sábado, 1 de junho de 2019

Meu pai habita meu corpo, poema RCF





Meu pai vive em mim.
Não sei onde se localiza,
no meu corpo, meu pai morto.
Há anos que trago meu pai
como um apêndice.
Ao meio-dia meu pai está a pino.
De madrugada,
no quarto crescente,
ando de lua,
minguando meu coração.
Depois cresci e meu pai
virou um latido rouco numa garagem vazia.
Pai, estanca o trem do tempo,
há chuva na estação do meu olho,
o cão de madeira do banco
me faz companhia fiel.
Meu pai vive em minhas mãos,
por isso colho ausência.
Meu pai usa meus ouvidos,
abusa dos meus olhos,
repete a mesma frase
na máquina da memória
que, enguiçada,
distorce imagem, som e o filho.




(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

terça-feira, 28 de maio de 2019

Os aniversários queimados na vela do tempo, poema RCF



Resultado de imagem para vivian maier
Minha infância foi morar no calendário.
E me lembrei dos aniversários em família.
Os zepelins dos balões,
as velas do bolo
navegam na falsa calmaria.

O bruxuleio familiar escondia diferenças.
Todos se cumprimentavam
como bonecos de impulsão
– prestes a pular da caixa
onde estavam aprisionados.

Havia o risco de os parentes de papel
se amarrotarem no calor das discórdias
que nenhum refrigerante diminui.
Por fim as saudações de plástico
e o bolo cortado da distância.
Não escrevo para preencher o vazio,
mas para esvaziar-me.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

domingo, 26 de maio de 2019

Edificação da memória, poema RCF








Edificação da memória
o rés do chão do presente,
terra de chão batido,
solo gretado dos dias sem varanda,

                      o fero campo que de batalha
                      tem a foice e a enxada
                      o canto agrário do corte
                      no ritmado amansar da cana
                      no navegar nos campos vegetais
                      do trigo, do algodão e dos girassóis.




(Terratreme, 2000)