Um escritor entre cruzes e espadas da Inquisição
Um dos maiores escritores universais em língua portuguesa, o jesuíta Antônio Vieira, foi presa de três dons: primeiro, de sua vocação inegável para ser o artista da palavra que melhor expressou o barroco entre nós e, em conseqüência, sua inteligência e sua argumentação apuradas o levaram a um jogo dialético que, em época de unilateralismos, foi danoso; segundo, porque mostrava inegável vocação para a vida prática e política, para os assuntos mundanos, os cortesãos e os diplomáticos e, terceiro, porque, contraditoriamente, tinha veia mística e herdara um messianismo que bebera em fontes populares e o levou a medir forças com a Inquisição.
Ficasse o pregador com sua magistral oratória a encantar platéia com seus jogos de palavras, seus oxímoros, seu paralelismo, sua verve imaginativa e suas metáforas desabusadas que incomodaria inquisidores e colonos maranhenses, mas não o levaria ao Tribunal do Santo Ofício. Mesmo que criticasse o orador dominicano no “Sermão da Sexagésima”, justamente o sermão que faz sua profissão de fé e apresenta sua concepção não só do ato de pregar como também de sua estética, Vieira não iria parar nas prisões em que os conventos que o acolheram se transformaram.
Foi seu último dom e empenho que o levaram a sentar-se na frente dos inquisidores que, sabendo de suas qualidades oratórias, dialéticas e cultas, prepararam-se como se fossem enfrentar o próprio diabo. Mas um diabo erudito que citava Sêneca, lera os clássicos e fazia sua platéia não perder uma só palavra com o prejuízo de ser vítima de seu verbo e sua finíssima ironia.
A formação de Viera traz em si uma contradição que, nos Sermões, lhe servirá de modelo oratório (e de arte literária), mas que na vida prática irá prejudicá-lo. Embora o ensino jesuítico e a hierarquia da Ordem fossem rígidos, emulavam o pensamento dialético. Como pregador foi-lhe útil. Como político e homem do mundo, trouxe-lhe problemas.
A luta desigual entre a dialética de Vieira e os argumentos dos inquisidores, também feitos com argúcia e até amparados por consultas a livros que eram vedadas ao acusado, não desanimava o pregador. Chega-se a um ponto que parecia não haver apenas uma disputa entre a vítima e o Tribunal do Santo Ofício, mas uma discussão teológica, de fundo intelectual. Abatido fisicamente e sem poder demover a intolerância dos seus algozes como Fr. Filipe da Rocha e Alexandre da Silva, Vieira, por fim, em 19 de agosto de 1667, declara “sujeitar-se com toda a lisura e sinceridade às sobreditas censuras do Santo Ofício.” Condenam-no, a 23 de dezembro do mesmo ano, à “perda da voz ativa e passiva”, além da proibição de pregar e marcar-lhe residência em colégio dos jesuítas onde decidisse o Santo Ofício. Para um orador como Vieira talvez a condenação ao silêncio fosse um castigo por demais severo.
A aventura palaciana e a desgraça de Vieira parecem ter começado quando D. João IV vem a conhecê-lo. Vieira acompanha D. Fernando Mascarenhas, que ia a Lisboa dar felicitações pela ascensão do rei em nome do governador da Bahia. No dia 1 de janeiro de 1642, Vieira prega pela primeira vez na capela real. O rei, impressionado por sua oratória, passa a estimá-lo. Vieira terá acesso livre ao paço assim como participará de audiências do rei com seus ministros e, muitas vezes, dará parecer escrito sobre negócios de Estado. A ingerência nos assuntos do trono chegou a incomodar os próprios jesuítas. Teria D. João IV proposto fazê-lo bispo, intenção recusada por Vieira que tinha apego a sua congregação.
O poder de Vieira e de influência sobre D. João IV pode ser notado pelo fato de o rei fazê-lo seu representante e, desta maneira, enviá-lo à França e à Holanda, em 1646, em missão não de jesuíta, mas de corpo diplomático. Vieira chega a encontrar-se com o poderoso cardeal Mazarino e com ele manter discordância, já que o francês queria casar Dom Teodósio, de quem Viera era preceptor, com a francesa Mademoiselle de Lougueville. Sua missão na Holanda é contraditória, pois Vieira irá defender uma confusa cessão de Pernambuco para os holandeses, sem medir o poder de fogo do combatente luso-brasileiro. Outras missões de Vieira, como a ida a Nápoles, foram desastrosas. Sua vida de diplomata não é das mais exitosas e muitas das ações e propostas que encetou deram num resultado duvidoso quando não, podemos afirmar, inflamava paixões contra Portugal quando deveria torná-las borralho ou espargir as cinzas. Vieira tornou-se mestre em intrigas palacianas, desagradando seu protetor D. João IV, ao enviar uma carta ao filho desse, D. Teodósio, que tomara uma atitude hostil ao pai. O jeito encontrado foi enviar Vieira para o Maranhão a fim de aliviar as tensões que não eram poucas e tirá-lo do alcance dos seus inimigos que também era em número superlativo.
