quarta-feira, 24 de julho de 2024

Mar morto, poema

 


 


 

 

 

 

Trago vivo o meu mar morto.

Já o mar vermelho

me faz flutuar no sal

das minhas dores.

Meu mar morto

me assombra,

está pleno de passado

que é uma película

que repete os erros.

Meu mar vermelho

é um pouco de mim em fuga

nas veias da esperança

que sempre promete uma terra nova.

Meu mar vermelho

me faz viver em travessia

que não é outra coisa

que a vida que levamos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 23 de julho de 2024

Um homem é muito pouco 9









Resultado de imagem para can dagarslani
Outro amigo de Juliana ele identificava como Ian, o que fuma cachimbo. O cheiro de cachimbo irritava os pulmões de Horácio e ele pedira para Juliana dizer, muito gentilmente, para que o diabo do Ian não fumasse cachimbo na frente dele, Horácio. E toda vez que Ian puxava o cachimbo, Horácio se retirava da sala. Mas Horácio não queria destratar o fumador de cachimbo, Ian possuía dois ou três cavalos de Horácio. E, de vez em quando, levava algum amigo ou conhecido para visitar o ateliê de Horácio. E quando Ian levava um amigo para visitar o ateliê aí então Horário suportava a fumaça cinza do cachimbo de Ian.

Outra aproximação mnemônica era a de Lúcia Vera, que morara na África de língua portuguesa, viajava muito, trabalhava como tradutora e o jeito que Horácio encontrou de associá-la com algo foi com as cabeças empalhadas que os caçadores de bichos grandes trazem na parede como troféu. Era mulher pequena e magra, que falava português com sotaque não identificado, embora fosse pernambucana. Vera Lúcia aparecia uma vez por ano, trazia presentes para Juliana e conversavam horas a fio lembrando amigos comuns quando trabalhavam na Unesco como tradutoras. Horácio não gostava de Vera Lúcia e um dia teve um sonho em que, em vez de esculpir cavalos, ele esculpia a cabeça do animal Vera Lúcia. Vinham os compradores e ele vendia as cabeças de Vera Lúcia que acabavam na casa dos colecionadores milionários, geralmente numa sala dedicada a animais empalhados e cabeças de veado, tigres, rinoceronte e Vera Lúcia.

Horácio alimentava ciúme de homem e ciúme de mulher. Se Alexandre, o que jogava pôquer, ele achava que era um amigo de Juliana que dava em cima dela, com Vera Lúcia, a africana de cabeça empalhada, ele sentia que a mulher, quem sabe, não teria tido um caso com ela. O certo é que nutria ciúme de Vera Lúcia, inclusive porque Vera Lúcia podia ser empalhada, mas sabia fazer muito carinho na sua mulher e até mesmo massagem e beijá-la de modo lúbrico, com os olhos duros e empalhados, porém com brilho diferente e aquoso que não tinham os animais empalhados.

Havia também Amélia. Horácio gostava de Amélia, que era mulher bonita e modelo e que dava alegria à casa. Falava alto e contava casos picantes da alta sociedade que frequentava na baixa condição de modelo e amante de magnatas. Desbocada e nervosa, sem conseguir parar num lugar, Horário associou-a com a música do Mário Lago. Com tanta exuberância e transbordando de energia, Horácio foi identificar Amélia justamente com seu oposto: a que era mulher de verdade.

Quanto a Ambrósio relacionava com sonho que o paulista lhe contou: gostava tanto de cães que certas manhãs acordava e não sabia se estava na própria cama ou em algum canil. Quando estava no pesadelo, ele se encontrava no canil público, na fila de espera para ser sacrificado, da mesma maneira que havia nos EUA o corredor da morte para os condenados a cadeira elétrica.

Tão logo Horácio terminava de descrever o elenco de associações e de amizades da mulher que ele usava para guardar na cabeça, entrou na sala um sujeito baixo, de voz de barítono, que andava de um lado para o outro examinando as peças de Horácio, sem olhar Clemente quando foi apresentado a ele.

Vestia-se com apuro. Apuro europeu e com o irritante lenço de seda preso ao pescoço, a substituir a gravata. O paletó azul-marinho estava impecavelmente bem cortado e o sujeito era pernóstico e, por ser baixo, como é comum acontecer com os homens baixos, mantinha a coluna ereta a fim de crescer míseros centímetros que não lhe alteravam a altura. Mas o baixo cresce psicologicamente e, se a postura lhe dava altura superior, que fizesse uso do expediente de empertigar-se.

O desconcertante é que a voz grave e cava saía daquela esfera. O homem, além de pequeno, era gordo, o que lhe dava um contraste exótico como se a voz já estivesse gravada dentro dele, e logo não lhe pertencia. Ou como se algo estivesse avariado como caixa de música que, abrindo-se, não tocasse o que se esperava, melodiazinha enjoada e repetitiva. Geralmente clássico erudito diluído e remanchão.

