“Vieira na Ilha do Maranhão” é o mais novo clássico da literatura brasileira. A história deve redundar num belo filme de época
Wil Prado
Especial para o Jornal Opção
Se você vai ler esse livro agora, quero adverti-lo. Antes de fazê-lo, consulte sua agenda e certifique-se de que não tem nada urgente. Sim, meu amigo ou amiga, porque depois de ler o primeiro parágrafo você não vai mais conseguir largá-lo.
Começo por ressaltar que este é um romance absolutamente original, não conheço nada parecido na literatura brasileira ou estrangeira. Seu parente mais próximo seria, talvez, “Viva o Povo Brasileiro”. E não posso deixar de imaginar que, a exemplo do que João Ubaldo Ribeiro fez com a Bahia, com “Vieira na Ilha do Maranhão” Ronaldo Costa Fernandes também recriou uma importante página da história colonial do seu Estado.
Pesquisador perito e minudente, Ronaldo Fernandes escarafuncha um dos mais fecundos períodos da história — maranhense e brasileira —, os sete anos da estada do padre António Vieira (1608-1697) em São Luís. O jesuíta é, naturalmente, o protagonista do romance, que encontra, na ilha, uma sociedade moralista, mas ao mesmo tempo permissiva, que se divide entre as missas e os cabarés, os altares religiosos e as camas de adultério.
Como um títere, o autor manipula seus cordéis e dá vida a uma imensa galeria de tipos os mais pitorescos e exóticos imagináveis. Gordilho, o sapateiro profeta e sua filha Luísa, com uma cabeça enorme, presa a uma espécie de gaiola de ferro, para evitar o crescimento. Arduíno da Babel, o falso poliglota que passa a vida construindo uma torre para falar com Deus, ainda que não saiba ao menos qual o idioma divino. O padeiro que alimenta visões apavorantes de seres metade homem, metade animal. A interiorana pobre, mas robusta, que, mesmo em meio à fome trazida pela peste da bexiga negra, alimenta o filho e o marido com o único recurso que dispõe: o leite dos seus próprios peitos. Mariana, a menina-mulher que, sem ter relações com o marido, um dia pariu um rato.
Mas também ressaltam as fortes personagens femininas, como a bela viúva Ana Jacomé, a despertar a libido nos homens mesmo nos trajes discretos com que frequenta as missas. Ou a filha do porqueiro, a ninfomaníaca Ritinha.
Mas todos os personagens, como satélites em volta de um sol, procuram o jesuíta para se aconselharem, se queixarem ou protestarem contra os desmandos da coroa, do governador ou do vizinho usurpador. E Vieira, sempre solícito e mediador, vai distribuindo bênçãos e conselhos.
Ronaldo Costa Fernandes: escritor | Foto: Isabela Fernandes
O autor — “ampassã”— reproduz alguns trechos dos famosos Sermões de Vieira, com suas metáforas poderosas, suas terríveis ameaças ao fogo dos infernos, mas que, ao final, sempre abrindo uma porta de salvação para os que, largando a vida do pecado, se arrependam a tempo de serem acolhidos aos braços do Salvador.
Mas nem tudo são fores nessa passagem do jesuíta. Ronaldo Fernandes também flagra um Vieira contraditório, pois, ao mesmo tempo em que conclama os nobres da terra a soltar as “ataduras da injustiça” e deixar “ir livre os cativos e oprimidos”, referindo-se aos índios colonizados, como fez no sermão da Primeira da Primeira Dominga da Quaresma, sugere aos poderosos a aquisição de escravos negros, que, para ele, seria até uma forma de libertá-los de suas hereges práticas religiosas na incivilizada e perdida África.
Romance bem estruturado e de largo fôlego, perpassa por suas páginas um sopro de sensualidade tropical, fomentado, talvez, pelo clima quente e úmido da Ilha Maldita, como a ela se referem alguns personagens. E, com efeito, o cheiro inebriante de sexo está sempre no ar, como uma flor prestes a espocar. E todo esse erotismo latente é descrito numa linguagem viva e despojada, como a dos seus próprios personagens embriagados nos puteiros da Ilha durante toda a passagem da peste.
Não tenho, pois, qualquer dúvida de que estou diante do mais novo clássico da literatura brasileira. E mais. Sem querer dar uma de profeta-de-esquina — aliás muito em moda nesses tempos em que falsos gurus alardeiam que a terra é plana — diria que essa história qualquer dia ainda vai redundar num belo filme de época.
Wil Prado, escritor, publicou “Sob as Sombras da Agonia” (Chiado).