sábado, 10 de agosto de 2024

Habitação e melancolia, poema

 

 

 


 

 

Habito o quarto

dos fundos da memória.

É lá que guardo

meus hábitos mais antigos.

Sei em que caixa

alugo os romances

que me inquilinavam o corpo.

Num álbum de fotografias

– quando existiam álbuns de fotografia –

estão colados os dias felizes.

Todos estão jovens,

os pais e os avós,

que agora vivem mortos.

Não há nostalgia

– essa doença da saudade –

apenas a constatação

de que estou em fotos

no celular dos filhos,

uma imagem

sem paredes para sustentá-la.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Um homem é muito pouco, trecho 2





Resultado de imagem para um homem é muito pouco






    Uma das frases que Clemente mais gostava era “não era ruim, mas também não era bom”. Clemente a usava para tudo que era indistinto, consumido pelo tempo, estéril ou indiferente. Pois bem, o macarrão do restaurante do hotel não era bom, mas também não era mau. Neste exato momento, sem que Clemente percebesse a carta deslizou bolso afora e, gravitando, caiu entre o lambri que soltou e a parede. Clemente, ocupado com sua fome que subitamente retornara, não percebeu que a carta perdera seu peso. E, com seu peso normal de papel, pôde ela esgueirar-se do bolso sem que o pretenso dono se precatasse da fuga. Mateus e Clemente pela primeira vez conversaram sobre amenidades, Clemente contou uma história longa e divertida de um clandestino.
    Era um angolano, um rapaz, que Clemente pegara roubando comida. Não tinha se alimentado durante três dias e estava numa condição abaixo do animal. Assustou-se quando viu Clemente. Ficou, contudo, mais preocupado com o pedaço de pão e salame que tinha nas mãos e não queria perder do que ser descoberto e levado ao comandante. Ele, o clandestino, defenderia até a morte seu direito de comer. Pegou uma faca de cozinha e ameaçou Clemente. Este riu, mostrou mais comida e disse que não se preocupasse que não iria delatá-lo. Os olhos do menino negro eram olhos inteligentes e Clemente acobertou o angolano que desceu no cais da Praça Mauá, estudou, casou e hoje é advogado com banca e tudo. Clemente ficou pensando que o pior clandestino não era aquele angolano faminto, o pior clandestino é o sujeito que anda pela vida como se não pertencesse a embarcação nenhuma. Ele, Clemente, se achava clandestino, talvez por isso a solidariedade imediata e reta. Onde quer que estivesse Clemente se sentia invasor, não permitido, escondido, sujeito que pode ser expulso a qualquer momento da embarcação, dos lugares, dos restaurantes, dos hotéis, da rua mesmo. Esse sentimento de clandestinidade poucas vezes desaparecia. O que mais doía, entretanto, era sentir-se clandestino em sua própria casa.
    Depois do almoço, ambos retornaram às suas casas. Clemente, cansado de tanta agitação, deitou-se na cama, com roupa e tudo e adormeceu. Dormiu como se fosse noite, um sono árduo.
