Jornal Opção
Curt Meyer-Clason, que morreu em janeiro, foi um dos maiores divulgadores da literatura latino-americana na Europa. Traduziu para o alemão obras seminais como “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez
Edgar Welzel
de Stuttgart, Alemanha
Especial para o Jornal Opção
Curt Meyer-Clason, o grande divulgador da literatura brasileira, latino-americana e portuguesa na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial, morreu em Munique, sul da Alemanha, em janeiro, aos 101 anos.
Meyer-Clason, tradutor, escritor, editor, ensaísta e crítico, deixou uma obra incomparável — cujo volume e conteúdo só aos poucos é conhecida em sua profundidade. Seu nome não constava nas manchetes de primeira página — só nos círculos editoriais, entre autores e leitores. Os estudiosos do ramo terão décadas de trabalho para pesquisar, analisar e interpretar a enorme quantidade de documentos, registros, apontamentos que Curt Meyer-Clason produziu e deixou para a posteridade. Em seu acervo encontram-se, além disso, milhares de cartas de autores que traduziu.
Sua biografia é tão diversificada como os livros que traduziu. Por uma invulgar casualidade do destino, sua vida enveredou por um caminho que jamais planejara.
Curt Meyer-Clason nasceu em 1910 em Ludwigsburgo, cidade próxima à Stuttgart, no sudoeste da Alemanha. Seus ancestrais eram da nobreza; seu pai era oficial no exército prussiano. Frequentou o ginásio em Stuttgart e, em seguida, matriculou-se numa escola de comércio. Era a carreira que pretendera seguir. Partiu para o norte da Alemanha. Em Bremen encontrou trabalho numa firma americana que atuava no ramo de importação de algodão e tinha filial em Le Havre. O jovem empregado aprendera, segundo suas próprias palavras, a “classificar algodão”. Dominava o inglês e o francês e por isso foi incumbido de tratar da correspondência da empresa, trabalho este que tornava necessário seu constante deslocamento entre Bremen e Le Havre.
Em 1936 a firma enviou-o ao Brasil, para trabalhar em São Paulo como “controlador de algodão”. Nesta função conheceu os mais importantes portos do Brasil, também passava longos períodos na Argentina.
Radicou-se em Porto Alegre, onde dirigiu uma empresa fabricante de móveis. Curt Meyer-Clason tornou-se personagem conhecida na sociedade local. Desfrutava os prazeres que seu novo ambiente oferecia. Era jovem e na época, o que era raro em sua idade, já era dono de um automóvel conversível, uma prova de reconhecido status. Mais tarde, em uma de suas entrevistas, Meyer-Clason, em referência àquela época, disse: “Naqueles tempos eu era um dandy. Eu adorava três coisas: moças bonitas, gravatas e tênis”.
Corria o ano de 1942. Enquanto na Europa a Segunda Guerra estava em pleno andamento, no Brasil Getúlio Vargas tratava de manejar-se entre os blocos rivais. Curt Meyer-Clason foi confrontado com os algozes do Estado Novo. Foi preso e condenado a 20 anos de prisão — sob a acusação estar envolvido em espionagens a favor do governo nazista da Alemanha. Até hoje essas acusações nunca foram confirmadas. Curt Meyer-Clason foi parar no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, onde ficou preso por cinco anos. Sobre Ilha Grande, disse ele, mais tarde: “O tempo parou, enquanto que, em outras partes do mundo, milhões de homens da mesma idade se matavam mutuamente”.
Seu companheiro no cárcere, outro cidadão alemão, o barão Gerhard von Klein, poliglota e extremamente culto, conseguiu despertar em Curt Meyer-Clason o interesse pela leitura. “Foi aí que eu aprendi a ler. Líamos tudo: Rilke, Thomas Mann, Friedell; Montaigne, Pascal, Proust, Bernanos, Berdjiajew, Buber, os grandes russos e autores brasileiros. Tornei-me um outro homem.”
