sábado, 11 de janeiro de 2025

Um homem é muito pouco, trecho 2





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    Uma das frases que Clemente mais gostava era “não era ruim, mas também não era bom”. Clemente a usava para tudo que era indistinto, consumido pelo tempo, estéril ou indiferente. Pois bem, o macarrão do restaurante do hotel não era bom, mas também não era mau. Neste exato momento, sem que Clemente percebesse a carta deslizou bolso afora e, gravitando, caiu entre o lambri que soltou e a parede. Clemente, ocupado com sua fome que subitamente retornara, não percebeu que a carta perdera seu peso. E, com seu peso normal de papel, pôde ela esgueirar-se do bolso sem que o pretenso dono se precatasse da fuga. Mateus e Clemente pela primeira vez conversaram sobre amenidades, Clemente contou uma história longa e divertida de um clandestino.
    Era um angolano, um rapaz, que Clemente pegara roubando comida. Não tinha se alimentado durante três dias e estava numa condição abaixo do animal. Assustou-se quando viu Clemente. Ficou, contudo, mais preocupado com o pedaço de pão e salame que tinha nas mãos e não queria perder do que ser descoberto e levado ao comandante. Ele, o clandestino, defenderia até a morte seu direito de comer. Pegou uma faca de cozinha e ameaçou Clemente. Este riu, mostrou mais comida e disse que não se preocupasse que não iria delatá-lo. Os olhos do menino negro eram olhos inteligentes e Clemente acobertou o angolano que desceu no cais da Praça Mauá, estudou, casou e hoje é advogado com banca e tudo. Clemente ficou pensando que o pior clandestino não era aquele angolano faminto, o pior clandestino é o sujeito que anda pela vida como se não pertencesse a embarcação nenhuma. Ele, Clemente, se achava clandestino, talvez por isso a solidariedade imediata e reta. Onde quer que estivesse Clemente se sentia invasor, não permitido, escondido, sujeito que pode ser expulso a qualquer momento da embarcação, dos lugares, dos restaurantes, dos hotéis, da rua mesmo. Esse sentimento de clandestinidade poucas vezes desaparecia. O que mais doía, entretanto, era sentir-se clandestino em sua própria casa.
    Depois do almoço, ambos retornaram às suas casas. Clemente, cansado de tanta agitação, deitou-se na cama, com roupa e tudo e adormeceu. Dormiu como se fosse noite, um sono árduo.
Clemente entrou na cozinha no navio ao perceber a luz acesa. Lá estavam em volta da mesa o capitão Vaz, Selma, Oswaldo e Mateus. Oswaldo, como o companheiro marinheiro lá dele, vestia-se de mulher, o capitão Vaz não tinha os braços e reclamava: Por favor, Clemente, não faça isso comigo. Selma parecia mais uma prostituta dos portos em que o navio parava e não falava em língua humana, mas na língua suína que é a língua dos porcos. Selma tinha focinho, a boca pequena, o corpo gordo e único de porca. Só Mateus não havia se transformado. Era o velho Mateus de sempre. Anos antes, num porto sujo e pobre da Ásia, com poucos guindastes e sem armazéns, Clemente vira porcos comerem um miserável. Nunca imaginara que os porcos poderiam comer um ser humano e, muito menos, que um ser humano se deixasse comer por porcos. Mas o homem era velho e fraco, um fiapo asiático de homem e os donos dos porcos, também famintos, açulavam seus porcos a se alimentarem de carne humana. Serviu os pratos e nos pratos estavam os braços do capitão Vaz que chorava, enquanto Mateus, o travesti Oswaldo Lee Oswald e a porca Selma devoravam os braços do capitão Vaz. Um baque surdo contra madeira o despertou.
    Entre o sono e a vigília, sem se dar conta ainda de onde estava, se no quarto de sua casa ou na copa da cozinha do navio, Clemente se perguntava se encontraria com o capitão Vaz aleijado, a porca Selma e Lee Oswald mulher. Ainda mal despertava quando então escutou o segundo baque. Percebeu, não desfazendo ainda por completo a alucinação do sonho, que estava na Praça 11 e aquele barulho poderia ser de alguém a invadir a casa. Levantou-se. Sentia-se tonto. Voltou-lhe o balançar de nave. O sentimento de aprisionamento caiu-lhe fundo na alma com a decisão e o peso de âncora lançada n’água. Entrou corredor adentro a procurar a fonte do ruído. Vinha da cozinha. Conhecia aquele estrépito: o esquartejamento das aves e carnes. A quem esquartejavam?
    Era d. Evelina que, com um cutelo, partia o frango. À primeira vista, lembrou-lhe um elemento a mais do pesadelo. D. Evelina era baixa e gorda, com vincos profundos no rosto, cortando a pele escamosa, que mais lembrava terem sido feitos a talho do que pela erosão da idade. Tinha mãos pequenas, mas fortes, nunca pedira a Clemente que lhe abrisse pote, nem recusara o peso de uma estante. As pernas grossas, de veias escuras serpenteando canela acima, davam-lhe o aspecto de precária estrutura, embora firmemente fixada ao chão. Os olhos saltados e as narinas de fole aberto punham fúria onde só havia humildade. A empregada se espantou ao ver o patrão entrar. Ele, ainda prisioneiro do medo, tinha o rosto sem sangue, as mãos poucas, as pernas sem apoio. Mas foi o olhar de náufrago o que assustou a empregada. De cutelo na mão, ela avançou para Clemente no intuito de socorrê-lo. Se ao menos ouvisse o que ela dizia, seu Clemente, o senhor está pálido, está doente, quer ajuda, chamo alguém, médico ou ambulância? talvez não sofresse o pânico de ver sua empregada, como no pesadelo, investir para ele a fim de matá-lo.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Um homem é muito pouco 9









