sábado, 1 de dezembro de 2018

Luz em agosto, Faulkner


        



(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016)


                Ardiloso, escritor de inúmeros recursos, Faulkner neste romance, ao contrário dos vanguardistas O som e a fúria e Enquanto agonizo, mostra um narrador mais comportado, usual e tradicional. Todas as partes do romance são narradas em 3ª pessoa. Não há monólogo interior. O monólogo interior até pode ser realizado em 3ª pessoa. Mas não é o caso aqui. O que existe aqui é alternância do foco narrativo.

                Esse discurso tradicional não é desprovido de sua idiossincrasia e Faulkner que aparentemente sugere que vai contar uma história de modo tradicional, ao colocar o foco narrativo em Lena Grove, moça grávida que vai atrás do pai do filho que irá nascer, no Alabama do início do século XX, logo no segundo capítulo aponta para a mudança de foco, acompanhando os vários personagens, sem, contudo, com a ruptura e fragmentação que torna a leitura de Enquanto agonizo, por exemplo, difícil e confusa, pois o leitor terá que identificar quem está falando entre quase dezena de personagens.

                Luz em agosto mostra que Faulkner, mais uma vez, é um grande narrador. Nem todos os escritores têm força narrativa. Joyce mesmo não era um grande narrador. Culto, excêntrico, experimentalista, a prosa de Joyce é intrigante pelo jogo de palavras, a intertextualidade, numa exposição morosa e cerebral das vinte e quatro horas de Leopold Bloom. Mas Joyce é um fraco contador de histórias. (Deixemos Joyce de lado, porque nos interessa aqui Faulkner). Em Faulkner, influenciado por Joyce, não há, principalmente, a palavra porte-manteau que caracterizou, junto com o stream of consciousness, a prosa joycena. O romance de Faulkner mais devedor de sua admiração pelo irlandês é O som e a fúria.

                Outro dado curioso que quero comentar nessa pequena nota sobre Faulkner é o conceito de negro. Há vários negros verdadeiros na narrativa de Faulkner. Cativa-me sobremaneira o fugitivo negro de uma penitenciária em Palmeiras Selvagens que toma toda uma metade do livro que não tem nenhuma ligação com a outra metade onde são narradas as desventuras de um jovem médico e sua esposa numa afastada e derruída mina cujos patrões mantêm a todos numa insalubridade doentia.

                Em Luz em agosto, o personagem principal, aquele em que é o eixo que faz girar todos os personagens em sua volta, é Joe Christmas, um homem que trabalha numa madeireira, pai do filho de Lena Grove. Christimas assassina sua amante e senhoria branca, foge, é perseguido e morto. O negro de Faulkner é branco. É assim com Christmas, abandonado num orfanato e seguindo pela vida solitário e anônimo, é assim com Bon, o personagem “negro” e por isso proibido de casar com uma branca por ser incestuoso e, fundamental, por ter em seu sangue um oitavo de sangue negro no romance Absalão, Absalão. Bon é branco, mesmo na visão do norte-americano de hoje.

                Entre alguns personagens de Faulkner que nos causam estranheza – e o fazem um autor especial também por esta apresentação de um personagem dissonante – está Christmas. Como foi dito acima, Christmas é um órfão que desconhece sua origem racial e é levado a outro reformatório em razão de que a direção suspeita que seja negro e portanto não pode permanecer na instituição para órfãos brancos.

                A psicologia de Christmas é quase nula, embora o autor mostre o assassinato de sua amante e protetora branca por esta apontá-lo como negro e ele próprio julgar que é um crime uma branca promíscua envolver-se com um negro como ele. O resto do tempo, Christmas atua como um autômato. Quase que antecipa o personagem descarnado de psicologia do nouveau-roman francês algumas décadas adiante. Sartre fala em um homem sem Deus, o que me soa estranho, porque os romances de Faulkner, principalmente Absalão, Absalão e Luz em agosto estão plenos de referências bíblicas. A maldição, o fatalismo e a tragédia estão em cada linha desses dois romances que se irmanam. Antes que um Joyce norte-americano, Faulkner é um Shakespeare do Mississipi.

                Sobre taras e fraquezas humanas, Monique Nathan observa que os personagens de Faulkner buscam “se reintegrar seu passado de homem do Sul, libertando-o, primeiro, da fatalidade de que se julga vítima”. Perfeito. E Michel Butor (um dos teóricos do nouveau-roman) aponta: “É o conhecimento da sua própria história, absolutamente necessário para que possam libertar-se da fatalidade do Sul, o que Faulkner fornece a seus compatriotas.” (RCF)


A ferro e fogo, poema RCF


A manhã tem várias roupas:
terno claro do sol
vestido de alcinha das férias
pijama suado do pesadelo
saltos – altos e baixos.
A manhã tem cama,
lençol de neblina,
a enorme movimentação
bacteriana dos homens
em direção ao caldo de cultura do trabalho.
A manhã tem vários cárceres:
a cela dos penitentes,
a cela dos escritórios,
a cela dos automóveis,
a cela dos ônibus.
A manhã tem várias casas:
a de alvenaria de hoje,
a de seda do futuro,
feita com o cimento
de algodão do amanhã.
A manhã tem seu citrino:
o falso topázio do sol na vidraça,
o quartzo dos relógios,
os gramas da esmeralda,
rubi de faróis.
A manhã tem vida e morte:
a morte que é um bem
que não se inventaria
nem muito menos
mortal algum quer descobrir a sua essência.
Minha manhã veste o terno
do pesadelo e minha essência
tem a cor citrina
da falsa idéia de que os mortos descansam.


