sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Anoitecer nas grandes cidades, RCF




Às seis horas da tarde,
as cidades percevejam.

Todos se tornam
um impasse absurdo
como um barco
dentro de uma garrafa

Gordas
lombrigas
escurecem
no alerta dos sinais
que flanam
no pisca pisca taciturno.

Às seis horas da tarde,
os homens fedem seu calor de trabalho
como uma usina expele fumaça
e vapor.

As seis horas da tarde
não é a hora da ave-maria.
É a hora do limbo
do esconso
da perversão
da licenciosidade dos descontos.

A grande muralha da China dos ônibus.

Filas centopéicas no limiar do tédio.
O atrito
– ferro contra ferro –
dos trilhos
é o crocitar do corvo
que existe nos trens e metrôs.

Deus criou o dia e a noite
e as seis horas da tarde.

Não há cidade
sem suas seis horas da tarde
inventadas
para inventar as cidades.



(do livro Andarilho, 7Letras, Rio, 2000)
 
 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Sem destino, poema RCF


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Ando com o sol no bolso,
a cara da moeda me sorri bem real,
a beleza faz da tarde seu salão,
as ruas são veias abertas,
mas a fila dos dias não anda.
Então aposto na roleta russa,
jogo pôquer com as cartas que escrevi,
e só tenho a batida do relógio do coração.
Que mais arriscar,
cartão de visitas ou de crédito?
Só eu me visito
e estou em débito comigo.
Amanhã nascerei prematuro,
como a surpresa
que nasce antes da hora.
O que me centra é a dispersão,
preciso emagrecer a dieta da imaginação,
para depois fretar a vida
e sair por aí
blefando meu corpo.



(Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)




terça-feira, 29 de setembro de 2020

Meu verbo é um chicote, poema RCF

Tocata







Meu verbo é um chicote
no sadomasoquismo do poema
com sua focinheira de couro de submissão à ideia
– a ideia que por sua vez é uma dor –
e as botas rítmicas das rimas nunca rimadas.

Vivo nesta cidade criada pela circunstância do sol
clave maior
eu inventado pelo horizonte vertical de luz
na verbosidade dos verões sempiternos
cujas manhãs mantêm rígidos preceitos.

Mas, embora com tanta luz,
vago cabra-cega,
no cangaceirismo de sombras traiçoeiras,
a tatear no pique esconde
corpos de formas vadias,
a vida rasteira de capoeiras.

Ao acordar, deparo-me
com a cama desfeita
de natimortos: é o útero
do poema, parindo versos
que se dissolvem
no borralho do sonho.

Dou comigo como quem cruza com um desconhecido
ao estranhar o verso em que me desencontro
e saber que sou eu em forma de letra
que mais me desconhece porque me confronto.



(do livro Andarilho, 2000, Ed. 7Letras)


imagem retirada da internet: jeune.mort.deviant.com

domingo, 27 de setembro de 2020

Desclassificado poético, poema RCF




Vende-se, troca-se, empresta-se
alma vazia, uso desmedido,
não necessita de muita manutenção,
um pouco de poesia,
dois dedos de beleza,
um pouco de amor, pelo amor de Deus.
Capaz ainda de espasmos,
lúcida, embora dolorida,
aparência de nova,
perspicaz e dolorosa,
pode ser usada em leitura,
sentimentos nobres permitidos,
outros ignóbeis também presentes.
Quem tiver interesse,
telefonar ou procurar
na portaria do corpo
bater à porta
do corpo que a transporta.
Exige-se sigilo.
E uma profunda humanidade.


(do livro Memória dos Porcos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012)


(imagem retirada da internet: alma gêmea)

Sadô, miniconto de Ronaldo Costa Fernandes


SADISMO - Definição e sinônimos de sadismo no dicionário português

308 Norte. Cara de santa martirizada.
Bate, ela suplica.
Algemas no espaldar da cama. O chicote é um dedo acusativo cortando carne. Ele não bateu. Ela chorou o gozo contrariado. Aquilo, sim, era sadismo. Casamento é coisa muito séria para colocar amor no meio.

(do livro Manual de Tortura, Ed. Esquina da Palavra, 2007)