sábado, 2 de junho de 2012

"Um homem é muito pouco", início do romance




Nos últimos tempos, sobrevinham sonhos breves que, embora agitados, não conspiravam contra a serenidade do espírito. A janela apresentava boca de ferro, por isso o vento assoviava ao passar por ela. O trinco caíra, estava presa com arame, andava bamba e emperrada. Ali, na Praça 11, havia muitos ventos. Clemente pensou em outros ventos. Os outros ventos não poderiam ser amarrados com arame. Não há arame que segure os ventos da tempestade em alto-mar. Servira à Marinha, mas a Marinha não o servira. Tantos anos no mar e, cada dia, procurava esquecer os tantos anos no mar. Mas a profissão de Clemente não era marinheiro, embora tivesse passado boa parte da vida embarcado.
Ora não seja ingrato com a Marinha, lhe dissera Mateus. Você conheceu quase todos os portos do mundo. Veja só: Anchorage, Bremen, Jacarta – e ia contando nos dedos –, Adelaide, Cotonou e até em Reykjavik você esteve e me diz que não conheceu o mundo?
Só conheci bordéis de porto, com marinheiros violentos e bêbados, prostitutas baratas que falavam um inglês comercial que, no caso delas, era um inglês com palavrões e partes íntimas do corpo humano. Todos os portos são iguais. O mundo só tem um porto, meu amigo.
Clemente desenvolvera sua arte de cozinheiro e se orgulhava não do cutelo que cortava as costeletas, nem da faca que picava com rapidez impressionante, muito menos do tempero e das invenções que tantos anos debaixo do calor ordinário e pouco da cozinha do navio o fazia mais trabalhador das máquinas que mestre-cuca. Do que Clemente se orgulhava era do seu olfato. Por isso desenrolava o arame e abria as abas da janela de vidro que rangiam para sentir o cheiro da manhã. Era sábado e ele media o nível de fedor do Mangue. Havia sempre emanações que ele, mesmo sem abrir a janela, já detectava da cama.
Não fazia muito tempo, Clemente sonhou com tripas que falavam com ele enquanto ele ia retirando as entranhas do porco que os marinheiros trouxeram vivo, às escondidas do capitão que tinha medo de que, junto com alimento, viesse doença exógena. O porco fora anestesiado com éter antes de ser morto para não fazer barulho. Mas todo o cuidado foi em vão. Se o porco não pôde alertar o comandante de que estava ali, na cozinha, feito clandestino, agora as vísceras do porco faziam o barulho necessário para que todo o navio tomasse conhecimento dele. O curioso é que não fazia som de porco, mas gritava feito gente, pedia socorro e, além disso, em voz mais baixa, tentava convencer Clemente a não estripá-lo. Clemente deixou o corpo no armário e o porco apodreceu. Agora, deitado em seu beliche, longe da cozinha, Clemente podia sentir o cheiro de morto do porco. A cidade era fole. De dia, ela se enchia do ar pesado de carros e gente esbaforida. Cada um traz seu mangue dentro de si. Os suores são a maneira de os dejetos do corpo escoarem pelos canais dos poros. De noite, esvaziava. A Praça 11 ficava murcha. As ruas enrugadas. Os postes inúteis. A luz amarela iluminava um cão sarnento, um velho bêbado, uma puta também amarela. As putas vão amarelando mais cedo que as outras mulheres. A profissão das putas é gastar o corpo. O corpo não foi feito para ser gasto e ficar amarelo. Sábado e domingo fazia noite mesmo de dia. Fazia noite porque a Praça 11 ficava vazia. Não tão vazia. Havia sempre um circo. Um ou outro morador da favela atrás da Central passava por ali. O cheiro feriado. À noite, as árvores, que têm pulmões invertidos, pulmões de clorofila e inspiram nosso dejeto de ar, enchiam as ruas de pulmões verdes e plenos de gás carbônico. Clemente gostava de andar à noite. Não tinha medo da rua vazia. Se sentia tão seguro como se sentia seguro durante os anos todos em que esteve no mar, dentro da cozinha sempre um grau a mais que um verão insuportável. Quando viera comprar o apartamento, levado por Mateus, ficou horrorizado de ter de morar no centro da cidade. Não teria sossego. Era lugar para escritórios. O que fazia um edifício residencial ali? Além do mais, quando não era o barulho dos carros, a sirene dos bombeiros como se a cidade vivesse em chamas, a azáfama malcheirosa do povo que ia e vinha, havia sempre obra nas redondezas. Não seja tolo, dissera Mateus. O preço é ótimo. E além do mais, no décimo andar, não se escuta nada. Aqui tem mais silêncio do que uma casinha no beco escondido de uma rua da Penha ou de Olaria.
