sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Cera da manhã, poema RCF







Eis que a mãe
surge pela manhã.
Traz o tempo nas veias.
Sentada e imóvel,
ela é a melhor fotografia
tridimensional de si própria.
Tem medo de que
quem esteja ali sentada
seja inflamável
por ser uma cópia de cera.

A mãe o chama
e se incandesce.
É conversa que se consome
e bruxuleia,
ora pavio lúcido,
ora a cera do esquecimento.
Tem medo de que ela se esqueça
dele e, assim, ceráceo e ardente,
enrijecerá a infância,
serão últimos os primeiros passos
e morrerá vivo na memória
da mãe que o perdeu
dentro de seu labirinto
feito de museu e cera.



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Passagem do ano, poema de Carlos Drummond de Andrade




O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejaria viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.



(in: A rosa do povo)