domingo, 1 de fevereiro de 2015

Homi Bhabha e o valor das diferenças






Instalado em seu gabinete na direção do Centro de Humanidades da prestigiosa Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Homi Bhabha, 62 anos, define com natural entusiasmo as suas responsabilidades acadêmicas:— A minha ambição não é ser o diretor de um departamento, mas de encruzilhadas, da circulação de ideias, de estar na confluência onde as pessoas e as conversações interagem e criam novos e emergentes campos de estudo.
A descrição emerge em simbiose com sua trajetória intelectual. Nascido na Índia, com estudos na Inglaterra e adotado pelos EUA, Homi Bhabha se impôs como um dos principais arautos dos chamados teóricos pós-coloniais e do multiculturalismo, um atento pesquisador das minorias sociais e culturais. Em seus ensaios — “O local da cultura”, de 1994 (Editora UFMG), é uma de suas obras referenciais —, o original e também polêmico pensador desenvolveu definições próprias de conceitos como “hibridismo”, “cosmopolitismo vernacular”, “tradução” ou “cidadania cultural”. A coletânea “O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses”, agora lançada no Brasil pela Editora Rocco (organização de Eduardo F. Coutinho, tradução de Teresa Dias Carneiro, 192 páginas, R$ 27), reúne sete textos ilustrativos de suas inquietas investigações sobre as sociedades contemporâneas, analisadas por meio de seus singulares filtros teóricos.
Sua inspiração intelectual é assumida em ideias de pensadores como Michel Foucault, Jacques Lacan, Jacques Derrida; em ensaios de Edward Said; nas obras de escritores como Derek Walcott, Toni Morrison e Salman Rushdie, ou no artista plástico indiano-britânico Anish Kapoor. Bhabha defende a análise crítica por um viés não linear, numa multiplicidade de níveis e articulações. Em suas reflexões, aponta a insuficiência da “racionalidade política” para a compreensão das questões de sociedade e da modernidade. Segundo ele, é essencial considerar no entendimento social o que chama de “afetos públicos”, traduzidos em emoções diversas como a vergonha, a humilhação, a culpa ou a ambivalência. Nesta conversa com o GLOBO, Homi Bhabha aborda suas teorias relacionadas a temas atuais, denuncia um “pluralismo preguiçoso” nas definições das identidades humanas, e elege a literatura como o principal ato de sobrevivência cultural.
Como o senhor vê hoje as relações entre a comunidade global e as cidadanias?
A cidadania pública envolve afetos complicados: vergonha, humilhação, culpa, ambivalência. Isso faz parte da nossa condição de cidadãos. São afetos que formam a base da ação ética, como honra, responsabilidade, reconhecimento. Também são pontos que criam imensos conflitos de julgamento num sentido público, especialmente nos casos em que estão implicadas certas questões de minorias. Se pensamos que uma das grandes questões relacionadas com a cidadania é o reconhecimento ético do outro, de um lado, e, de outro, a representação almejada do bem comum, o tema do afeto deve estar profundamente ligado com o que entendemos por racionalidade política. Ninguém tem um passaporte global. Os únicos passaportes mundiais que temos são cartões de privilégio, como os cartões (de crédito) Visa Platinum, American Express Gold. Mas se refletimos sobre as muitas preocupações éticas, políticas e sociais que temos, nós vamos além de nossa comunidade e nos estendemos internacional ou globalmente. Se pensamos nisso, então compreendemos como é importante ampliar o olhar para essas áreas de afeto que descrevi, como um acompanhamento importante da racionalidade política.


O senhor diz que as instituições governamentais, a racionalidade política, não se dão conta dessa área de afetos públicos, e também que as instituições culturais não dão a devida atenção à cidadania cultural. Isso constitui um problema para a democracia?
Sim, acho que um problema é o de que as instituições culturais — como a maioria das instituições — desenvolvem frequentemente uma espécie de ideologia funcional. Desde que funcione, desde que façamos pessoas de mundos diversos entrarem nos museus ou nas universidades, desde que sejamos representados democraticamente, tudo bem. Mas temos também de nos perguntar: as respostas podem ser muito diferentes, não? E é assim que às vezes acontecem guerras culturais. As pessoas contestaram os próprios fundamentos do museu.

