O
cárcere das almas
Esse aprisionamento do sujeito nos leva ao
conflituoso barroquismo. O barroquismo – e não o barroco – invade a poesia do
maranhense de forma reveladora. Não está, contudo, naquilo que críticos
chamaram em Lezama Lima (e outros autores da literatura hispano-americana) de
neobarroco: proliferação de palavras criando um arco semântico cujo centro não
se desloca. Na poesia de Nauro, há abundância de antíteses e acolhimento de paradoxos.
Uma poesia que apresenta claro e escuro, revela-se soturna, de uma
religiosidade pagã. A pura referência a Deus numa expressão poética não
constitui verdadeiramente uma atitude religiosa. Muitas vezes se configura apenas
uma figura retórica. A personalidade religiosa, entretanto, é um comportamento
mental cuja manifestação cristã, muçulmana, hindu são manifestações do
pensamento religioso. A religiosidade é uma expressão muito mais densa,
psicológica, comportamental e até mesmo sociológica. O barroquismo de Nauro é
diferente da expressão de um San Juan de la Cruz ou mesmo de um Vieira. Este
último se acerca de Nauro com sua exuberância retórica, seu desvelamento da
sociedade maranhense, a visão do esplendor, o descarnar da miséria humana. O
barroquismo de Nauro é multifacetado e profundamente existencial, angustiado em
sua expressão máxima, vivendo a dialética entre o Bem e o Mal, no exercício do
relato exaustivo das dores do homem.
O Deus de Nauro deve
ser incluído na esfera semântica da degradação. Assim como o corpo é sujo,
ausente, perverso e putrefato, o Deus de Nauro é degradado. Deus é perverso,
câncer, verbo mudo, perseguidor, em vez de salvar mais afunda o pecador, em
lugar de ascender degrada o ser que a ele se dirigiu (“Caí comigo num bueiro /
aberto alhures pelas mãos de um Deus / que sequer existe...” [1174]). Deus se
mescla à derrota e à perdição da carne (o câncer) e a devassidão do espírito (a
miséria de ser).
Deus e verbo se confundem. O verbo é a criação do
mundo, de si, da consciência. A mudez é a impossibilidade de criar o mundo. Neste
paradoxo se ancora a poesia de Nauro que desconfia de sua verbalização, sem
contudo negar sua densa poesia. O poeta tem consciência de que sua expressão
poética é forte e pertinente, disso não duvida. Duvida, sim, do verbo divino,
do verbo usual e que serve de intercâmbio social, do verbo que nada diz, da verborragia
do mundo contemporâneo.
A obra revela uma profunda nadificação do eu, em que o poeta descrê de uma possibilidade de construção
de uma imagem de si que não seja cindida. Já não se sabe se eu e mim
são propriamente sujeito e receptor da ação, mas ambos se mesclam à gramática
da angústia e da dissolução. O mim
passa a ser eu e o eu se mostra a múltipla e indistinta percepção
fragmentada e não se resume a apenas uma clivagem, mas a difusa emanação do
nada que pode muito bem agora ser aprisionado ou colocado na centrifugação do cognoscere. O objeto mim também é emanação de significado e
contribui para a fragmentação do eu, de sua nadificação,
um nada que não representa vazio, mas o preenchimento de uma totalidade
anulada, uma busca em vão, um local de acolhimento do multiforme, dissidentes
permanências do conflito existencial.
Aqui tudo se derrui, esgarçam-se memória, corpo,
infância, luz ou manhã. O futuro, densa neblina, ofusca e diminui matéria e
espírito, já de há muito corroído pelo verme da desesperança, o forte e
vertical punhal do niilismo a rasgar a carne inglória de um entusiasmo pela
vida que nunca se soergueu porque nunca chegou a ser elevado.
Nauro também trabalha com o dualismo que perpassa a
nossa cultura cristã: ser ou não ser. Esse dualismo em Nauro se mostra na concepção
bipartida de si, de Deus (amoroso x ominimioso) e da dupla pai e mãe, entre
outros confrontos essenciais ou fundadores. Apresenta assim a duplicidade do eu
em confronto com a multiplicidade da personalidade que não cabe em apenas duas
manifestações da psicologia. Quase sempre há a ideia perturbadora de uma
anulação do outro, ou ainda um outro que se anula, ou uma subjetividade que se
deixa anular. “Vive um filho a matar seus próprios pais” (1170) mostra o
mecanismo de tentativa de sufocar a criação e as forças contrárias que
interagem para conter o processo de germinação, seja existencial, seja poético.
Nauro pertence à categoria dos poetas metafísicos como
Gregório de Matos, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Jorge de Lima. Embora não
tenhamos na história crítica de literatura brasileira um movimento com este
nome ou ao menos uma linhagem explícita, gostaria de ver Nauro inserido num
comportamento estético que alça nossa literatura além do espectro da realidade
imediata. Coloquei o título deste artigo de O
cárcere das almas, título de poema de Cruz e Souza, justamente para apontar
a angústia de estar prisioneiro de si mesmo. Uma poesia que se constrói para se
desconstruir, uma poesia ontológica e a impossível fuga de si mesmo que
atormenta a persona poética como se
outro fora. O inferno não são outros, ou melhor, o inferno são os outros eus que configuram a derrota do sujeito
empírico e do sujeito do enunciado poético.
Eu diria que com
este O baldio som de Deus, Nauro
Machado constrói um só longo poema, não apenas pelo tom uníssono, mas também
pelo conteúdo uniforme. O leitor está diante de um magnífico poema escrito por
um dos maiores poetas brasileiros.
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2016)
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2016)