Outro amigo de Juliana ele identificava como Ian, o que fuma cachimbo. O
cheiro de cachimbo irritava os pulmões de Horácio e ele pedira para Juliana
dizer, muito gentilmente, para que o diabo do Ian não fumasse cachimbo na
frente dele, Horácio. E toda vez que Ian puxava o cachimbo, Horácio se retirava
da sala. Mas Horácio não queria destratar o fumador de cachimbo, Ian possuía
dois ou três cavalos de Horácio. E, de vez em quando, levava algum amigo ou
conhecido para visitar o ateliê de Horácio. E quando Ian levava um amigo para
visitar o ateliê aí então Horário suportava a fumaça cinza do cachimbo de Ian.
Outra aproximação mnemônica era a de Lúcia Vera, que morara na África de
língua portuguesa, viajava muito, trabalhava como tradutora e o jeito que Horácio
encontrou de associá-la com algo foi com as cabeças empalhadas que os caçadores
de bichos grandes trazem na parede como troféu. Era mulher pequena e magra, que
falava português com sotaque não identificado, embora fosse pernambucana. Vera
Lúcia aparecia uma vez por ano, trazia presentes para Juliana e conversavam
horas a fio lembrando amigos comuns quando trabalhavam na Unesco como
tradutoras. Horácio não gostava de Vera Lúcia e um dia teve um sonho em que, em
vez de esculpir cavalos, ele esculpia a cabeça do animal Vera Lúcia. Vinham os
compradores e ele vendia as cabeças de Vera Lúcia que acabavam na casa dos
colecionadores milionários, geralmente numa sala dedicada a animais empalhados
e cabeças de veado, tigres, rinoceronte e Vera Lúcia.
Horácio alimentava ciúme de homem e ciúme de mulher. Se Alexandre, o que
jogava pôquer, ele achava que era um amigo de Juliana que dava em cima dela,
com Vera Lúcia, a africana de cabeça empalhada, ele sentia que a mulher, quem
sabe, não teria tido um caso com ela. O certo é que nutria ciúme de Vera Lúcia,
inclusive porque Vera Lúcia podia ser empalhada, mas sabia fazer muito carinho
na sua mulher e até mesmo massagem e beijá-la de modo lúbrico, com os olhos
duros e empalhados, porém com brilho diferente e aquoso que não tinham os
animais empalhados.
Havia também Amélia. Horácio gostava de Amélia, que era mulher bonita e
modelo e que dava alegria à casa. Falava alto e contava casos picantes da alta
sociedade que frequentava na baixa condição de modelo e amante de magnatas.
Desbocada e nervosa, sem conseguir parar num lugar, Horário associou-a com a
música do Mário Lago. Com tanta exuberância e transbordando de energia, Horácio
foi identificar Amélia justamente com seu oposto: a que era mulher de verdade.
Quanto a Ambrósio relacionava com sonho que o paulista lhe contou:
gostava tanto de cães que certas manhãs acordava e não sabia se estava na
própria cama ou em algum canil. Quando estava no pesadelo, ele se encontrava no
canil público, na fila de espera para ser sacrificado, da mesma maneira que
havia nos EUA o corredor da morte para os condenados a cadeira elétrica.
Tão logo Horácio terminava de descrever o elenco de associações e de
amizades da mulher que ele usava para guardar na cabeça, entrou na sala um
sujeito baixo, de voz de barítono, que andava de um lado para o outro
examinando as peças de Horácio, sem olhar Clemente quando foi apresentado a
ele.
Vestia-se com apuro. Apuro europeu e com o irritante lenço de seda preso
ao pescoço, a substituir a gravata. O paletó azul-marinho estava impecavelmente
bem cortado e o sujeito era pernóstico e, por ser baixo, como é comum acontecer
com os homens baixos, mantinha a coluna ereta a fim de crescer míseros
centímetros que não lhe alteravam a altura. Mas o baixo cresce psicologicamente
e, se a postura lhe dava altura superior, que fizesse uso do expediente de
empertigar-se.
