Ao final de uma vibrante exaltação das virtudes e qualidades de Minas Gerais, um mineiro há décadas radicado no Rio ouviu de alguém na roda em que pontificava: Mas se é tudo isso, Otto, por que você não volta para lá? Sem perder o rebolado, Otto Lara Rezende, frasista genial, respondeu de bate-pronto: Eu não mereço!
Na literatura de outro mineiro, Lúcio Cardoso, cujo centenário se dá neste ano de 2012, é Minas que parece não merecer a volta dos mineiros à terra natal. Numa obra em que separou o joio do trigo e publicou o joio, Lúcio mergulhou nas profundezas da alma mineira, gerando o devastador CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA (1959). É o livro a um tempo mais forte e conhecido de um autor que, ao longo de existência relativamente curta (morreu aos 56 anos de idade, em 1968), produziu inúmeros outros, todos de qualidade superior. Atesta-o o Prêmio Machado de Assis, concedido anualmente pela ABL ao conjunto da obra de escritor brasileiro. Lúcio conquistou o seu em 1966, dois anos antes de nos deixar.
CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA foi precedido de Maleita (1934), Salgueiro (1935), A luz no subsolo (1936) e Dias Perdidos (1943), além de novelas, teatro, cinema, tradução e poesia, e de um romance inacabado, O VIAJANTE, que, editado por seu amigo Octávio de Faria, saiu pela José Olympio em 1973. A última obra que Lúcio Cardoso publicou em vida foi Diário I, de 1961, postumamente complementado por Diário Completo, de 1970.
Para se ter uma ideia aproximada da essência de CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA, vale a transcrição do depoimento que Lúcio deu ao crítico Fausto Cunha, na época do lançamento do romance:
"Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira."
Trata-se de linhas que depunham, com um nítido grau de sensacionalismo, contra certos artistas que afagam o "dolente cantochão elaborado por homens acostumados a seguir a trilha do rebanho e do conformismo, do pudor literário e da vida parasitária."
Em 1962, aos 50 anos, Lúcio Cardoso sofreu um derrame cerebral, que lhe provocou paralisia parcial. Dedicou-se, a partir de então, à pintura, chegando a expor em galerias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Belo Horizonte. Na síntese perfeita de Fausto Wolff, Lúcio passou a dizer com imagens o que já não podia mais dizer com palavras.
Nas letras nacionais, é comum o leitor deparar com excelentes contadores de histórias que não dominam a técnica e primorosos estilistas que não têm o que contar. Lúcio tinha o que contar e o fez de modo irretocável, principalmente ao nos conduzir pela Chácara dos Menezes, o casarão decadente de uma família tradicional mineira que continua a viver na imaginação dos leitores, inclusive das novas gerações que tiverem a curiosidade e a fortuna de o visitar.
Falecido precocemente, mas sempre reverenciado como um dos grandes entre os maiores da Literatura Brasileira no século passado, a Lúcio Cardoso, na celebração do centenário de seu nascimento, se aplica a frase lapidar de Victor Hugo: "A glória é o sol dos mortos."
FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é membro titular do PEN Clube do Brasil e da Academia de Letras do Brasil (Cadeira nº 21).