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Outro amigo de Juliana ele identificava como Ian, o que fuma cachimbo. O cheiro de cachimbo irritava os pulmões de Horácio e ele pedira para Juliana dizer, muito gentilmente, para que o diabo do Ian não fumasse cachimbo na frente dele, Horácio. E toda vez que Ian puxava o cachimbo, Horácio se retirava da sala. Mas Horácio não queria destratar o fumador de cachimbo, Ian possuía dois ou três cavalos de Horácio. E, de vez em quando, levava algum amigo ou conhecido para visitar o ateliê de Horácio. E quando Ian levava um amigo para visitar o ateliê aí então Horário suportava a fumaça cinza do cachimbo de Ian.

Outra aproximação mnemônica era a de Lúcia Vera, que morara na África de língua portuguesa, viajava muito, trabalhava como tradutora e o jeito que Horácio encontrou de associá-la com algo foi com as cabeças empalhadas que os caçadores de bichos grandes trazem na parede como troféu. Era mulher pequena e magra, que falava português com sotaque não identificado, embora fosse pernambucana. Vera Lúcia aparecia uma vez por ano, trazia presentes para Juliana e conversavam horas a fio lembrando amigos comuns quando trabalhavam na Unesco como tradutoras. Horácio não gostava de Vera Lúcia e um dia teve um sonho em que, em vez de esculpir cavalos, ele esculpia a cabeça do animal Vera Lúcia. Vinham os compradores e ele vendia as cabeças de Vera Lúcia que acabavam na casa dos colecionadores milionários, geralmente numa sala dedicada a animais empalhados e cabeças de veado, tigres, rinoceronte e Vera Lúcia.

Horácio alimentava ciúme de homem e ciúme de mulher. Se Alexandre, o que jogava pôquer, ele achava que era um amigo de Juliana que dava em cima dela, com Vera Lúcia, a africana de cabeça empalhada, ele sentia que a mulher, quem sabe, não teria tido um caso com ela. O certo é que nutria ciúme de Vera Lúcia, inclusive porque Vera Lúcia podia ser empalhada, mas sabia fazer muito carinho na sua mulher e até mesmo massagem e beijá-la de modo lúbrico, com os olhos duros e empalhados, porém com brilho diferente e aquoso que não tinham os animais empalhados.

Havia também Amélia. Horácio gostava de Amélia, que era mulher bonita e modelo e que dava alegria à casa. Falava alto e contava casos picantes da alta sociedade que frequentava na baixa condição de modelo e amante de magnatas. Desbocada e nervosa, sem conseguir parar num lugar, Horário associou-a com a música do Mário Lago. Com tanta exuberância e transbordando de energia, Horácio foi identificar Amélia justamente com seu oposto: a que era mulher de verdade.