O desconcertante é que a voz grave e cava saía daquela esfera. O homem,
além de pequeno, era gordo, o que lhe dava um contraste exótico como se a voz já
estivesse gravada dentro dele, e logo não lhe pertencia. Ou como se algo
estivesse avariado como caixa de música que, abrindo-se, não tocasse o que se
esperava, melodiazinha enjoada e repetitiva. Geralmente clássico erudito
diluído e remanchão.
O nome do homenzinho era Bob, pelo menos assim o chamava Horácio. Devia
se chamar Roberto, ou melhor, Robert, porque havia sotaque nele e o rosto
rosado e sanguíneo traía origem acima da linha do Equador.
Por onde passava, ou ainda, por cada cavalo que passava ia dando os
preços, Por este aqui pago quarenta, Bem aqui podemos dar uns vinte, Este quem
sabe poderia até pagar bem mais regiamente, quem sabe noventa ou duzentos.
Tanto Clemente quanto Horário haviam parado de se balançar nos cavalos e
olhavam assustados para o pequeno reizinho que ia distribuindo preços e
fantasticamente comprando os cavalos de Horácio como se estivesse num frenético
leilão. E não se discute, disse por fim, colocando a mão na barriga qual
Napoleão de opereta.
Clemente estava desnorteado, como se já não bastasse estar ali naquela
estrebaria fantasmagórica de cavalos de madeira, a extravagância mnemônica de
Horácio e agora a presença daquele homem elegante, mas rude, que parecia não
dar importância a Clemente.
Não dava importância nem mesmo a Horácio, embora quisesse adquirir todas
as obras que ali estavam num afã milionário que estonteava qualquer um.
Bob, Bob, tentou Horácio interromper o comprador.
Não se discute, você sabe, disse ele, que comigo preço não se discute.
Hoje você tem uma cotação, amanhã os preços explodirão, estive conversando com
um amigo meu parisiense que me disse que agora entraremos numa fase da arte
moderna onde não existirá mais cavalete e tudo virá de Duchamp, as obras são
conceituais, body art e o que mais houver, estamos vivendo uma revolução
tão séria no campo das artes plásticas como foi a vanguarda do fim do século
passado com o impressionismo e com o surrealismo do princípio do século, uma
nova era, senhor Horácio, e o senhor será quem sabe o Picasso brasileiro ou o
Duchamp carioca dessa nova era da arte moderna no Brasil e no mundo.
O homenzinho, o Bob, o Robert, falava alto, agigantara-se, discursava,
punha-se na ponta dos pés, vibrava o dedo acusatório e definitivo para um ser
ali inexistente. Estava tão apoplético que Horário temeu que o homem tivesse um
ataque.
Bob virou-se para Clemente e continuou ameaçando, Então o senhor vem aqui
e quer pechinchar preço, desconfia da qualidade desse artista genial, desse
homem que é modesto por natureza, mas que traz dentro dele uma genialidade
infernal, ora, meu amigo, vamos e venhamos, o senhor está no ateliê de um
grande artista, saiba disso, e essa visita o senhor nunca mais esquecerá , eu
lhe juro, nunca mais esquecerá.
Bob, repetiu Horácio, escute-me, homem.
Pela primeira vez, quem sabe para tomar ar ou porque exagerara, Robert
sentou-se, ofegante, pediu um copo d’água.
Você não precisava continuar nessa encenação toda, homem de Deus. O
Clemente aqui não é comprador, é amigo da Juliana. Você precisa ser mais previdente
e menos maluco. Assim nossa sociedade não dará certo.
Foi aí que Clemente percebeu o que ocorrera. O pobre do Bob ou Robert
encenava ser comprador de obra de arte que irrompia no ateliê de Horácio a fim
de influenciar na venda das peças que um desavisado visitante pudesse ainda
estar em dúvida. Nem sempre dava resultado. Nem sempre a performance de Bob era
tão enfática como foi aquela. Uma pena Robert ter gastado tanto conhecimento de
artes plásticas para apenas uma visita familiar. Era preciso tomar mais cuidado
e saber quem realmente estava no ateliê e não entrar porta adentro,
enlouquecido.
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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