sábado, 22 de agosto de 2020

O cão é o cão e sua circunstância, RCF


Resultado de imagem para rebecca dautremer
Com suas quatro patas vadias
inaugura a rapidez do faro.
Seu rabo desenha-se na rua,
movendo a pequena máquina
do corpo.

Esgueira-se pela fraude do lixo,
o mundo desordenado,
feito de dejetos e pouca carne,
sempre o caminho menos curto
e as palmas a enxotá-lo
de sua paz de orelhas em pé.

Sonha  com a retidão
de uma vida ordenada,
sem a liberdade da caça
– já que não é caçador –
onde possa sonhar
que não é um cão vadio.

Boi e cão são parte do homem.
Em todo lugar há cães.
Um homem é um homem,
sua circunstância e seu cão.

O cão fareja o fim,
como um elefante
busca seu cemitério
e enrosca-se na manta
do vento, ali onde se
agasalha antes de desistir.
O homem não é o melhor amigo do cão.
A que raça de cães
pertencem os moradores de rua?



(O difícil exercício das cinzas. 2014)

ilustração: rebecca drautemer

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Fotografia, poema de RCF




Ando torto
porque meu coração pesa mais
meu lado esquerdo.
Quando, na seca,
a terra muda de plumagem,
caem as penas verdes
e aparece o couro marrom da pele,
meu ânimo planta bananeira.

Nesses dias amanheço
doído de tanto existir.
Talvez meus sonhos tenham pernas demais.
O dia tem sua maneira solar
de dizer que está bom.
Cultivei a horta dos diários.
Meu coração
é um músculo sem força
de vontade.
Meu coração late em espanhol.
Tom rascante. Solo de arame
que corta o pescoço das notas
com seu único bordão.

Meu coração fala pelos cotovelos.
Uma conversa entre cotovelos
é cheia de dores.



(do livro A máquina das mãos. Rio: 7Letras, 2009)

(imagem internet: latoday)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A plantação de silêncio, O difícil exercício das cinzas





Cresce a plantação de silêncio.
Os pés mudos enfileirados
e,  como café, o frutinho vermelho
do incômodo, do musgo e do azinhavre.
Os ventiladores de teto rodam
o ar morno das moscas.
A gagueira dos anacolutos
é o diálogo entre ausência e ferro.
As cadeiras de balanço
cadenciam volutas embriagadas.
A pudicícia do não-me-toques
e sua timidez em flor
cria um jardim de inferno.
A morbidez das águas paradas
enchem o copo de ceifadeiras.
O estilingue do sol
manda sua pedra de calor
que não derrete a borracha
que tudo veda, nega e capa.
O broto da juventude
– há muito fenecido –
é uma lembrança de escarpas,
uma falésia que geme
a roda não azeitada de vazadouro.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Riod: 7Letras, 2014)

Anoitecimento, poema RCF








Anoitece no meu coração coberto de ervas
e, na luta desigual, cresço com a miséria.
Trens trazem minérios de rumor e tristeza.
Além da janela, homens caçam a manhã,
enterram no lodo o tempo da esperança
e cavam fundo até aparecer o osso do mundo.
Nem mesmo as minhas imaginações servem
na tarde ferida e de tijolos exaltados
para inventar suposta vida
que não seja experiência sem retorno.
A vida como carro desgovernado
a mais de duzentos quilômetros por hora,
em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada.
Se ao menos soubesse
o ponto de chegada dos lobos,
não me atormentaria com o tempo
que não tem começo nem fim.








(do livro A máquina das mãos, 7Letras, Rio, 2009)

imagem retirada da internet: Otto Dix