grandeza à altura que está perto do coração selvagem de Clarice Lispector. (RCF)