(do livro A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: guy bourdin

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Um homem é muito pouco 31


         

Resultado de imagem para vivian maier  Visito meu afilhado. Levo meu afilhado no zoológico e ele sabe o nome de todos os bichos. Certa vez a gente estava na Quinta da Boa Vista. Era no meio da semana. Aquilo foi erro meu. Não se visita local público no meio da semana. O lugar fica vazio e amplo. O lugar coloca a gente debaixo de microscópio. O local público como a Quinta da Boa Vista tem que ser visitado num domingo ou feriado. E a gente se misturar com pipoqueiros, vendedores de churrasquinho, os pobres que enchem as colinas e fazem piquenique e os visitantes do Museu Nacional e povo alegre e suburbano que passeia entre os bichos e aves. Não há como se esconder num lugar tão amplo. José Altino é o nome do meu afilhado. Antes, Vicentino não queria botar o nome do filho dele de Mundiano, mas depois queria apagar tudo da antiga vida dele em Angola. Até o sotaque Vicentino queria perder a fim de que a guerra que largou em Angola não continuasse no Brasil. José percebeu minha agitação e me fantasiou de bicho.

            Ele me disse Ninguém vem atrás da gente porque agora a gente é bicho e bicho ninguém anda atrás. E a gente saiu do zoológico em forma de cachorro e ninguém deu conta de que a gente fugia em forma de cachorro.

            Essa é a história que o menino contava para o pai e para a mãe, para Vicentino e para Ariana, que ambos acreditavam que a gente fugira do zoológico em forma de cachorro. Minha versão é diferente. Ninguém me perseguia. Não consegui prova de que alguém me perseguia a não ser minha imaginação. Mas Vicentino contava a história da metamorfose como se realmente tivesse acontecido. E tanto contou e tanto ouvi que chego a duvidar se não saí do zoológico em forma de cachorro. Eu tinha a curiosidade de saber qual era minha forma de cachorro. Em que raça de cachorro me transformara para sair do zoológico sem ser percebido. Mas isso José, o menino com inteligência prevista por Mundiano como incisiva, não soube explicar, embora José conhecesse todas as raças de cachorro, desde pastor alemão até galgo e rotweiller.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Tens apenas meia hora para inventar o furor, poema RCF





tens apenas meia hora para inventar o furor

teu jardim é pródigo de ventos
                                     sustos uterinos
enveredas pelo abismo
                                     das desculpas úmidas

tu te recolhes à rotunda do medo
                                 atrás de cada porta se revela
gestos incompletos
na esperança do aperto
de mão que nunca virá
                              porque nunca foi tentado

enfurnada na cafua
                            onde tremes
e receias a mudez
nuvens e desastres de colete amarelo
                            te mostram
que o silêncio está em ti
e não pode ser fracionado
                           ou diminuído
como o coração
que não se amputa

parca e inexata
                         avanças pela manhã líquida
as manhãs são sempre femininas
                         os cachorros
vadeiam o mal estar do mundo

cresce a dívida
que não contraíste
                        com o agiota
que nem ao menos conheces

buscas então
                      o esconderijo
mais aviltante
para apaziguar
o desejo dos torpes
e afundar
no madrigal do fim
                               
                                                                

(Andarilho, 2000)




imagem retirada da internet: solitaryangel

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A festa camponesa, poema RCF


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A neblina granulada
artrites do carro de boi
amarras da feira livre
minúscula roda-gigante
            caboclo mágico
            prestidigitação do copo:
            sumiço de dois dedos
            de cachaça
            soluços luminosos dos
                              vaga-lumes
                             dentes sujos da sanfona
                             o galo rouco
                             copas de crista baixa
                             alto-falante fanho
rabeca de pouca corda
como boca de um só dente
repente lento
abc do cantor analfabeto
visão do cego
lusco-fusco dos olhares
onde termina o couro da alpargata
onde começa o couro do pé?
ruas descalças
raízes aéreas
frutas sobre a mesa
natureza morta viva
                curto-circuito dos busca-pés
                varal de bandeirolas
                            circo quadrado
                            pão de forma de rapadura
                            camponês chinês:
                                     relógio de pilha
                                     no braço sem pulso.


(do livro Terratreme, Fundação Cultural de Brasilia, 1998)


imagem retirada da internet: dicavalcanti

domingo, 25 de novembro de 2018

Lançamento do livro Matadouro de Vozes

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