sábado, 16 de março de 2024

Os anjos, poema

 


 


 

 

 

 

Os anjos pertencem

à espécie das aves

ou ao gênero humano?

São seres voadores

ou animais bípedes?

Se são espíritos,

então por que aparecem

pairando como beija-flores?

São várias

as espécies de anjo,

como são várias

as espécies de ave.

 

Pode um anjo ser maior

do que seu protegido?

O anjo da guarda

das crianças

são anjos pequenos?

Um anjo pode caber no bolso,

pode ter o tamanho

de um pardal?

A Bíblia fala em doze anjos

e os classifica.

Não quero saber

da lista fabulosa

dos anjos da Bíblia,

com seis asas,

outros com duas cabeças,

uns reduzidos

e outros um pouco maior

que um homem,

pecador e ordinário.

 

Trago comigo meu anjo

e sei quando se alvoroça,

mexendo as asas,

inquieto, meu anjo

não me protege dos outros,

dos homens maus

e cobiçosos,

mas de mim mesmo, quando

me encontro nervoso e febril,

tomado por outro anjo,

este decaído, mundano

e infernal.

Ora pertence

aos escândalos da carne,

ora me perdoa ser débil, 

de me servir da gula

do mundo

e das delícias da vida.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Tambores, poema de Matadouro de vozes

 


 




 Que tombos ouço

que bumbam o boi?

 

O chapéu de penas

flutua o matadouro.

 

O boi de duas pernas

zabumba

o pasto do patrão.

 

As lantejoulas polvilham

estrelas na noite mais áspera.

 

Dançam as palmeiras

com seus braços embriagados

de matracas e surdos.

 

quarta-feira, 13 de março de 2024

Doador de tempo, poema RCF












 
Sou doador de tempo.
Uma vez ao ano, estiro o braço
e de mim colhem tempo.
O coração o bombeia
e sinto o tempo subir à cabeça.
Mas quase sempre
entre a nodosa manhã
e o início serpenteante da noite,
mantenho o tempo frio.
Meu tempo segue seu labirinto
que pensa antes apresá-lo no corpo
quando na verdade por ele é prisioneiro.
Meço a pressão:
alta realidade.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

segunda-feira, 11 de março de 2024

O avesso da trama, poema 2024

 

 

 


 

 

 

Fico me perguntando

se o que existe

é o avesso da trama

ou a trama do avesso.

Se o primeiro caso,

o avesso da trama,

se apresenta,

logo me inquieta

ver o que não vejo.

Se o segundo for verdadeiro,

então o que se percebe

são as coisas inversas

como os olhos

que veem de cabeça para baixo.

A vida de cabeça para baixo

é muito difícil,

por isso os mesmos olhos

corrigem e aquilo

que estava de ponta-cabeça

logo fica em pé.

Quando se percebe

que o que vivemos

é algo despropositado

estamos no campo do avesso.

E viver no avesso

é muito complicado

porque tudo é escuso,

difuso e diz por silêncio

o que não se pode pronunciar.

Não sei se minha vida

é o avesso da trama

que pensei em construir,

tampouco sei se o que vivo

é algo de cabeça para baixo

que meus olhos

não conseguem colocar em pé.