Quanto a Ambrósio relacionava com sonho que o paulista lhe contou: gostava tanto de cães que certas manhãs acordava e não sabia se estava na própria cama ou em algum canil. Quando estava no pesadelo, ele se encontrava no canil público, na fila de espera para ser sacrificado, da mesma maneira que havia nos EUA o corredor da morte para os condenados a cadeira elétrica.

Tão logo Horácio terminava de descrever o elenco de associações e de amizades da mulher que ele usava para guardar na cabeça, entrou na sala um sujeito baixo, de voz de barítono, que andava de um lado para o outro examinando as peças de Horácio, sem olhar Clemente quando foi apresentado a ele.

Vestia-se com apuro. Apuro europeu e com o irritante lenço de seda preso ao pescoço, a substituir a gravata. O paletó azul-marinho estava impecavelmente bem cortado e o sujeito era pernóstico e, por ser baixo, como é comum acontecer com os homens baixos, mantinha a coluna ereta a fim de crescer míseros centímetros que não lhe alteravam a altura. Mas o baixo cresce psicologicamente e, se a postura lhe dava altura superior, que fizesse uso do expediente de empertigar-se.

O desconcertante é que a voz grave e cava saía daquela esfera. O homem, além de pequeno, era gordo, o que lhe dava um contraste exótico como se a voz já estivesse gravada dentro dele, e logo não lhe pertencia. Ou como se algo estivesse avariado como caixa de música que, abrindo-se, não tocasse o que se esperava, melodiazinha enjoada e repetitiva. Geralmente clássico erudito diluído e remanchão.

O nome do homenzinho era Bob, pelo menos assim o chamava Horácio. Devia se chamar Roberto, ou melhor, Robert, porque havia sotaque nele e o rosto rosado e sanguíneo traía origem acima da linha do Equador.

Por onde passava, ou ainda, por cada cavalo que passava ia dando os preços, Por este aqui pago quarenta, Bem aqui podemos dar uns vinte, Este quem sabe poderia até pagar bem mais regiamente, quem sabe noventa ou duzentos.

Tanto Clemente quanto Horário haviam parado de se balançar nos cavalos e olhavam assustados para o pequeno reizinho que ia distribuindo preços e fantasticamente comprando os cavalos de Horácio como se estivesse num frenético leilão. E não se discute, disse por fim, colocando a mão na barriga qual Napoleão de opereta.

Clemente estava desnorteado, como se já não bastasse estar ali naquela estrebaria fantasmagórica de cavalos de madeira, a extravagância mnemônica de Horácio e agora a presença daquele homem elegante, mas rude, que parecia não dar importância a Clemente.

Não dava importância nem mesmo a Horácio, embora quisesse adquirir todas as obras que ali estavam num afã milionário que estonteava qualquer um.

Bob, Bob, tentou Horácio interromper o comprador.

Não se discute, você sabe, disse ele, que comigo preço não se discute. Hoje você tem uma cotação, amanhã os preços explodirão, estive conversando com um amigo meu parisiense que me disse que agora entraremos numa fase da arte moderna onde não existirá mais cavalete e tudo virá de Duchamp, as obras são conceituais, body art e o que mais houver, estamos vivendo uma revolução tão séria no campo das artes plásticas como foi a vanguarda do fim do século passado com o impressionismo e com o surrealismo do princípio do século, uma nova era, senhor Horácio, e o senhor será quem sabe o Picasso brasileiro ou o Duchamp carioca dessa nova era da arte moderna no Brasil e no mundo.

O homenzinho, o Bob, o Robert, falava alto, agigantara-se, discursava, punha-se na ponta dos pés, vibrava o dedo acusatório e definitivo para um ser ali inexistente. Estava tão apoplético que Horário temeu que o homem tivesse um ataque.

Bob virou-se para Clemente e continuou ameaçando, Então o senhor vem aqui e quer pechinchar preço, desconfia da qualidade desse artista genial, desse homem que é modesto por natureza, mas que traz dentro dele uma genialidade infernal, ora, meu amigo, vamos e venhamos, o senhor está no ateliê de um grande artista, saiba disso, e essa visita o senhor nunca mais esquecerá , eu lhe juro, nunca mais esquecerá.

Bob, repetiu Horácio, escute-me, homem.