A consequência de sua amarga experiência com a repressão do Estado Novo, aliada as suas naturais aptidões, aos seus interesses, as suas paixões e a sua imensa capacidade de trabalho, trouxe-lhe, mais tarde, os méritos que indubitavelmente merece. O caminho por ele percorrido foi acidentado e tortuoso. Os anos de cárcere foram a casualidade do seu destino. Liberto do presídio da Ilha Grande, Curt Meyer-Clason estabeleceu-se no Rio de Janeiro, foi trabalhar no “comércio de compensação alimentícia exportando madeira de pinho contra a importação de uísque escocês”.
Em 1954, depois de 17 anos no Brasil, Meyer-Clason regressa à Alemanha “como um recém-nascido”. Fixa residência em Munique e começa a trabalhar como revisor para várias editoras. Nessa época ele era um dos mais frequentes visitantes do Consulado Geral do Brasil para onde se dirigia quase que diariamente “a fim de matar a saudade que sentia dopaís”. Não demorou e Meyer-Clason foi sendo solicitado para trabalhos de tradução. Foi assim que nasceu a ideia e o seu desejo de transferir a literatura latino-americana e a forma de vida do continente à Europa. Começou a verter obras do espanhol, português, francês e inglês para o alemão.
Curt Meyer-Clason permaneceu em Munique até 1969. Nesse entretempo já havia traduzido Gabriel García Márquez, João Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, César Vallejo, Augusto Roa Bastos, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e outros. Meyer-Clason tornara-se figura respeitada nos círculos editoriais e culturais da Alemanha. Paralelamente ao seu trabalho, Meyer-Clason mantinha estreito contato com quase todos os autores latino-americanos vivos da época.
Em 1969 Meyer-Clason recebeu o convite para assumir a função de diretor do Instituto Goethe, em Lisboa. Permaneceu na capital lusitana até sua aposentadoria em 1976. Portugal ainda vivia sob a influência dos anos da ditadura de Antonio de Oliveira Salazar, que deixara o governo, por questões de saúde, em 1968. Seu sucessor, Marcelo Caetano, seguindo a mes-ma linha política de repressão salazarista, até a Revolução dos Cravos, em 1974, em nada diminuíu o controle dos meios de comunicação. Meyer-Clason resolveu o problema à sua maneira. Transformou o Instituto Goethe, de Lisboa, “numa porta aberta para a Europa”. A sede do instituto servia de ponto de encontro para escritores, representantes da intelectualidade portuguesa e dissidentes de todas as correntes políticas. Por outro lado, Meyer-Clason convidava autores e intelectuais alemães para encontros com autores portugueses. Os alemães Werner Herzog, Peter Weiss, Walter Jens, Martin Walser, Günther Grass, Heinrich Böll, Hans-Magnus Enzensberger e o austríaco Thomas Bernhard são apenas alguns dos proeminentes da cultura alemã que passaram por Lisboa naquela época. Com uma companhia teatral de Lisboa, Meyer-Clason organizou apresentações do dramaturgo alemão Bertholt Brecht na capital lusitana. Paralelamente Meyer-Clason ajudou autores portugueses, como Miguel Torga, José Saramago, António Lobo Antunes, a encontrar editoras para lançar suas obras na Alemanha.
O Instituto Goethe, de Lisboa, foi transformado em laboratório cultural “Eu vivia a meio passo da ilegalidade”, diria mais tarde. Em sua obra “Diários Portugueses”, ele relata em detalhes os problemas enfrentados em Portugal durante o período repressivo. Curt Meyer-Clason tornou-se figura cultural respeitável em Portugal. Quando circulou a notícia de que deixaria a direção do Instituto Goethe, em Lisboa, foi iniciada uma campanha na mídia portuguesa, liderada por António Lobo Antunes, com o objetivo de convencê-lo a permanecer.
Entre os autores portugueses que verteu para o alemão estão Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Miguel Torga, Fernando Namora, Carlos de Oliveira Almeida Faria, Urbano Tavares Rodrigues, Jorge de Sena, Eugenio de Andrade e Sofia de Mello Breyner-Andresen. Também editou coletâneas de contos, poesias, ficção e ensaio.
