sexta-feira, 8 de março de 2024

O Estado do Maranhão, Lourivel Serejo sobre Vieira


  



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VIEIRA E O  ROMANCE DE RONALDO

                                                                            Lourival Serejo



O escritor Ronaldo Costa Fernandes, nosso confrade na Academia Maranhense de Letras, está vivendo um período de elevada criatividade, com sucessivos lançamentos de livros, nas categorias de ensaios, poesias e romances.

Acabei de ler os dois últimos romances de Ronaldo: O apetite dos mortos e Vieira na ilha do Maranhão.

O primeiro é uma obra de autoficção, em que  realidade e ficção se misturam para formarem uma “quase memória”. Logo ao abri-lo, o leitor é atraído pelo impacto suave da primeira frase: “Quem me ensinou a dar nó na gravata foi meu vizinho”.

O segundo romance, Vieira na Ilha do Maranhão, embora tenha um título que possa confundir o curioso de livrarias, ao supor que se trata de uma obra sobre a vida do grande inaciano, é um livro que ratifica o talento do autor como ficcionista. Uma leitura recomendável para os literatos e historiadores maranhenses.

O ficcionista, em seu exaustivo trabalho de “preencher as páginas em branco da história”, exerceu aquilo que o autor de Geografia do romance – Carlos Fuentes – menciona: “O romancista estendeu os limites do real, criando uma realidade com a imaginação, dando-nos a entender que não haverá mais realidade humana se não a cria, também, a imaginação humana”.

Naquele espaço colonial, instável, encontram-se personagens conhecidas da nossa história, vagando pelos becos, naturalmente, como João Felipe  Bettendorff e o próprio padre Antônio Vieira.

Ronaldo nos oferece um perfil do grande sacerdote, envolvido com os problemas da povoação e com o destino dos seus moradores, amargando o ódio que os proprietários lhe dedicavam pela sua atuação em favor dos povos indígenas, o que culminou com sua expulsão da ilha do Maranhão. A pregação de Vieira para aquela gente temente a Deus é bem descrita pelo autor, que enfoca o transe que prendia os ouvintes durante os seus sermões, considerados pelos fidalgos como “demoníacos”, pregados na igreja de Santo Antônio. Como diz o autor, “os fidalgos bufavam, inquietos no banco incomandante”.

Sobre essas ocasiões, o autor nos transporta, com mestria, para o momento em que Vieira pronuncia o Sermão dos Peixes, em 13 de junho de 1654, no dia da festa de Santo Antônio, diante das pessoas mais importantes do lugar, inclusive o governador. Três dias depois, ele embarcaria para Portugal.

Ao lado de Vieira, a Igreja estava presente com os padres Carcavaz, José Soares, José Antônio e Ambrósio, além do holandês João Felipe Bettendorff. Esses jesuítas viviam isolados no Colégio Nossa Senhora da Luz.

Em certo momento, parei a leitura para controlar o fluxo das personagens. Então, percebi que todas correspondiam ao ambiente em que o narrador, dom João Serafinho, vivia, cheio de colonos,  fidalgos e aventureiros de toda espécie, como António Porqueiro; Caga-Osso; Felipe do Couto; Bento Maciel, o padeiro; a viúva Jacomé; Ritinha; Maria a Afogada etc.

Dentre os personagens do romance, além de Vieira, destaca-se a figura do “médico” e fidalgo dom Rui, filho de dom João Serafinho.

Outro fato a destacar, no cenário criado pela  imaginação de Ronaldo, é a presença do sapateiro José Manoel Gordilho, que fazia profecias em forma de versos, inspirados, segundo ele, “por uma possessão”. Logo Vieira dedicou-se a escutá-lo, tentando buscar alguma semelhança com o português Bandarra, também sapateiro e profeta, o qual muito lhe inspirou na sua teimosia de anunciar a elevação de Portugal como o Quinto Império.

O grande mérito do romance de Ronaldo  foi conseguir transportar o leitor para o âmbito geográfico da ilha de São Luís, então conhecida como ilha do Maranhão,  povoando o espaço vazio daquele período histórico, para registrar  os seus primeiros anos de existência: as famílias, o puteiro de Antonieta a Francesa (sem vírgula), os apelidos, a vida do governador, os comerciantes portugueses, os índios domesticados e os famintos, as doenças, as disputas comerciais e amorosas, o movimento do porto, as intrigas familiares e a presença da Igreja.

Para aquilatar o valor dessa obra, o leitor deverá  ir até à última página e depois transportar-se para aquele ambiente e misturar-se com toda aquela gente. 





(publicado no jornal O Estado do Maranhão, 22.11.2019)

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