Pela primeira vez, quem sabe para tomar ar ou porque exagerara, Robert sentou-se, ofegante, pediu um copo d’água.

Você não precisava continuar nessa encenação toda, homem de Deus. O Clemente aqui não é comprador, é amigo da Juliana. Você precisa ser mais previdente e menos maluco. Assim nossa sociedade não dará certo.

Foi aí que Clemente percebeu o que ocorrera. O pobre do Bob ou Robert encenava ser comprador de obra de arte que irrompia no ateliê de Horácio a fim de influenciar na venda das peças que um desavisado visitante pudesse ainda estar em dúvida. Nem sempre dava resultado. Nem sempre a performance de Bob era tão enfática como foi aquela. Uma pena Robert ter gastado tanto conhecimento de artes plásticas para apenas uma visita familiar. Era preciso tomar mais cuidado e saber quem realmente estava no ateliê e não entrar porta adentro, enlouquecido.



(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

A peste em Vieira no Maranhão 3







        Duas pessoas perderam a cordura. Mendonça, após o período de renúncia e autoflagelação, saiu às ruas em busca da peste. Aproximou-se do engenho Margarida, onde a besta levara com um sopro dezenas de gentios. Andava pelos campos abandonados, rolava-se na terra, se via algo parecido a um resto de tecido, esfregava o trapo no corpo. Apareceu na casa anojada de Albino, devastado, procurando pelo corpo morto da amante. Queria saber onde estava enterrado, morreria vivo no mesmo túmulo. 
              O oleiro não quis mostrar onde a mulher se sepultava porque Azevedo de Mendonça podia causar um desbarato na terra e profanar o pouco que restava de Antonieta Albino. 
        Outro insano foi Gualberto, agora o Enforcado. Pegou o filho nos braços e foi visitar os hospitais. Vieira saía de um deles quando viu o rapaz inteligente que discutia com ele sobre astros e filosofia entrar numa casa dos jesuítas transformada em enfermaria de campanha. O filho de Espanhol pesava como uma criança de colo, tal a magreza só de ossos. Babava e pronunciava palavras indistintas, divertidas. 
            Vieira aproximou-se de Gualberto, acariciou a cabeça curta do pequeno, perguntou o que fazia o homem ali. Não houve resposta. O padre entendeu a desinteligência do Enforcado. Agarrou-o pelo braço, levou até a igreja Nossa Senhora da Luz, mandou dar comida e roupa ao rapaz, banho e cuidados ao adolescente menino. Uma semana depois, Vieira soube que a Gualberto Espanhol caíra vítima da peste. 





(do romance Vieira na ilha do Maranhão. Rio: 7Letras, 2019)



quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O personagem do romance, ensaio

 








(Trecho do livro Narrativas da vida, o personagem do romance. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2023. Também encontrado em e-book, na Amazon)


As leituras sobre o personagem de Vicent Jouve, Michel Zérrafa e Philippe Hamon

 

            Na escassa bibliografia que trata apenas do personagem, Philippe Hamon tentou abordar o personagem dentro do romance de Zola. Embora seu esforço para construir uma teoria do personagem estivesse subjacente ao estudo, Hamon se apoiou somente numa expressão reduzida do comportamento do personagem zoliano. Buscou procedimentos, comportamentos repetitivos, isolou caracteres, analisou modelos que, infelizmente, ainda que não diminua seu trabalho, reduziu-se à esfera romanesca do naturalismo do autor francês. Sua intenção, como ele mesmo afirma em seu livro, não é tratar da psicologia do personagem, uma psicologia social, ou de uma estética, campos de atuação de Michel Zeraffa. Mas

 

            ... privilegiar um estudo que dê conta do personagem como objetivo de uma estética romanesca, estudo que, contudo, poderá integrar, mas sem privilegiar, o ponto de vista do autor da criação, logo, igualmente e por esse ângulo, uma certa concepção do personagem histórica e ideologicamente datada. Simplesmente, nós escolheremos chegar a essa determinação histórica e ideológica assimilando a um tipo e pacto de comunicação (comunicação realista – plausível – pedagógica) e a um estilo de época (a escritura artista-impressionista), antes que um dado filosófico ou moral. [1]

           

            Hamon entende, como vários outros, o ideológico como sinônimo de ideias e, aqui, as ideias do autor e não como um sistema de operação que é traiçoeiro até mesmo para o criador revelando contradições sobre o que ele expressa e até mesmo escreve.

