sábado, 1 de julho de 2023

O viúvo, 6º capítulo




            A casa não me aceitava. Eu, mero apêndice, excrescência, a qualquer momento, ela poderia me expulsar como um organismo vivo expulsa o que lhe é estranho.
            Os quartos por sua vez eram diminutos, apertados, lembravam casa de bonecas, não havia espaço para hóspedes, camas descomunais, armários enormes. Eu não visitava os quartos. Não os ocupava, não os via, nem mesmo os queria fazer de depósito. E cada vez que, do corredor, os avistava, por incúria ou descuido, me surgiam cada vez menores. A impressão que tinha era que, por não serem usados, e como organismos vivos que sem uso atrofiam, um dia desapareceriam. Eu caminharia pelos corredores e não daria falta deles.  Os corredores, onde estão os corredores?
            A cozinha era ampla, arejada e a casa, estranhamente, em vez de atrair luz e energia para a sala, convergia para a cozinha luminosidade, amplitude e vida. A vida vicejava na cozinha como planta adubada. As paredes porosas exalavam não apenas o cheiro forte dos temperos, exalava ela mesma cheiro de existência, coisa viva, poderia suar ou gelar-se.
            Se a cozinha vibrava, utilitária, necessária e vital, a sala acabrunhava-se numa soturnidade úmida. O sol também dali se esquivava, batendo nas quinas, sombreando os cantos, nada mais. A sala era um caixote, de teto de cimento aparente, que se recusava a iluminar-se, mesmo artificialmente. Contudo não lembrava luto ou tristeza, mas uma recusa, negaça, fingia-se de acolhedora quando ela própria respirava escuro e renúncia.
            Havia um meio tecnológico que me ligava ao mundo: o telefone. Nele, podia ingressar minusculamente, outro mundo alardeante de vozes, sussurrantes, abstratas, podia atravessar de maneira atlântica e estar em contato com vozes estrangeiras, me colocar entre dois mundos, ou estar em dois mundos. O telefone era uma caixa de vozes mágicas. A caixa me trazia notícias sonoras como um rádio que se pudesse responder. O telefone tem essa magia de ser um eco com voz própria, por isso meu desconforto quando minha voz rebota do outro lado. Do outro lado, do outro lado, do outro lado.
O alô que ouço foi o alô que produzi, falo então comigo mesmo. Alô. Desta vez o que existe é o eco, e nada mais falacioso, que me torna falso a mim mesmo, me engana com a minha voz, me faz máquina também, a voz se torna um bumerangue de som, o estranho do outro lado, alô, de voz grave, o estranho sou eu. E aí ingresso num mundo onde a caixa tem a espessura do meu ouvido, e se me ouço, como quem pensa, fala consigo mesmo, o telefone passa a ser metáfora vivente, concreta, de plástico, curto-circuito, do bocal ao fone, então ingresso no mundo vicioso e perverso de mim mesmo.
Evitava o silêncio, pelo menos logo depois da morte de Lídia, mas a televisão e o telefone passavam a ser silêncios estentóricos. E como D. Benedita ligava o rádio, a casa também era invadida – logo D. Benedita com sua surdez – por vozes empostadas. A casa era tomada por vozes dubladas, que não nos ouviam, coro de desconhecidos, se todas aquelas vozes microfônicas ali fossem pessoas eu não poderia andar pela casa, lotada de algaravia. Aqui, com licença; ali, com licença.
            Não lavava louça nem varria a casa, andava descalço e o pé se sujava mais do que se andasse pela rua. Porcaria. A pilha de pratos engordurados se acumulava. Eu olhava para os pratos e os pratos mostravam minha inépcia, minha preguiça, minha solidão gorda.
            A permanente e surda penumbra passou a ser parte dos meus olhos. A casa, em vez de ser invadida por luz, era tomada pelo escuro. Ele vinha e se deitava nos móveis, o escuro era luz em negativo que se espalhava, tomava conta, irradiava seu nada e sua posição de oposto. Mas o escuro não me angustiava, ao contrário me dava a paz de um recanto onde o mundo não alcançava, nem mesmo a luz do sol.
            O sol, contudo, teimava em se instalar uma vez por semana. Diabo de rotina. Era quando vinha D. Benedita. Velha reclamona, metida a falar consigo mesma, hum, hum, de olhar torto, um olho mirando mais à esquerda e outro mais à direita, disformes e saltados, a infeliz estampa que me agoniava por não saber onde punha o alcance morboso de suas vistas sonolentas.
Não sabia em que cômodo ficar, escolhia o dia da semana em que teria de ausentar-me o dia inteiro, mas às vezes coincidíamos e eu me via acuado, incômodo em minha própria casa, quase pedia desculpas a D. Benedita por morar ali, ora que é isso, nhô sim, nhô não, outro tanto envergonhado de ela expor sem limite ou pudor a minha vida mais noturna e escondida.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

A peste em Vieira no Maranhão 2, RCF












            Os índios morriam tanto e com a rapidez de ave de rapina que não havia mais lugar em cemitério. Enterrava-se onde se podia. As notícias que chegavam do sertão davam conta de que se cavavam sepulturas com as próprias mãos, dada a quantidade de vítimas e a urgência de enterrar para não espargir o bicho nojento e mau da peste. 
      A cidade ficou vazia, as ruas mortas. O silêncio devastador só era quebrado por alguma ventania que assoviava nas palmeiras. O calor indigesto dominava o ar da ilha. O ar era tão denso que o suor gelatinoso pregava-se na pele. Ninguém respirava com desenvoltura e bondade, havia a sensação de que alguma porcaria vinha junto com a poeira e o ar quente que se infiltrava no pulmão. 
       Vieira mandou que os sinos da igreja da Nossa Senhora da Luz badalassem, além das horas, o horror da peste. Os quartéis se transformaram em lugar de higiene e hospedaria de moça. Limpo, arrumado, o chão varrido com os soldados, alferes e oficiais fora dos galpões para evitar que a peste, entrincheirada em frestas, desse o bote fatal.
         Omar Zahen pediu que Luciana Maquiné não o abandonasse nesses dias de peste. 
     – São tempos tenebrosos. Alá reclama seus direitos de posse e doutrina sobre os desmandos e devassidão dos costumes.
   Maquiné imaginou que a lengalenga muçulmana de Al Campelo fosse por causa da sua amizade de coito com o polidor de lentes Aloísio Matoso. 
       – Antonieta Albino foi fulminada pelas botelas e a febre corruptora.
        Ela continuava sem entender. Afinal de contas, Zahen lhe dera permissão para o amasio erótico para satisfazer seus líquidos inquietos. Ela mesma contara para Omar quem fora o escolhido. O mouro aprovara como quem aceita uma conta para pagar um tecido caro. Quando Maquiné saía com o busto mais levantado pelo corpinho, os braços saindo despudorados das mangas da camisa, os cabelos lavados, o sarraceno sabia que a mulher partia em busca do equilíbrio.