A guerra piorou, Vicentino teve de
deixar Luanda às pressas. Antes Altiva disse que ia com ele para o Rio de
Janeiro. Vicentino foi morar perto da Cruz Vermelha e no apartamento não havia
como enterrar ninguém porque a cova era rasa. Podia ladrilhar o chão que não
havia possibilidade de enterrar o passado no chão do apartamento. Vicentino
pensou que estava livre de Altiva, mas ela amaldiçoou e disse que o esprito
dela ia encarnar em outra negra brasileira ou não.
A princípio Vicentino foi trabalhar
com mármore. Seu pai tinha negócio de marmoraria em Luanda e vendia muito para
cemitério e piso de parede de banheiro dos colonos ricos brancos de Luanda. O
sono perfurado de maldição de Altiva voltou aos poucos, mas ele não deixava de
lembrar o terremoto da voz de Altiva, no baixo da sala, blasfemando e augurando
desgraças brasileiras. Vicentino depois arranjou serviço na morgue e não era
serviço de destripar defunto que não era médico nem tinha curso de coisa
parecida. O trabalho era de escritório. Certa vez Vicentino baixou até o
necrotério. Havia uma negra morta que lhe falou em linguagem de morto e com o
mesmo tom de vulcão azulejado de Altiva. Ele se assustou e respondeu pra morta.
Olha, eu gostava muito de Altiva, se
pudesse eu fazia qual o príncipe português que mandou desenterrar a amada que
uns crápulas da corte assassinaram para que ele não casasse com plebeia e
colocou a gaja no trono para que reinasse como rainha morta ou morta rainha.
Se pudesse desenterrava a negra
Altiva de Castro e a punha na sala, vestida de roupa de mulher branca e não de
roupa de mucama negra e a família dele viria e ela haveria de estar na sala,
morta e vestida, sem voz vulcânica azulejada.
Depois Vicentino trabalhou num
restaurante como garçom. O que o povo não sabia é que Vicentino trabalhava em
ofícios menores, mas tinha com ele boa quantia para montar negócio. Vicentino
só esperava conhecer melhor o Rio de Janeiro e a maneira brasileira. Não havia
guerra, os negros não eram perseguidos nem colonizados, não havia guerrilha,
nem ódio. É muito complicado ter que viver com o coração furado. Vicentino
começou a frequentar Copacabana para ver como funcionavam os bares e
restaurantes. Numa noite, no calçadão, num bar cheio de turistas, Vicentino
sentava sua tristeza angolana debaixo de um inútil guarda-sol quando se
aproximou Ariana em forma de prostituta e, como ela disse, com voz de vulcão
azulejado e a pele tão negra quanto a mais negra solidão.
(do romance
Um homem é muito pouco. São Palo: Nankin, 2010)