Como o seu conceito de cosmopolitismo entra no debate contemporâneo?
Desde os anos 1980-90 tem ocorrido, acompanhando o progresso da globalização, uma grande explosão de escritos sobre o cosmopolitismo, baseados no sentido de que as pessoas têm múltiplas identidades e identificações. Eu sentia que havia algo fácil ou simples demais nisso. O espírito público é profundamente complexo, e me pareceu que esse cosmopolitismo arquimediano era conveniente para aqueles que obtiveram sucesso nos jogos da globalização. E o que dizer daqueles que estão fora das fronteiras, que estão na periferia, que estão por baixo e não por cima, o que se passa com eles? O que me fez repensar a questão do cosmopolitismo foi a condição estrutural e cultural da colonização, em que ninguém perguntava aos indianos: “Vocês querem que outras culturas lhes sejam impostas?” Nenhum indiano estava no tempo ou no lugar, na condição de cidadania, para poder considerar o que estava acontecendo a eles. Eles negociaram a situação. Eles tinham um modo de absorver certas ideias progressistas do Ocidente, porque se davam conta de que certas ideias de modernidade melhoravam o seu mundo. Eles aceitavam a modernização, mas não necessariamente a bagagem ideológica, ética ou dos costumes da ocidentalização. É dessa experiência, acho eu, que advêm tanto o meu conceito de hibridização como o de cosmopolitismo vernacular. A hibridização não é somente a diversidade de identificações que qualquer indivíduo ou sociedade pode ter. Não é o fato de você comer sushi, usar roupas italianas, falar duas línguas diferentes, ser membro de uma igreja ou de um movimento ecológico. Esse argumento de múltiplas identidades nunca me pareceu significativo. É uma espécie de pluralismo preguiçoso. Acho que os problemas que temos e as maneiras de pensá-los constituem o modo como criamos identificações culturais híbridas. Há sempre um conflito entre poder e autoridade. Há sempre uma espécie de negociação complicada de significados, de símbolos, de identidades, de blocos de poder, de estruturas de autorização, de reconhecimento.

Seria o caso do exemplo que o senhor costuma citar, da negociação do cristianismo colonial com os indianos, que teriam exigido uma Bíblia que pregasse o vegetarianismo para poderem acreditar na palavra dos catequizadores?
Sim, isso está no coração do problema. E depois de ter pensado sobre o paradigma da colonização, comecei a pensar sobre as minorias contemporâneas, a migração e a diáspora de povos. Por exemplo, quando um indivíduo sai do Paquistão, onde ele já não consegue viver e sustentar a sua família como camponês, e vai ser motorista de táxi em Nova York, há uma continuidade entre a sua suposta situação colonial no Paquistão e sua situação de participante da diáspora em Nova York. E parece-me haver uma espécie de negociação de poder cultural, e poder simbólico, uma negociação das diferenças, o que cria o que chamo de cosmopolitismo vernacular: aqueles que estão continuamente levando uma vida na qual não negam as suas origens, mas as experiências de suas vidas exigem que eles traduzam suas culturas e que vivam nessa zona de traduções.

Com base nos seus conceitos, como o senhor vê a questão da proibição do véu islâmico na França e o debate sobre a construção de uma mesquita próxima do local do atentado às Torres Gêmeas em Nova York?
Deixe-me contar uma história. Eu havia dado uma palestra em Berlim há uns três ou quatro anos, tarde da noite, e tinha uma outra em Manchester, Inglaterra, às 10h da manhã seguinte. E a única maneira de fazer isso era tomar um voo que saía de Berlim às 5h. O avião me levou a um aeroporto provinciano no norte da Inglaterra, e tomei um desses trens de subúrbios que têm paradas a cada dez minutos. Estava lendo o trabalho que apresentaria, um texto sobre arte contemporânea produzida por mulheres que têm alguma ligação com o Islã, mas que viveram a maior parte da sua vida como imigrantes da diáspora fora de qualquer sociedade islâmica. E cheguei à ideia sobre a esfera pública. Há algo problemático em dizer: “Se lhes damos seus direitos, não temos de viver com seus hábitos”. E claro que na França, em particular, toda a noção sobre a cidadania diz que você está nu diante do Estado, você não traz consigo a sua bagagem cultural. Mas obviamente na prática isso não acontece. Estava lendo esse trecho da minha palestra quando levantei os olhos e diante de mim vi o que me provocou um choque. Era uma jovem coberta por um véu, apenas os olhos aparecendo. As faces de todos as demais pessoas estavam à vista, e aquilo me chocou. E minutos depois o trem para e ela se levanta para sair. Quando passou por mim, olhei e descobri que as suas costas estavam completamente à vista. E ela usava uma calça jeans que chegava até as suas ancas, e tinha uma pequena tatuagem. Mas seu rosto estava mascarado. Duas coisas eram claras para mim. Primeiro, que na nossa cultura sempre parecemos querer colocar todos os tipos de comportamento na panela maior da identidade. A maneira de se vestir, de falar, tudo tem de formar uma noção composta de identidade, aí nos sentimos seguros. Acho que isso é o problema real nesse caso. Segundo, não devemos ler essas coisas como marcas de identidade, mas como mensagens misturadas, diferentes. De um modo engraçado, esse era o direito da jovem de brincar com os diferentes tipos de linguagens, expectativas, normas e códigos de uma esfera pública metropolitana pós-migração ou da diáspora. Acho que toda sociedade deveria ter meios democráticos de negociar o que considera ser uma remodelagem positiva e produtiva da esfera pública. Mas também acho que nossas maneiras de ler a ciência cultural em relação aos modos de identificação humana deveriam ser mais sofisticadas. Se você lê os véus como uma identidade, talvez diga: “Oh, odeio véus”. Mas se você os lê como algo que envia uma mensagem, algo que se dirige à sociedade, então é diferente. Porém, como introduzir esse tipo de pensamento em círculos de políticas públicas? Isso é o que eu gostaria de ser capaz de fazer.