            Outro que estuda apenas o personagem é Vicent Jouve, teórico da leitura. Seu livro não se afasta tanto, ele reconhece, do estruturalismo, mas acrescenta que sua vocação é o estudo da recepção do personagem pelo leitor. Não deixa de incluir a psicanálise, o cinema e outras manifestações que influem e interferem na captação da imagem do personagem durante a leitura. O estudo da recepção não se opõe à aproximação imanente, é complemento indispensável. Sem categorias não se pode pensar a experiência, segundo ele.

            Nosso estudo não despreza a interpretação e o modo como o leitor é afetado pela leitura. Tampouco despreza a psicanálise. Mas há diferenças. A psicanálise, para Jouve, tende à apreensão do leitor, enquanto nós trabalhamos com a produção e recepção. Além de tratar a psicanálise não apenas do ponto de vista freudiano ou da terapia convencional, mas incluindo aí a ideologia, a sociologia e as manifestações míticas. A angustiosa produção da fábula nos interessa tanto quanto a “leitura” internalizada pelo leitor. O personagem é uma simbiose de projeções mentais profundamente arraigadas na produção da mitologia pessoal e social.

            Da mesma maneira não descartamos as teorias da leitura dos hermeneutas como Jauss, Iser e Ricoeur sobre o impacto do leitor, incluímos também aí as projeções idealistas feitas pelos leitores em relação aos autores. Da mesma forma que vimos os efeitos das projeções do texto sobre o leitor, também queremos enxergar um comportamento mítico e múltiplo no promotor da emissão da leitura: o autor, como ser social e sua ontologia. Nosso propósito seria também entender esses dois elementos, autor e leitor, como “personagens”, um ao produzir o texto ficcional e outro a cumprir uma tarefa que sem ela não existe a literatura.

            O livro de Jouve, pelo próprio título, já explicita sua concepção e sua intenção de estudo: o efeito que o personagem provoca no leitor. É o livro mais completo sobre o personagem a que tive acesso, aí incluindo o estudo sobre o personagem levado a cabo por Michel Zéraffa. Embora mais didático, mais “estruturalista”, mais comprometido com a leitura, o livro de Jouve é provocativo e aponta para várias questões inquietantes relativas ao nosso tema.

            Já havia escrito três quartos do livro quando tomei conhecimento de Jouve. Nossa concepção do efeito da psicanálise em certas horas converge, em outras toma caminhos diferentes. Nossa visão trabalha com a sistemática produção do autor – não a sua intenção – e com o mecanismo de engano de toda produção mitológica e inconsciente. O certo é que não conheço até agora livro mais completo do que L’effet-personnage dans le roman[2], apesar de minha discordância com tantas formalizações, esquemas e gráficos.

            Operando apenas com a análise do personagem, Zéraffa investe pesadamente na tentativa de apreender o fenômeno da passagem de uma figura de papel, um ator, um representante de um comportamento humano, e adentrar-se na psicologia do personagem, tanto e convicentemente, até que ele se torne uma pessoa. Buscou o recorte de quarenta anos dos romances vanguardistas do século passado e que fez uma revolução, das maiores, na expressividade romanesca (nada mais nada menos do que os romances de Joyce, Proust, Mann, Gide, Kafka e os outros da modernidade). Uma das grandes teses de Zéraffa é que modificando a psique dos personagens logo haveria uma mudança de expressão estética. A interiorização do personagem levou a maior complexidade experimental e expressional. A necessidade de aprofundar-se na mente dos personagens, torná-los mais vizinhos a nós, fazê-los íntimos e densos, levou a uma estética mais pessoal e que a estética do século XIX não podia mais comportar ou representar esse mergulho no inconsciente do personagem.