Em 1976 Curt Meyer-Clason mais uma vez regressa a Munique, onde se dedica inteiramente aos seus trabalhos de tradução e à redação de textos e ensaios. Como autor deixou 15 títulos, entre os quais “Equador”, um romance biográfico no qual narra sua juventude sem orientação e identidade pessoal como resultado do período histórico que passava a Alemanha no fim do século 19 e princípio do século 20.
Sua obra principal, no entanto, encontra-se em seu amplo trabalho de tradutor. É impossível mencionar neste texto todos os títulos das obras por ele traduzidas, pois a lista completa ultrapassa mais de 150 títulos. Para ilustrar seguem, além dos autores portugueses já mencionados (cuja lista não está completa), outros nomes de autores brasileiros e latino-americanos traduzidos por Curt Meyer-Clason: Adonias Filho, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Ignácio de Loyola Brandão, José Cândido de Carvalho, Rubén Darío, Autran Dourado, Almeida Faria, Gabriel García Márquez, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão, Pablo Neruda, Darcy Ribeiro, João Ubaldo Ribeiro, Augusto Roas Bastos, João Guimarães Rosa, Fernando Sabino, José Sarney, César Vallejo, Octávio Paz , Antonio Di Benedetto e muitos outros.
Impressionante também é a lista de autores de outras nacionalidades que foram traduzidos por Curt Meyer-Clason. Eis alguns exemplos: Louis Baudin, Brendan Behan, Isaiah Berlin, Erich Blau, Alphonse Boudard, Geoffrey H.S. Bushnell, Alfred Chester, Antonio Di Benedetto, Jean Descola, José Gorostiza, Bernard Gorsky, Ronald Hardy, Alan Harrington, Sean Hignett, Martin Buber, Alberto Moravia, Luc Stang, Mempo Giardinelli, Vladímir Nabókov, Henry Roth, Elie Wiesel.
A relação de autores aqui citados não é completa. Curt Meyer-Clason não traduziu apenas um título de cada autor, em alguns casos traduziu suas obras completas ou parte destas.
Conheci Curt Meyer-Clason em 1992, por oportunidade de um seminário organizado pela Universidade de Stuttgart. O renomado tradutor fora convidado para proferir uma série de palestras sobre literatura latino-americana. Na época Meyer-Clason estava com 82 anos, uma idade em que muita gente nem mais sai de casa. Sua aparência física chamava atenção. Alto como um soldado prussiano, de camisa e cachecol vermelho, subia ereto ao palco, não demonstrando a idade. Homem de personalidade carismática, cativava a audiência com suas primeiras frases e prendia-lhes a atenção até o término das palestras que, em regra, duravam duas horas. Vinha com seus textos preparados, mas nem sempre os usava ou usava-os só por alguns minutos. Não raras vezes punha-os de lado e continuava a falar conforme lhe vinham as ideias. Formava suas frases de forma precisa, palavras exatas, com uma lucidez de espírito que transbordava seu profundo conhecimento literário. “O homem é uma biblioteca ambulante”, disse um cidadão ao meu lado.
No fim de cada palestra, foram seis no decorrer de uma semana, Curt Meyer-Clason permanecia à disposição para eventuais perguntas. Numa palestra, já era tarde, o ponteiro do relógio ultrapassava as 23h, e ao responder uma das perguntas, Meyer-Clason fez referência a sua tradução de “Grande Sertão: Veredas” e aos seus contatos com João Guimarães Rosa. Aproveitei para formular uma pergunta: “Sr. Meyer-Clason, eu gostaria de saber se o senhor teve muitos problemas para traduzir o ‘Grande Sertão’”. O conferencista olha-me de forma inquisitória, em seguida, num relance, deixa seus olhos vagar pela sala enorme e observa: “Escuta, esta sala é demasiadamente grande para este pequeno grupo. Conheço um barzinho, pertinho, a uma quadra e meia daqui. Que lhes parece, vamos todos para lá, e aí eu respondo a sua pergunta”.
