sexta-feira, 19 de junho de 2020

Um homem é muito pouco 34


          
     

 O carro deslizava em silêncio pela estrada pouco movimentada. O tempo abafado dava água à pele. Eu ia perdendo Alice cada vez que me afastava de Búzios. Alice foi a mulher mais búzio que encontrei em minha vida. Sempre que penso em Búzios ou escuto o nome da cidade a figura de Alice me aparece, dourada e múltipla, cabelo molhado, flor do sexo à mostra, a fruta dos mamilos madura e empinada. Alice me deixou em casa e desapareceu.




            Por uma semana não vi Alice. Eu andava marítimo e seco, aquático e vazio, pelas ruas de Copacabana e Alice não estava nos cinemas, nos bares e muito menos em minha casa ou no bar do Vicentino. Quem me perseguia agora era eu mesmo, por isso não queria ir para casa que ainda tinha o cheiro de Alice. As paredes estavam contaminadas de Alice, a cama gemia como Alice, os corredores se estreitavam como Alice, as janelas respiravam como Alice. Eu era perseguidor feroz e maldito, que não me dava descanso, que me levava aonde ia, que sabia onde estava, queria enlouquecer porque se enlouquecesse eu não me perseguiria mais. Me encontraria comigo e não saberia quem eu era e muito menos quem era Alice. E assim livre, de mim e de Alice, poderia ir ao cinema. Louco, até o tempo pararia de me atormentar e, quem sabe, poderia deixar de funcionar como relógio que deixou de ser dado corda.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Balada das horas, poema RCF





Não leu todos os livros,
nem considera a carne triste.
O corpo tem três desertos:
a areia dos sonhos desfeitos,
as pedras que machucam a vontade,
e o silêncio dos barulhos mecânicos.

O exótico pássaro do medo
procria deformidades
como máquinas defeituosas.
Sobreviverá a seus escombros,
nenhuma catástrofe é maior
que acordar a beleza.
Cansou de ser seu vizinho,
precisa se cercar dos outros
para não ser um terreno baldio,
sair do condomínio das tristezas
que se reúnem para votar em branco.

O conta-gotas das lágrimas
serve como poço
que nunca enche, nem esvazia.
É eternamente dor constante
como relógio que dê sempre
a hora inexistente, a hora zero,
a hora morta, a hora desfeita.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)




(foto: vivan mayer)