O nome do homenzinho era Bob, pelo menos assim o chamava Horácio. Devia se chamar Roberto, ou melhor, Robert, porque havia sotaque nele e o rosto rosado e sanguíneo traía origem acima da linha do Equador.

Por onde passava, ou ainda, por cada cavalo que passava ia dando os preços, Por este aqui pago quarenta, Bem aqui podemos dar uns vinte, Este quem sabe poderia até pagar bem mais regiamente, quem sabe noventa ou duzentos.

Tanto Clemente quanto Horário haviam parado de se balançar nos cavalos e olhavam assustados para o pequeno reizinho que ia distribuindo preços e fantasticamente comprando os cavalos de Horácio como se estivesse num frenético leilão. E não se discute, disse por fim, colocando a mão na barriga qual Napoleão de opereta.

Clemente estava desnorteado, como se já não bastasse estar ali naquela estrebaria fantasmagórica de cavalos de madeira, a extravagância mnemônica de Horácio e agora a presença daquele homem elegante, mas rude, que parecia não dar importância a Clemente.

Não dava importância nem mesmo a Horácio, embora quisesse adquirir todas as obras que ali estavam num afã milionário que estonteava qualquer um.

Bob, Bob, tentou Horácio interromper o comprador.

Não se discute, você sabe, disse ele, que comigo preço não se discute. Hoje você tem uma cotação, amanhã os preços explodirão, estive conversando com um amigo meu parisiense que me disse que agora entraremos numa fase da arte moderna onde não existirá mais cavalete e tudo virá de Duchamp, as obras são conceituais, body art e o que mais houver, estamos vivendo uma revolução tão séria no campo das artes plásticas como foi a vanguarda do fim do século passado com o impressionismo e com o surrealismo do princípio do século, uma nova era, senhor Horácio, e o senhor será quem sabe o Picasso brasileiro ou o Duchamp carioca dessa nova era da arte moderna no Brasil e no mundo.

O homenzinho, o Bob, o Robert, falava alto, agigantara-se, discursava, punha-se na ponta dos pés, vibrava o dedo acusatório e definitivo para um ser ali inexistente. Estava tão apoplético que Horário temeu que o homem tivesse um ataque.

Bob virou-se para Clemente e continuou ameaçando, Então o senhor vem aqui e quer pechinchar preço, desconfia da qualidade desse artista genial, desse homem que é modesto por natureza, mas que traz dentro dele uma genialidade infernal, ora, meu amigo, vamos e venhamos, o senhor está no ateliê de um grande artista, saiba disso, e essa visita o senhor nunca mais esquecerá , eu lhe juro, nunca mais esquecerá.

Bob, repetiu Horácio, escute-me, homem.

Pela primeira vez, quem sabe para tomar ar ou porque exagerara, Robert sentou-se, ofegante, pediu um copo d’água.

Você não precisava continuar nessa encenação toda, homem de Deus. O Clemente aqui não é comprador, é amigo da Juliana. Você precisa ser mais previdente e menos maluco. Assim nossa sociedade não dará certo.

Foi aí que Clemente percebeu o que ocorrera. O pobre do Bob ou Robert encenava ser comprador de obra de arte que irrompia no ateliê de Horácio a fim de influenciar na venda das peças que um desavisado visitante pudesse ainda estar em dúvida. Nem sempre dava resultado. Nem sempre a performance de Bob era tão enfática como foi aquela. Uma pena Robert ter gastado tanto conhecimento de artes plásticas para apenas uma visita familiar. Era preciso tomar mais cuidado e saber quem realmente estava no ateliê e não entrar porta adentro, enlouquecido.



(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


segunda-feira, 22 de julho de 2024

A solidão do viúvo, Vera Lúcia Oliveira

 







                                                               

            Dizem que o verdadeiro luto se carrega no coração. Mas o viúvo de que vamos falar carregava-o nas costas, como se carregasse as dores do mundo, ou um enorme peixe. Ou a pedra de Sísifo. Esse viúvo, sem nome, pois não o diz, é um intelectual refinado, professor universitário, solitário e angustiado. Esquisitão. É a personagem que dá título ao romance O viúvo, (Brasília: Ed. LGE, 2005), de Ronaldo Costa Fernandes.