Como o senhor vê a relação entre literatura e identidade nacional na ficção contemporânea, principalmente nos países de recente passado colonial?
Escritores de sociedades pós-coloniais tiveram em geral uma educação muito mais internacional e cosmopolita, se comparado com sistemas educacionais mais restritos e nacionais. Em Bombaim, eu estudava numa escola jesuíta espanhola. Tínhamos manuais que vinham da Inglaterra e dos EUA. Aprendíamos não somente a geografia da Índia, mas também da Grã-Bretanha, por causa do colonialismo britânico — embora eu tenha frequentado a escola depois da independência. Estudávamos a América Latina, aprendíamos a literatura de diferentes partes do mundo. Nós sabíamos que os abusos do nacionalismo se referem ao fechamento, a estreitar a janela. Mas as pessoas em sociedades pós-coloniais experimentaram a ampla e aberta janela do mundo, embora fossem muitas vezes os desgraçados da terra. Você vê o paradoxo? Um dos primeiros líderes políticos dos intocáveis na Índia escreveu um livro sobre a escravidão de sua casta. Ele dedicou a obra aos negros americanos. Era alguém que nunca tinha saído da Índia àquela época, a sua base era uma aldeia do interior. Para ele, a fronteira nacional não possuía a metade da importância, em sua própria língua vernacular, da extensão cosmopolita do mundo. Por isso chamo de cosmopolitismo vernacular. A literatura sempre rompeu com os limites nacionais. São muito poucas as grandes obras da literatura que seguem uma perspectiva estritamente patriótica ou nacionalista. Não nego que existam algumas. Mas as obras mais interessantes, mesmo com perspectiva nacional, têm a ver com contradições e disjunções da nação. As obras literárias que só recitam um credo nacional não têm nenhum interesse. Só interessam a políticos tiranos. Ditadores adoram obras assim.

O senhor coloca a literatura como a forma mais sensível e de enorme significado entre os atos de “sobrevivência cultural”. Por quê?
Posso dizer muitas coisas sobre o poder da literatura. Na maioria dos regimes opressivos, as pessoas usam a literatura, no sentido amplo — eu me refiro à escrita, a canções, à música —, para se expressar e criar em si mesmo a força espiritual, ética, estética de sobrevivência. W.E.B. DuBois escreveu essa grande obra “The souls of black folk”, que talvez seja o mais reverenciado e brilhante livro de toda a tradição afro-americana. Ele conclui o livro com o que chama de canções de lamento, as músicas cantadas pelos escravos. Muitas vezes eram canções em que o ritmo era quebrado, a linguagem era limitada — com algumas palavras africanas e em inglês —, mas foi o que lhes permitiu sobreviver. Na Índia, os intocáveis muitas vezes escreviam canções e panfletos para poder sobreviver, criar solidariedade entre eles. Pessoas em situação de grande coação, quando a sobrevivência social e cultural é extrema, com frequência se referem à imaginação da escrita literária. A grande contribuição da narrativa em geral, e da literária em particular, é que permite pensar de modo contrafatual. A verdadeira natureza da narrativa sempre levanta a questão: se as coisas fossem diferentes, qual poderia ser o resultado? Se eu não fosse eu mesmo, como veria o mundo? Se meu vizinho fosse um estranho, qual seria minha relação com ele? Questões sobre alteridade, alternância e contrafatualidade estão no centro do projeto de imaginação literária e cultural, e é por isso que penso que nos ajuda a sobreviver.



(fonte: O Globo)