sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O Homem que amava os cachorros, Leonardo Padura


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                                                                 Lourival Serejo

 

 

Houve um tempo, na minha etapa universitária, em que me considerava um trotskista, em pleno  regime ditatorial vigente no Brasil naqueles anos. Por essa época, li a extensa biografia de Trotski, da autoria de Isaac Deutscher, em três volumes, (Civilização Brasileira, 1968): Trotski, o profeta armado; Trotski, o  profeta desarmado; e Trotski, o profeta banido. Depois, li a sua autobiografia (Minha vida. Paz e Terra, 1969). Com todo esse arcabouço teórico, supus que estava pronto para considerar-me um verdadeiro trotskista.
Com o tempo, reparei meu equívoco. Sobrou-me desse período apenas a admiração por Leon Trotski (1879-1940), o maior colaborador de Lenin na Revolução Russa de 1917, comandante do Exército Vermelho, respeitado pela sua capacidade de liderança e doutrinador do novo regime soviético.
Talvez pelos resíduos daquela fase estudantil é que busquei a leitura do livro de Leonardo Padura Fuentes, O homem que amava os cachorros, com suas alentadas 589 páginas (Boitempo, 2013), só agora publicado no Brasil, embora tenha sido lançado, na Espanha, em 2009. Do autor sabia que era cubano e já havia lido um dos seus romances policiais, Máscaras. Além desses, outros livros seus já foram publicados por editoras brasileiras, como  Adeus, Hemingway; Ventos de quaresma; A neblina do passado e Passado perfeito.
O fato de Leonardo Padura rever a trajetória de Trotski (adoto aqui a grafia usada por ele, sem o “y” final), isentando-o das acusações de Stalin e colocando-o no seu verdadeiro lugar na História, não dá ao autor de A revolução traída a condição de personagem com maior destaque no romance. Do outro lado da moeda, encontra-se Ramón Mercader Del Rio (1913-1978), o espanhol que assassinou Trotski, na Cidade do México, em 1940, com uma picareta de alpinista, o qual aparece na narrativa como Jaime López, um misterioso morador de Havana, que costumava levar seus cachorros para passearem na praia. Cada um deles, Trotski e Mercader,  tem sua função importante nos acontecimentos narrados pelo frustrado escritor cubano Ivan Cárdenas Maturell, o narrador nomeado por Leonardo Padura.  
O que é surpreendente, dentre tantas coisas, no livro de Padura, é que, mesmo sabendo o desfecho, corre-se o texto com a ansiedade de quem quer saber o que acontecerá. O autor soube montar uma história tão perfeita, que o real e o fictício se misturam de tal maneira que fica difícil distinguir a linha de separação. Aqui e ali, o autor atreve-se, pela voz do narrador, a fazer algumas críticas ao regime de Fidel Castro e às dificuldades sofridas pelo povo cubano, por conta do embargo econômico.
Para melhor entender o fato e seu desenlace, é recomendável assistir ao filme O assassinato de Trotski (1972), com Richard Burton e Alain Delon.
A preparação minuciosa do assassino e seu desempenho, o suspense que o autor provoca são próprios de quem domina a ficção do romance policial. Nesse caso – acrescente-se   só depois que dominou bem a história, o que requereu do autor uma pesquisa de mais de três anos. Conforme ele mesmo declarou em uma de suas entrevistas, a inspiração para escrever O homem que amava os cachorros foi procurar definir o verdadeiro papel de Trotski – um nome proibido em Cuba – na Revolução Russa e ter descoberto que Ramón Mercader morreu anonimamente em Havana.
Recentemente, Leonardo Padura esteve no Brasil e chegou a ser convidado para almoçar com a presidente Dilma, que já havia lido o seu livro e chegou a recomendá-lo em seu diário eletrônico.
Com esse prestígio todo, ele poderá continuar morando em Cuba e escrevendo à vontade suas críticas sutis ao regime. Aliás, em suas crônicas, no jornal Folha de São Paulo, ele já vem botando as mangas de fora. Sorte dos seus leitores, que terão um escritor cada vez mais autêntico.
Pelo tema ali  tratado, O Homem que amava os cachorros é  considerado um romance histórico. Sabemos que o historiador difere do ficcionista pelo seu compromisso com a verdade. No romance de Padura, o descompromisso da ficção com o verdadeiro é condicionado pela força dos fatos históricos de base, os quais não podem ser alterados pelo escritor, apenas interpretados e preenchidos os vazios pela força criativa. Por essa capacidade reconhecida do escritor, quase não se percebe a tensão entre realidade e imaginação.
Numa só obra, Padura presta inegável contribuição à História, reabilitando a figura de Trotski, vítima da propaganda stalinista que o pintava como um traidor, ao mesmo tempo que produz um romance que terá lugar assegurado na estante da melhor literatura latino-americana.
Publicada no jornal O Estado do Maranhão, em 15.6.2014