Clemente entrou na cozinha no navio ao perceber a luz acesa. Lá estavam em volta da mesa o capitão Vaz, Selma, Oswaldo e Mateus. Oswaldo, como o companheiro marinheiro lá dele, vestia-se de mulher, o capitão Vaz não tinha os braços e reclamava: Por favor, Clemente, não faça isso comigo. Selma parecia mais uma prostituta dos portos em que o navio parava e não falava em língua humana, mas na língua suína que é a língua dos porcos. Selma tinha focinho, a boca pequena, o corpo gordo e único de porca. Só Mateus não havia se transformado. Era o velho Mateus de sempre. Anos antes, num porto sujo e pobre da Ásia, com poucos guindastes e sem armazéns, Clemente vira porcos comerem um miserável. Nunca imaginara que os porcos poderiam comer um ser humano e, muito menos, que um ser humano se deixasse comer por porcos. Mas o homem era velho e fraco, um fiapo asiático de homem e os donos dos porcos, também famintos, açulavam seus porcos a se alimentarem de carne humana. Serviu os pratos e nos pratos estavam os braços do capitão Vaz que chorava, enquanto Mateus, o travesti Oswaldo Lee Oswald e a porca Selma devoravam os braços do capitão Vaz. Um baque surdo contra madeira o despertou.
    Entre o sono e a vigília, sem se dar conta ainda de onde estava, se no quarto de sua casa ou na copa da cozinha do navio, Clemente se perguntava se encontraria com o capitão Vaz aleijado, a porca Selma e Lee Oswald mulher. Ainda mal despertava quando então escutou o segundo baque. Percebeu, não desfazendo ainda por completo a alucinação do sonho, que estava na Praça 11 e aquele barulho poderia ser de alguém a invadir a casa. Levantou-se. Sentia-se tonto. Voltou-lhe o balançar de nave. O sentimento de aprisionamento caiu-lhe fundo na alma com a decisão e o peso de âncora lançada n’água. Entrou corredor adentro a procurar a fonte do ruído. Vinha da cozinha. Conhecia aquele estrépito: o esquartejamento das aves e carnes. A quem esquartejavam?
    Era d. Evelina que, com um cutelo, partia o frango. À primeira vista, lembrou-lhe um elemento a mais do pesadelo. D. Evelina era baixa e gorda, com vincos profundos no rosto, cortando a pele escamosa, que mais lembrava terem sido feitos a talho do que pela erosão da idade. Tinha mãos pequenas, mas fortes, nunca pedira a Clemente que lhe abrisse pote, nem recusara o peso de uma estante. As pernas grossas, de veias escuras serpenteando canela acima, davam-lhe o aspecto de precária estrutura, embora firmemente fixada ao chão. Os olhos saltados e as narinas de fole aberto punham fúria onde só havia humildade. A empregada se espantou ao ver o patrão entrar. Ele, ainda prisioneiro do medo, tinha o rosto sem sangue, as mãos poucas, as pernas sem apoio. Mas foi o olhar de náufrago o que assustou a empregada. De cutelo na mão, ela avançou para Clemente no intuito de socorrê-lo. Se ao menos ouvisse o que ela dizia, seu Clemente, o senhor está pálido, está doente, quer ajuda, chamo alguém, médico ou ambulância? talvez não sofresse o pânico de ver sua empregada, como no pesadelo, investir para ele a fim de matá-lo.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Desemprego das horas, poema