            Ronaldo trabalhou a personagem com esmero. Fez o leitor vê-la, como num raio X, por dentro de seus complexos e conturbados pensamentos de um ser pensante e estoico, que leva o fardo da vida sem esperança nem indignação. Existencialista, beirando a indiferença, tenta retomar a vida após longo período de luto, em que cumpriu tristeza, e a rotina de trabalho como professor universitário, literato, no sentido forte da palavra, que foi despertado um dia pelo desejo de uma mulher que o abordou no estacionamento, à noite, em lugar mal iluminado e perigoso, como que o resgatando de sua noite escura. Seguiu a moça-aluna de blusa de seda. E retomou o gosto pelo amor, pelo corpo, já meio cansado de desejar. E deu-se nova chance, na mesma casa velha, com cheiros de passado, e a mesma velha empregada D. Benedita, quase um estorvo. E as duas mulheres, a morta e a viva disputavam a casa de maneira desigual, pois a morta, Lídia, falava através das cadeiras e de tudo o que havia tocado, deixando Fernanda, a viva, sem ter como revidar, pois “os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer”, como vimos em Mário de Andrade.

            E o viúvo sonhava muito. Os sonhos, na verdade pesadelos, não o abandonavam. São imagens tremendas que revelam uma tendência à dissociação psíquica de dissolução do eu:

“Não sou mais eu, sou vários e não sou ninguém (...). Tenho também várias cabeças, a que pensa, a que mandam pensar o que a máquina pensa, o que pensa os outros, o que pensa o que pensa que pensa independente do que pensam as pessoas que pensam pelos que não pensam.” (Pág. 22)

Ou ainda: “Lídia me fazia sentir boneco de pano, minhas vísceras eram de pano, serragem, se me abrissem, pulariam para fora restos de panos, aniagem e pó”. (Pág. 33) Algo próximo da clivagem, responsável pela entrada do sujeito na psicose, segundo a psicanálise. As imagens que o perturbam vão de coisas tornadas mínimas, liliputianas, como ele diz, até as agigantadas, elefantizadas. Nesses sonhos, o viúvo vê-se tragado pela casa que está prestes a ruir. Tudo muito simbólico e revelador de seu estado emocional e psíquico. A casa aqui não é só uma casa, é todo o universo em torno do qual ele gira; é o imaginário que o invade: “Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair para fora.” (Pág. 15), ou a casa é que é invadida por suas ruminações, e treme, e deixa as “paredes insones” e até dá voz à pia da cozinha, que ele detesta. Tudo está em carne viva, como nos quadros de Soutine. A casa é a caixa de ressonância, é o espaço mais que físico, é a extensão de seu corpo, e também o contrário: o seu corpo era um mero apêndice que poderia ser expulso a qualquer hora “como um organismo vivo expulsa o que lhe é estranho”. (Pág. 27) Yin-Yang.

            Mas o que o distingue é a consciência da própria loucura. Não a dos doidos de pedra, mas os da pequena loucura, da dose diária de sandice de todos nós. Diz ele:

“se as pessoas são como eu, elas terão sua dose de loucura escondida, fechada, como se leva dinheiro avulso e não se quer perder e então aperta o velcro ou fecha o zíper do calção. A pequena loucura, mesmo que seja pequena, não se expõe socialmente, vive aprisionada, principalmente em forma de desejo ou pensamento proibido que surge repentino sem que se puxe por ele. Um desejo molesta a gente, chega em hora imprópria.” (Pág. 19).

            O sentimento desse viúvo, que se repudia por ter traído Lídia já no leito de morte, bem como o sujeito decente que ele pensa ser, tem a sua origem no conflito entre o desejo e a Lei; entre o “eu quero” x “eu não posso”, fonte de toda neurose, ensina Freud. E não podemos esquecer que ele não teve infância, e que assistiu ao enterro do pai. Infância recalcada pelo adulto: “Minha infância não tem rosto.” (Pág. 44) E, por ser recalcada, volta a incomodar, insistindo em se presentificar “de forma fantasmagórica, seja em sonho ou em imagens díspares e bizarras, cujo significado desconheço e temo” (Pág. 44), diz ele. Do menino triste fez-se o homem solitário, naquela solidão noturna dos viúvos, como diz a canção de Alceu Valença.

            Se quiséssemos dar uma imagem para o mundo desse homem sofrido seria algo como a “Guernica” de Picasso que, à parte a historicidade, revela um mundo fragmentado em que pés tortos, mãos trêmulas, pernas independentes, cabeças, braços, numa dança macabra habitam a sua mente. Até as mãos, que um dia precisou enfaixar, gesticulam e pensam por si mesmas. Um mundo de partes desconexas, antimetonímicas, que não falam pelo todo. Um homem aos pedaços tentando se integrar. Trabalha sem alegria na universidade, embora sua paixão verdadeira sejam os livros, a literatura, esta que atraiu Fernanda, a mulher dos números, mas também unidos doravante pela palavra. (Palavra que ele perdeu quando entrou em coma, destituindo-o do lugar da fala, de ser falante.) Palavra que também o humilha por fazê-lo escravo dos outros, do pensamento alheio. Sente-se incapaz de ter pensamento próprio, e isso também o mata, Angustia-se, sente-se uma fraude. Temos aqui o que Winnicott chamou de “falso self”: o sujeito que desenvolve uma segunda personalidade para ocultar a primeira, ocultar justamente para protegê-la da fragmentação do eu – nosso tudo. Vejamos o que diz o viúvo:

“Algo em mim diz que faço tramoia, que engano os alunos, que me faço passar por professor quando nunca fui professor. Não me reconheço em sala de aula, não me reconheço naqueles corredores.” (Pá. 83)

E, como um camaleão, funde-se com o ambiente. Trata-se da dependência e servidão a que o ser humano está condenado, diz Lacan. Sente-se aprisionado pela universidade onde até as janelas conspiram contra ele, pondo também o pé na paranoia. É um corpo estranho para si próprio. Corpo que tem papel crucial no romance, como peça-chave do estranhamento que perpassa o texto.

            Assim como tem presença na casa mesmo depois de morta e tem presença-ausência no corpo das mulheres que ele conhece, Lídia tem presença na narrativa, não linear, lembrando ao leitor que ela está viva na lembrança (ambivalente) do marido, este, sim, já meio morto. São dois tempos que se justapõem, que se alternam em ondas no fluxo da consciência, numa narração precisa, em que uma onda arrasta outra atrás de si, dando impulso, fôlego a esse romance intimista, sofisticado, diga-se, extraordinário.

            Mas não poderíamos encerrar sem voltarmos a D. Benedita, a empregada da casa, sim, da casa, e não mais do viúvo, pois a sua função nesse espaço cresce na estória enquanto a dele diminui em importância. O prato da balança pesou mais para o lado dela. Por quê? Porque, assim como as plantas endoidecidas tomaram conta do jardim após o desaparecimento do jardineiro, D. Benedita, surda como uma porta, toma conta da casa da patroa sem ouvir o patrão. Percebe, de alguma maneira, o definhamento do professor que, tomado, talvez, pela pulsão de morte (Freud), vai cedendo lugar de mando a ela. Como as ervas daninhas do jardim, e numa perfeita simbiose com a casa, seu espaço de existência, ela embruteceu, criou raízes e espinhos. E o viúvo, que se fingia de vivo enquanto fazia palestras na universidade, agora pode fingir-se de morto na casa, que é seu “bicho hospedeiro”, e ele, “o verme que dele se alimenta”. (Pág. 150)

            E, dessa forma, regredido, buscando a condição de verme, ou quem sabe ainda a anterior a esta, a inorgânica, cumprindo o ideal da pulsão de morte, encontre ele a paz verdadeira, o Nirvana.





 

A mercadoria dos afetos, poema

 


 

 






 

 

 

Nem sempre me sinto

atacado por dúvidas.

Temo o varejo do engano.

Em algum momento

meu armazém de incertezas

pode adulterar a mercadoria dos afetos.

Tudo o que é miúdo

é apenas uma metonímia.

Por isso busco fugir

das minhas desavenças

que ao fim e ao cabo

são apenas o comércio da existência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 21 de julho de 2024

A especiaria dos despojos, poema RCF







 





Tenho o temperamento das especiarias. 
Cravo os dentes na manhã.
Outras vezes, voz moscada 
a noite
como um louco amanhece nublado.

A droga dos sentidos,
a farmacologia do bem e do mal.
Nada em mim é sobrante.
A pele como um casco de navio
que separa dois mundos.



(do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)


O verde é meu vizinho

 


 

 


 

 

 

De minha janela,

o verde me vê.

Sinto-me constrangido,

porque sou maduro.

Pensa de mim

que sou das espécies sem seiva

e meus galhos são inflexíveis

como um ponto de exclamação.

 

Não distingue bem

o que é uma máquina

e meu corpo:

acredita que sou

mais um aparelho doméstico.

 

Tenho o aspirador a ambições,

o ar-condicionado pelas emoções,

o tapete para onde varro

o lixo da memória

e que falo sozinho

como um rádio.

 

Olha-me sempre sentado

e acredita que

sou como os Budas

que são estátuas

do que Freud chamou

de a felicidade do quietismo.

 

Que junto letrinhas a ver

se florescem ou murcham.

Não com a seca ou a chuva,

mas a ingênita lavoura da diáspora

que abre o mar morto dos sonhos

na canaã da folha em branco.

 

O verde que me vê num quadro

se espanta

com a figura imóvel entre móveis que não se movem,

e estranha

uma árvore marrom 

ter seu ninho na cabeça 

e o respirar dos bichos.