sábado, 29 de setembro de 2018

Há de se prender o instante, poema RCF


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Há de se prender o instante para que ele permaneça além do instante,
ou que se repita uma e outra vez e faça um rosário de instantes
a fim de que se possa criar um catecismo, um beabá,
uma cartilha que ensine o que não pode ser ensinado,
que fixe o que não pode ser fixado, e o instante mude de lugar
e de instante passe a ser permanente
que é o desejo grávido dos que querem
ser feliz e tornar o que é triste, que o
mais das vezes é permanente, em apenas um
instante, algo esporádico e furtivo
como esporádico e furtivo são os beija-flores
que batem suas asas de instante, nervosas e
mecânicas, para depois sumir e não se saber
se foi um foto que se moveu ou um pássaro
que pousou no ar. Entre o instante e o permanente,
há os interstícios que não explodem
nem são contínuos, apenas vibram
uma corda que ninguém ouve ou vê, tornando
o instante e o eterno categorias fora do tempo e do
homem, esse misto de duas águas que não se
misturam e não se sabe onde nascem nem onde
desembocam como as lagoas, que são rios parados
como se pudessem represar o tempo, o tempo estagnado
e cheio de musgos, profundo e escuro,
sem queda ou comporta que o desafogue.                                              


(Memória dos Porcos, 2012)


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Açougue, poema RCF





Este açougue
onde estão pendurados
a carne dos meus pecados
os miúdos dos meus vícios
é um bricabraque de culpas.

Este açougue
nervos expostos
retorcidos músculos de remorso
massa tensa que inflama
os pesares e o peso da dúvida
que balança a balança
que me desequilibra.

Há tempo que não ligo
para a carne moída pelo tempo
e os ossos do ofício
que me fazem cão de pouca guarda,
exagero de ganchos,
puro exercício da vontade espúria,
cutelo do medo que me divide
afiado matadouro dos olhos alheios.

Aqui as juntas desmembradas do convívio
a sensação de que frito
na luz azul que mata insetos,
tudo poderia ser ligamento com o mundo
se a mente e a minha carne não fossem de segunda.



(do livro A máquina das mãos, Rio:7Letras, 2009)


imagem retirada da internet: yves lecoq

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Frio de dentro, poema RCF



Não sei se o frio está fora
ou se esfrio o que carrego
sem peso ou medida
mas que tem por hábito
perfurar sem ter agulha.
Carrego o frio úmido e seco.
Úmido quando goteja outro tipo de dor
que não dói no corpo
e seco ao extirpar o que acalenta.
Vou me tomando de agasalho e xarope.
O primeiro esquenta
o corpo que abriga
um frio sem estação;
o segundo, contudo,
não tem prescrição,
nem terapia,
não cura nem alivia
o frio da queda
para o qual não há
agasalho de riso
ou xarope de gozo.

(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



domingo, 23 de setembro de 2018

A máquina das mãos por Adelto Gonçalves

Adelto Gonçalves

I

Ficcionista, ensaísta e poeta, Ronaldo Costa Fernandes (1952) é, sobretudo, lírico, como prova o seu último livro, A máquina das mãos (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2009), o quinto de uma obra poética que está em construção, mas que já se afirma como uma das mais autorizadas vozes líricas da poesia brasileira contemporânea. Esse lirismo está presente também em sua produção ficcional, como sabe quem leu O Viúvo (Brasília: LGE Editora, 2005), um romance que só não obteve maior repercussão porque saiu por uma editora fora do eixo Rio-São Paulo, vítima que é o seu autor, como tantos outros, do desprezo que a grande indústria editorial devota à literatura brasileira sob o discutível argumento de que não vende.
(Essa mesma visão mercantilista não só impede a grande indústria editorial de perceber que a literatura brasileira não vende porque não é publicada como mata no nascedouro muitas vocações. E ainda leva à valorização daquilo que, embora venda, não presta: basta um figurão do show business escrever qualquer patacoada para que o “produto” logo ganhe foro de genialidade e páginas nas revistas e no espaço cultural dos jornais).
Se um poeta é aquele que sabe tocar o exato limite entre a falta e o excesso, a forma e o fundo, a linguagem e o conteúdo, o estilo e a temática, como bem observou o também poeta e crítico Hildeberto Barbosa Filho no posfácio que escreveu para A máquina das mãos, este poeta é Ronaldo Costa Fernandes que, acima de tudo, nunca perde a ternura que, afinal, é o material de combustão de que se faz a verdadeira poesia.

De A máquina das mãos
Quem quiser comprovar o que se escreve aqui que leia com atenção os versos que o poeta dedicou a dois amigos mortos. Um deles é aquele que em que rememora as últimas horas de Samuel Rawet (1929-1984), “sua angústia judia e imigrante”:

(...) Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço
e lá ficou três putrefatos dias.
O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,
o menor gueto do mundo.

Ou, então, o longo poema que dedicou à memória do poeta Fernando Mendes Vianna (1933-2006), que faz lembrar Pablo Neruda (1904-1973) evocando a memória de um amigo em “Alberto Rojas Jiménez viene volando”, poema de Residencia en la tierra (Buenos Aires, Editorial Losada, 1976):

Por que não falas na tua última conferência?
Por que não gesticulas?
Tu, que te movias alvoroçado
como as pás de um motor
– desligado, apenas a promessa de nau;
acionado, o furor dos pensamentos
em redemoinho.
Tu, gigante leve,
andavas mais perto das nuvens,
ao acreditar que a poesia era mitologia.
Que mito parou tua máquina de poetar? (...)