 


 


 

 

 

Emprego meus dias

no desemprego das horas.

Há muito de fabril

em meus escritos.

Chegará o dia

em que desempregarei meu corpo.

O relógio de ponto

do meu coração

marca o emprego das vontades.

Meus temores estão de férias.

Caminho o expediente

da alegria

cujo salário é bonançoso.

Tenho o trabalho

das palavras

que é minha profissão de fé.

 

 

 

 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Romance recria a vida do padre António Vieira na ilha de São Luiz do Maranhão


“Vieira na Ilha do Maranhão” é o mais novo clássico da literatura brasileira. A história deve redundar num belo filme de época
Wil Prado
Especial para o Jornal Opção
Se você vai ler esse livro agora, quero adverti-lo. Antes de fazê-lo, consulte sua agenda e certifique-se de que não tem nada urgente. Sim, meu amigo ou amiga, porque depois de ler o primeiro parágrafo você não vai mais conseguir largá-lo.
Começo por ressaltar que este é um romance absolutamente original, não conheço nada parecido na literatura brasileira ou estrangeira. Seu parente mais próximo seria, talvez, “Viva o Povo Brasileiro”. E não posso deixar de imaginar que, a exemplo do que João Ubaldo Ribeiro fez com a Bahia, com “Vieira na Ilha do Maranhão” Ronaldo Costa Fernandes também recriou uma importante página da história colonial do seu Estado.
Pesquisador perito e minudente, Ronaldo Fernandes escarafuncha um dos mais fecundos períodos da história — maranhense e brasileira —, os sete anos da estada do padre António Vieira (1608-1697) em São Luís. O jesuíta é, naturalmente, o protagonista do romance, que encontra, na ilha, uma sociedade moralista, mas ao mesmo tempo permissiva, que se divide entre as missas e os cabarés, os altares religiosos e as camas de adultério.
Como um títere, o autor manipula seus cordéis e dá vida a uma imensa galeria de tipos os mais pitorescos e exóticos imagináveis. Gordilho, o sapateiro profeta e sua filha Luísa, com uma cabeça enorme, presa a uma espécie de gaiola de ferro, para evitar o crescimento. Arduíno da Babel, o falso poliglota que passa a vida construindo uma torre para falar com Deus, ainda que não saiba ao menos qual o idioma divino. O padeiro que alimenta visões apavorantes de seres metade homem, metade animal. A interiorana pobre, mas robusta, que, mesmo em meio à fome trazida pela peste da bexiga negra, alimenta o filho e o marido com o único recurso que dispõe: o leite dos seus próprios peitos. Mariana, a menina-mulher que, sem ter relações com o marido, um dia pariu um rato.
Mas também ressaltam as fortes personagens femininas, como a bela viúva Ana Jacomé, a despertar a libido nos homens mesmo nos trajes discretos com que frequenta as missas.  Ou a filha do porqueiro, a ninfomaníaca Ritinha.
Mas todos os personagens, como satélites em volta de um sol, procuram o jesuíta para se aconselharem, se queixarem ou protestarem contra os desmandos da coroa, do governador ou do vizinho usurpador. E Vieira, sempre solícito e mediador, vai distribuindo bênçãos e conselhos.
Ronaldo Costa Fernandes: escritor | Foto: Isabela Fernandes
O autor — “ampassã”— reproduz alguns trechos dos famosos Sermões de Vieira, com suas metáforas poderosas, suas terríveis ameaças ao fogo dos infernos, mas que, ao final, sempre abrindo uma porta de salvação para os que, largando a vida do pecado, se arrependam a tempo de serem acolhidos aos braços do Salvador.
Mas nem tudo são fores nessa passagem do jesuíta. Ronaldo Fernandes também flagra um Vieira contraditório, pois, ao mesmo tempo em que conclama os nobres da terra a soltar as “ataduras da injustiça” e deixar “ir livre os cativos e oprimidos”, referindo-se aos índios colonizados, como fez no sermão da Primeira da Primeira Dominga da Quaresma, sugere aos poderosos a aquisição de escravos negros, que, para ele, seria até uma forma de libertá-los de suas hereges práticas religiosas na incivilizada e perdida África.
Romance bem estruturado e de largo fôlego, perpassa por suas páginas um sopro de sensualidade tropical, fomentado, talvez, pelo clima quente e úmido da Ilha Maldita, como a ela se referem alguns personagens. E, com efeito, o cheiro inebriante de sexo está sempre no ar, como uma flor prestes a espocar. E todo esse erotismo latente é descrito numa linguagem viva e despojada, como a dos seus próprios personagens embriagados nos puteiros da Ilha durante toda a passagem da peste.
Não tenho, pois, qualquer dúvida de que estou diante do mais novo clássico da literatura brasileira. E mais. Sem querer dar uma de profeta-de-esquina — aliás muito em moda nesses tempos em que falsos gurus alardeiam que a terra é plana — diria que essa história qualquer dia ainda vai redundar num belo filme de época.
Wil Prado, escritor, publicou “Sob as Sombras da Agonia” (Chiado).

domingo, 4 de agosto de 2024

O susto e o redemoinho, poema

 


 




 

 

 

 

Um susto redemoinha meus dias,

uma correnteza carrega meus pés

num chão de água.

Sou uma cabeça que ora boia,

ora submerge aos tropeços.

Ando numa ciranda de águas.

A profundidade das calçadas

ameaça minhas margens.

Minhas pernas flutuam o acaso,

que é sempre súbito

e enforca meus dias.

Tento colocar a cabeça para fora

nessa ressaca de lutos.

Complicado se equilibrar

num meio fio.