sábado, 14 de março de 2020

O pio, poema RCF




A tristeza tem muito de celulóide:
coisa antiga que parada a máquina
se desmancha ao calor das lembranças.
O pio que ouço é pio da morte.
Mas se a morte é silente
como ouvir o que não é mais presente?
como escutar o som do que não se ouve?


O pio desse pássaro
só é emitido por ave em certo cativeiro.
Por isso, pia em outra freqüência:
só escuta quem tem anatomia
que otorrino nenhum alcança:
aquele que o labirinto do ouvido
invadiu outros hemisférios
fez de ouvido o pensamento
fez som onde reina o silêncio
fez do crânio um cativeiro.




(do livro A máquina das mãos. Rio: 7Letras, 2009. Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras)


(imagem retirada da internet: s/crd.)

As borboletas ásperas, poema RCF





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Nada havia maduro
muito menos nós nos poderíamos
colher tão verdes éramos.
Éramos eternos
como eternos são sonhos
que permanecem sonhos.
Havia caminho sem rumo,
desvios  assustadiços,
becos diversos,
atalhos que encurtavam
o que não estava distante.
Os olhos redondos da surpresa
permaneceram na terra dos inominados
e deram lugar hoje
aos espantos cansados de pálpebras baixas.
As maçanetas que eram borboletas
presas às portas se soltaram
e deixaram no quarto a aspereza do vazio.







(do livro Memória dos porcos, 2012)