 

            ... nosso estudo conjuga duas pesquisas: uma de ordem psicossociológica – tendo por objeto a pessoa – e outra de caráter estético – tomando por objeto a vida das formas. Associando essas duas pesquisas, nossa maneira de proceder irá distinguir-se daquela do sociólogo, que, com justiça, concebe o romance como o significante privilegiado do estado de uma sociedade, e pode descobrir relações necessárias entre as estruturas de uma obra e os traços essenciais de um momento de uma civilização; distinguir-se-á também daquela do psicólogo que, legitimamente, encontra num romance a descrição de fatos psíquicos. De nossa parte, consideramos a pessoa, mas no romance; isto é, tal como a traduz uma linguagem que tem suas próprias leis e estruturas, a linguagem de uma arte.[3]

 

Não nos interessa, como vários já fizeram, estudar o personagem como percurso ou historiar sua trajetória. Não apenas o bom e despretensioso livro de Forster, as manifestações folclóricas em Propp e as categorias dos estruturalistas, apontaram para uma tipologia do personagem, o que muito contribui para o conhecimento do surgimento das figuras no texto. Várias tentativas de criar uma tipologia para os personagens já existiram, mesmo no florescer do gênero romanesco. Elas esclarecem e ajudam a classificação, mas não resolvem, para nós, o problema do fenômeno do personagem, sua caracterização como elemento visceral da obra de arte literária, instrumento de prática e exercício de fabulação. Logo nas primeiras manifestações dos grandes romances do século XVIII, “Johnson chamava ‘personagens de costumes’ e ‘personagens de natureza’”, definindo com a primeira expressão os de Fielding, com a segunda os de Richardson:

 

Há uma diferença completa entre personagens de natureza e personagens de costumes, e nisto reside a diferença entre as de Fielding e as de Richardson. As personagens de costumes são muito divertidas; mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial do que as de natureza, nas quais é preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do coração humano. (...) A diferença entre eles (Richardson e Fielding) é tão grande quanto a que há entre um homem que sabe como é feito um relógio e um outro que sabe dizer as horas olhando para o mostrador[4]

 

            Entre outros autores que usaram o personagem para estudar algum fenômeno sociológico-literário está o de Ian Watt com seu Mitos do individualismo moderno, onde estuda alguns protagonistas de clássicos para marcar a ascensão do romance (outro título seu), a afirmação da modernidade e, ao mesmo tempo, entender a projeção de concepções do personagem que permaneceram no imaginário dos leitores e passaram de personagens a mitos sociais. Eles são Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e Robinson Crusoé. Watt e Campbell muito se aproximam, embora o primeiro trabalhe com uma visão antropológica e o segundo com um modelo junguiano. Acreditava eu que os mitos já correspondiam não apenas à necessidade de dar respostas não científica aos fenômenos naturais e, como Malinowski, os mitos mantinham a união grupal e ratificavam e sacralizavam as instituições sociais. Campbell, ainda que o próprio Ian Watt o veja como redutor, analisa o mito como modelos que se repetem desde as mais prístinas expressões. Desta maneira, os mitos revelam um inconsciente coletivo, o que não aproveitamos de todo, mas nos alertou para uma possível gramática de formação do personagem. Por isso, distinguimos a mitologia de forma geral e as mitologias individuais dos autores literários para formação de seus personagens. “A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique”, afirma Campbell. Não usamos de forma assertiva as conclusões de Campbell, mas sua presença permanece aqui e ali.

 

            Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aquele que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses “seres eternos do sonho” não devem ser confundidos com a figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique.[5]

 

Reconhecemos que só esta afirmação – que é a única de Campbell, já que o restante do livro é para provar com exemplos sua tese – é simplista e, por essa razão, utilizamos também, entre outros, citados e não citados, pressupostos de Cassirer em relação ao mito. A concepção do mito como linguagem, e que “a consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento, da arte [...] todas elas se encontram originalmente ligadas à consciência mítico-religiosa”[6], insinuou-se em nossa análise para sugerir que haveria uma gramática do personagem. A ficção, é óbvio, não é uma criação coletiva, mas a formação gestáltica do personagem como elemento constitutivo de uma protonarrativa que, junto a uma criação idiossincrática e de “mitologia pessoal”, forneceria um modelo que o leitor já teria incorporado a sua dinâmica mental.

Aponta Cassirer:

 

O caráter comum dos resultados, das configurações que produzem, indica, aqui também, que deve haver uma comunhão última na função do próprio configurar. Para reconhecer esta função como tal e expô-la em sua pureza abstrata, cumpre percorrer os caminhos do mito e da linguagem, não para a frente, mas sim para trás – cumpre retroceder até o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes. E este ponto comum parece ser realmente demonstrável, já que por mais que se diferenciem entre si os conteúdos do mito e da linguagem, atua neles uma mesma forma de concepção mental. Trata-se daquela forma que, para abreviar, podemos denominar o pensamento metafórico. Portanto, parece que devemos partir da natureza e do significado da metáfora, se quisermos compreender, por um lado, a unidade dos mundos míticos e linguísticos e, por outro, sua diferença[7].