II

Como se vê, há em Costa Fernandes, como em todo bom poeta, a tentativa de reter o tempo e aquilo que se vive (ou viveu). Como se a vida fosse um filme cujas imagens pudessem ser retidas (congeladas) na memória e as pessoas pudessem ser revividas sempre que alguém acionasse uma máquina fantástica, tal como o poeta faz ao evocar no poema “La invención de Morel” a obra-prima do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999):

Para onde irão as coisas acontecidas?
Por certo não devem estar só na memória
– que é gelatinosa e tende à movediça régua,
que, em vez de precisão,
encurta o que é longo –
por certo devem estar paralisadas
– é curvo o metro da razão –
em algum espaço que não acumula o que recolhe
nem apaga quando se desfaz,
nem se destrói ao morrer,
deve haver um cemitério de fatos,
lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não –
perduram e se repetem.

Maranhense criado no Rio de Janeiro e radicado em Brasília, Costa Fernandes não só faz lembrar Neruda, mas também Fernando Pessoa (1888-1935) de “Tabacaria”, como se vê nos versos de “Delito do corpo”:

Por que certos amores
insistem em não envelhecer?
Por que alguns amores permanecem
como a mancha que nenhuma lavanderia apaga?
Não se vergam ao tempo
feitos de flandres humano,
não oxidante,
flébeis e olorosos
igual à matéria de jardinagem
que adubasse flores de carne? (...)



(...) Quem sabe algum dia
a loucura arranque
o que não ousa nascer,
o que sobrevive morto,
e o amor outra vez
se aliste na tropa do meu corpo?
O único crime que cometi foi a vida.

Essa marca de verdadeiro poeta Costa Fernandes já havia deixado em livros de poesia anteriores, como o livro-folheto de estréia Urbe (1975), que costuma renegar, Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004). Como observou Antonio Carlos Secchin no prefácio que escreveu para Eterno passageiro (Brasília, Varanda, 2004), há um lapso de 22 anos entre a estréia e a retomada poética do autor: nesse longo intervalo, ele construiu sólida carreira como romancista, tendo sido contemplado, inclusive, com o prestigioso prêmio Casa de Las Américas, por seu romance O morto solidário, traduzido e publicado em Cuba. Publicou ainda o romance Concerto para flauta e martelo (Rio de Janeiro, Editora Revan, 1997).
Ganhou vários prêmios, como o Guimarães Rosa e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Morou nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas. Publicou ainda o livro de contos Manual de tortura (Brasília: Esquina das Palavras, 2007) e o de ensaios A ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, 2007). Na área de ensaio, publicou também O narrador do romance (Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 1996), prêmio Austregésilo de Athayde da União Brasileira de Escritores (UBE), seção Rio de Janeiro.



III

Como mostra o currículo, Costa Fernandes é ainda fino ensaísta, como se pode ver no texto “Considerações sobre um poeta: Lêdo Ivo”, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, ano XIV, nº 56, jul.-set.2008, em que estuda com profundidade o processo poético e bibliográfico de um dos maiores poetas brasileiros do nosso tempo. Sempre acusado de prolixidade, Lêdo Ivo (1924), no dizer de Costa Fernandes, é um poeta caudaloso, sim, porque tem o que dizer, ou seja, nele o excesso é virtude, exatamente o contrário dos concretistas que sempre foram econômicos porque não teriam muito a expressar.
As escarafunchar e buscar as linhas-mestras da poesia de Lêdo Ivo, como a recorrência da imagem escuridão-noite-lua, Costa Fernandes mostra que está longe de ser um poeta intuitivo, sendo antes um poeta cerebral, que sempre soube se munir de extenso arcabouço teórico e do itinerário poético de outros grandes poetas para mais bem desenvolver o seu ofício de artesão do verso, não fosse doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).
Ao tempo em que dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, diz que constatou pessoalmente o interesse do leitor hispano-americano pela poesia de Lêdo Ivo, o que o levou a promover a publicação de uma coletânea dos seus poemas traduzidos ao castelhano. E o coloca no mesmo nível de Neruda, Nicolás Guillén (1902-1989), Lezama Lima (1910-1976), Octavio Paz (1914-1998), Mario Benedetti (1920-2009) e outros que fizeram uma poesia de tradição universal, mas igualmente de cunho latino-americano. Para ele, talvez seja a conjugação de “cerebralismo” e de uma dicção robusta que leve hispano-americanos a se encantarem com a poesia de Lêdo Ivo.
Costa Fernandes segue no mesmo caminho de Lêdo Ivo: faz uma poesia antenada com a tradição universal, mas profundamente brasileira, não porque busque imagens ou temas exóticos ao olhos do leitor de fora (como aqueles quadros de borboletas que ainda se vendem em aeroportos e vendiam-se em lojas próximas ao porto ao tempo em que os turistas aqui chegavam de navio), mas porque a sua arte poética está contaminada pelo espírito terno e cordial do brasileiro comum que nada tem a ver com a violência de uma sociedade hoje refém de narcotraficantes e políticos corruptos.

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A MÁQUINA DAS MÃOS, de Ronaldo Costa Fernandes. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 102 págs., 2009. E-mail: editora@7letras.com.br Site: www.7letras.com.br