Um dia tem muitos dias dentro dele. Há dias mortos, vivificados, duros, esturricados, nada acontece, nenhum vento move as horas. Clemente vivera um dia múltiplo e selvagem, sem bridão, um dia cheio de outros dias. Entrou no bar com mesas de sinuca, passou para a sala que servia de restaurante, foi caminhando por um corredor escuro, de paredes cobertas com pano preto e chegou até os banheiros imundos. O corredor mordia, mas eram mordidas sem dente, apenas as gengivas pressionavam o couro escuro e de pano de Clemente. Subiu uma escada que dava para a porta grossa de ferro. Tocou a campainha. Alguém olhou pelo olho mágico.
O que o senhor quer?
Preciso falar com o capitão Vaz.
Quem precisa falar com o capitão Vaz?
Eu.
Não se faça de besta. Eu perguntei quem era o senhor que deseja falar com o capitão Vaz.
Clemente, o cozinheiro.
Cozinheiro?
Diga somente isso: “Clemente, o cozinheiro da Marinha, quer falar com o senhor”.
Uma porta de ferro fala menos que uma porta de madeira. As duas portas são mudas. Mas as portas de ferro parecem mais surdas e mudas que as portas de madeira. Clemente queria ocupar o pensamento. A única forma que encontrou, ou melhor, o único pensamento que lhe vinha eram as considerações sobre as portas de madeira e de ferro. A porta de ferro fez barulho e Clemente pensou que o segurança ia sair outra vez para fora e dizer que lamentava, mas o capitão Vaz não poderia atendê-lo. A voz do segurança era voz de alto-falante, dessas que a gente nunca sabe que tipo de gente está falando. Parece que a voz não tem corpo. Não é gravação, mas voz sem corpo. Clemente pensou que o segurança poderia enfrentar três homens como ele, Clemente, por isso, caso ele negasse a entrada, ele teria que arrumar quatro Clementes para enfrentar o corpo do segurança que tinha voz de alto-falante. Mas quem apareceu foi o próprio capitão Vaz.
Vamos, entra.
Numa tempestade no Golfo do México, ambos estavam na proa do navio quando repentina onda os arremessou longe. O braço de Clemente virou corda. O corpo de Clemente virou bote salva-vida. A onda recuou e deixou apenas o chão molhado. E tudo não passou de lambida feroz e com todos os dentes mortais do mar. Clemente mesmo acreditava, como vários marinheiros, que os homens que o mar leva é como nos sacrifícios antigos em que se matavam crianças e virgens para aplacar a ira de algum deus contrariado. E os deuses andavam sempre contrariados. Os deuses, isso Clemente nunca entendeu, se enfureciam muito mais facilmente que os homens.
Clemente conhecia máscaras e aquelas não eram as máscaras que conhecia. As máscaras que as pessoas vestem desfiguram o rosto, fazem do rosto outro rosto, horrendo, ridículo, diabólico, angelical, máscaras de festa, de rituais ou máscaras de que escondem um crime. Aquelas máscaras que Clemente acreditava que as pessoas ali estavam usando eram máscaras de pele, de pele de outra pessoa. Era difícil para Clemente entender como alguém podia vestir a cara de outra pessoa. Não sabia de que forma era possível uma pessoa usar o rosto de outra, mas tinha a plena convicção de que o rosto que via não era o rosto verdadeiro. Não havia luz central, mas inúmeros focos sobre as mesas e, lá no fundo, o conjunto musical. O negro enchia a bochecha para inflar o pistom. E as bochechas eram duas bexigas de carne que deformavam o rosto e fazia pensar que todo homem podia, se desejasse, moldar o rosto como se o rosto fosse feito de matéria elástica e não de carne. O fagotista ria agudo suas notas de música americana. O baterista, de roupas folgadas que mostravam que fora mais gordo, tinha bamboleando no pescoço a gravata borboleta, pequena hélice de pano na vertical, criando em quem visse o incômodo de presenciar algo fora de lugar. Os homens não gostam dos desvios ou gravatas borboletas verticais que lembram que também se pode viver fora de lugar, cheio de desvios e inversão. Os músicos tocavam música murcha e enfumaçada. Nas mesas, as pessoas pareciam rir dele quando passava. Uma mulher jovem, de roupa apertada e de olhos que queriam lhe dizer algo, mas ele não percebia ou não conhecia linguagem ou código que, nela, parecia ser morse particular, se aproximou. A mulher perguntou a Clemente se ele poderia lhe pagar um Martini. Mas a mulher não queria lhe pedir um Martini, era óbvio. Clemente lamentou ter bom nariz, mas não entender da gramática dos olhares. Um segurança louro, de pele tão clara como albino, de cílios brancos, pegou a mulher pelo braço e arrancou-a dali para um canto escuro, onde a mulher perdeu não apenas os olhos, mas todas as formas humanas. O corpo, escuro, se misturava, sem formas, ao pano negro e à pouca luz que mais sugere ou intriga que a realidade diz que revela.

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