Fomos. Seis pessoas, com ele sete. Mal o garçom trouxe os drinques, Meyer-Clason, sentado a minha frente, volta à minha pergunta: “Você quer saber se eu tive problemas com a tradução de o ‘Grande Sertão’?” E logo enveredou na resposta. Em tom professoral, Meyer-Clason, começa seu monólogo, que nos prende: “É lógico que não foi trabalho fácil. Mas graças à amizade que, há longos anos, eu já vinha mantendo com João Guimarães Rosa, foi-me possível resolver as partes mais difíceis com o auxílio do próprio autor. Durante aquele período, João e eu trocamos mais de 500 cartas. Eu punha as questões, formulava as perguntas e ele respondia. Além disso, Guimarães Rosa veio a Munique várias vezes a fim de discutirmos os termos e as passagens mais complicadas. Permanecia, às vezes, de três a quatro semanas. Regressava ao Brasil para retornar algumas semans mais tarde. Às vezes discutíamos dias a fim de encontrar a terminologia certa ou adequada de um só vocábulo que, muitas vezes, nem se encontrava no dicionário. O que muito contribuiu neste trabalho foi o fato de João Guimarães Rosa ter sido poliglota. Falava fluentemente vários idiomas, entre os quais também o alemão que aprendera durante o período de 1938 a 1942, no qual fora cônsul-geral do Brasil, em Hamburgo. Aliás, o mesmo método de trabalho João Guimarães Rosa manteve posteriormente com o seu tradutor italiano e americano. Traduzir o “Grande Sertão” é mais ou menos como traduzir o “Ulisses”, de James Joyce”, disse Meyer-Clason enquanto bebericava seu drinque. Despedimo-nos quando o ponteiro já se aproximava das quatro horas da manhã e o mestre-tradutor, o erudito em literatura brasileira, não demonstrava nenhum vestígio de cansaço.
Os temas das noites seguintes não foram menos cativantes: Introdução à Literatura Latino-Americana e Jorge Luis Borges; Brasilidade, As Mais Importantes Correntes da Literatura Brasileira, nos exemplos de Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa; Pablo Neruda e a voz do Chile; O mundo de Gabriel García Márquez; Poder e Política na Literatura Latino-Americana. Todas as noites, ao fim da palestra, encontrávamo-nos no mesmo barzinho “a uma quadra e meia daqui”. Na última noite, um dos participantes do pequeno grupo, um estudante de literatura da Universidade de Heidelberg comenta: “Esta semana valeu para dois anos de estudos universitários. Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo”.
Após estes encontros continuei a manter contato durante algum tempo com o invulgar mestre. Guardo, desta época, alguma cartas que trocamos.
Curt Meyer-Clason foi integrante da Associação dos Escritores Alemães; do Pen Clube da Alemanha; e membro-correspondente da Academia Brasileira de Letras. Em 1972 recebeu o Prêmio de Tradutor, da Academia Alemã para Língua e Poesia, e em 1996 foi agraciado com a Grã-Cruz de Mérito da República Federal da Alemanha.
Graças ao trabalho deste grande divulgador as literaturas brasileira, latino-americana e portuguesa tornaram-se conhecidas na Europa. Meyer-Clason foi, como ele mesmo dizia, “um construtor de pontes entre vários países”. No século 20, nenhum outro estudioso divulgou tanto e tão bem a literatura brasileira na Europa. Foi um dos maiores defensores do Brasil, apesar dos anos que passou nas pestilentas celas da prisão da Ilha Grande. Seus profundos conhecimentos sobre a literatura brasileira não têm comparação. Trabalhou em silêncio até os seus últimos dias e em silêncio se despediu, no mês de janeiro, para a sua última viagem. A literatura brasileira e o Brasil muito lhe devem. Rendamos-lhe o profundo respeito e a homenagem perene que merece.
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