 

            Não se procura aqui uma análise do personagem preso a uma linha crítica específica, mas entender o fenômeno utilizando todo o material a que tivemos acesso para formular sua gênese, sua conformação e sua atuação. Diferentemente do personagem das artes dramáticas que se corporificam, o personagem da literatura não dispõe de mecanismos visuais e sua corporificação advém de um mecanismo complexo e requer do leitor uma outra experiência ontológica e epistemológica. Ao mesmo tempo que não pode funcionar sozinho e ter de atuar num espaço/tempo e mover-se para promover uma cinese que permita que a trama se concretize, o personagem não é apenas mais um elemento da narração, mas o catalizador de uma série de experiências emotivas e sensoriais que leva autor e leitor a um mundo de provocações existenciais.

            Este livro é mais especulativo que afirmativo. Não desejamos que nossa análise seja vista como um estudo fechado, mas que tenha a simpatia do leitor para uma aventura inquieta e interativa. O que em alguns momentos pode soar como pretencioso ou indiscutível é apenas um descuido da escrita. Nosso propósito é o compartilhamento de inquietações sobre este fenômeno que nos fascina e que foi preciso escrever sobre ele a fim de sossegar algumas perguntas que ao longo de anos nos perseguiam.

 

 

 

 

 



[1]  “Notre intention est plutôt de nous situer sur un terrain autre que celui d’une psychologie sociale, ou d’une esthétique, terrains qui sont ceux de M. Zeraffa, pour privilégier une étude que rende au personnage sa détermination d’objet stylistique romanesque, étude qui cependant pourra intégrer, mais sans privilégier, le “point de vue” de l’auteur sur sa creátion, donc, également et par ce biais, une certaine conception de la “personnage” historiquement et idéologiquement datée. Simplement, nous choisirons d’accéder à cette détermination historique et idéologique en l’assimilant à un type et pacte de communication (communication realiste – vraisemblable – pédagogique) et à un style d’epoque (l’escriture artiste-impressionniste), plutôt qu’à une donnée philosohique ou morale.” HAMON, Philippe. Le personnel du roman. Le sistème des personnages dans les Rougon-Macquart d’Emile Zola.  Genève: Droz, 2011. p. 14.

[2] “Pour reprendre la termonologie de W.Iser, nous allons attacher au pôle esthétique du roman, non à son pôle artistique: ‘on peut dire que l’ouvre littéraire a deux pôles: le pôle artistique et le pôle esthétique. Le pôle artistique se réfère au texto produit par l’auteur tandis que le pôle esthétique se rapporte à la concrétisation réalisée par le lecteur’. En termes linguistiques, nous étudierons la force perlocutoire du texte (as capacite à agir sur le lecteur) plutôt que son aspect illocutoire (l’a intention manifestée par le auteur).” A citação de Iser vem do seu livro O ato de leitura, teoria do efeito estético. Vicent Jouve o cita em seu livro L’effet-personnage dans le roman. Paris: Press Universitaire de France, 1992. p. 14.

[3] ZÉRAFFA. Michel. Pessoa e personagem. O romanesco dos anos de 1920 aos anos de 1950. Tradução Luiz João Gaia e J Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 9.

[4] Citado por Antonio Candido ap. CANDIDO, A., ROSENFELD, A., PRADO, Decio de A., GOMES, Paulo E. S, in A personagem da ficção. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 61.

[5] CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1989. p.27

[6] CASSIRER, Ernest. Mito e linguagem. 3ª ed. Tradução J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 64.

[7] Idem, p. 102.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Balé das aves humanas, poema

 


 

 


 

 

Toda bailarina

pretende ao voo,

com seus mil braços

como uma deusa hindu.

Igual ao planador,

desafia a gravidade

no balé das aves humanas.

 

Todo bailarino

almeja ser um beija-flor.

Toda bailarina está cansada

de ser puxada para baixo

e entediada

com a condição pesada

de ser humana.