Em novembro de 1659, Vieira retorna a Lisboa e encontra o rei adoentado. Pede-lhe que o ajudasse em sua missão de catequese e defesa dos índios e, conseguindo o seu intento, retorna ao Maranhão. Criam-se as missões que Vieira planteava para a região Norte e Nordeste. Em 1661, os portugueses reagem às ações dos jesuítas e Vieira, junto com outros, é expulso para Portugal. Chegando a Lisboa, depois de quatro anos da morte do monarca que fora seu protetor, D. João IV, Vieira não cai nas graças do sucessor, o devasso D. Afonso. Vieira passa a vivenciar agora uma atividade antes política que religiosa. O conde de Castelo Melhor é conselheiro de D. Afonso VI e, temendo a influência que Vieira tinha na corte, não só o intriga com o novo rei como também o desterra no Porto e, mais tarde, em 1663 para Coimbra. Desamparado, igualado aos conspiradores que planejam a vitória de D. Pedro contra o irmão, Vieira é agora presa fácil da Inquisição, que há muito o vinha cercando.
Ora, D. João IV seria, nas interpretações que Vieira fizera das profecias do Bandarra, justamente o rei do Quinto Império. Portugal seria o Quinto Império, já que houvera os quatros anteriores: o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano. O documento maior que a Inquisição tem para abrir processo contra Vieira é a carta, datada de 1659, que ele enviara à viúva de D. João IV, D. Luísa, consolando-a. Antes, de volta a São Luís, em 1652, pregara que D. João IV, à maneira de D. Sebastião, retornaria ressuscitado. Na citada carta, reafirma as profecias.
A Inquisição, de posse da carta, depois de solicitar uma cópia ao Bispo do Japão, entre várias que já circulavam, ainda demora a convocar Vieira. O Marquês de Marialva e a própria Rainha intervieram para que o pregador não fosse chamado. Vieira não tem mais sustentação na Corte. Em fevereiro de 1663, por fim instaura-se o processo contra o pregador.
Vieira, enfraquecido por uma suposta tuberculose e uma herança americana da malária, sucumbe à Santa Inquisição. As sangrias não lhe fazem mais efeito. Mas, embora debilitado fisicamente, o ardor espiritual, a crença nas profecias e gosto pelo embate de idéias robustecem a mente de um corpo enfermo. O processo dura de 1663 a 1667, sendo que, em 1665, é preso e mantido na Quinta do Cano, em Vila França. Não deixa, contudo, de corresponder-se com autoridades em busca de sua libertação.
Em seu acurado prefácio à Representação, de Vieira, introdução esta escrita em Salvador, em 1957, a pedido da Universidade da Bahia, Hernani Cidade enumera as nove proposições enviadas ao Santo Ofício de Roma a fim que fossem examinadas e de lá voltaram todas negadas:
A 1ª, que afirma a futura existência do Quinto Império – estranha ao consenso geral dos Católicos, que tomam tal império como o do Anti-Cristo; a 2ª, que anuncia que o Império Romano – o IVº do Mundo, que ainda se continua na Casa da Áustria – será destituído pelo Quinto Império – errónea , ofensiva dos ouvidos piedosos e com sabor a heresia; a 4ª, que inculca as suas Trovas como verificadas nos sucessos livres e contingentes – temerária e fátua; a 5ª, a que considera não só como demonstrável pelo discurso, senão também como derivada da própria Fé, a verdade de tais profecias, não é apenas errónea: tem sabor a heresia; temerária a 6ª, que afirma a futura ressurreição de D. João IV; igualmente temerária e ainda ofensiva dos ouvidos piedosos a 7ª, que tem como critério de conhecimento do escrito profético a verificação em sucessos do profetizado, independentemente de erros doutrinários do profeta; errónea, injuriosa para os Santos Padres, para a Sagrada Escritura e para a Igreja a 8ª, que atribui ao Imperador do Quinto Império a graça da conversão universal dos Judeos, Gentios e Hereges; e finalmente, como sacrílega e injuriosa para a Igreja a 9ª, que admite a incorporação nela das doze tribus hebraicas desaparecidas.
O antissemitismo grassava, enquanto Vieira defendia os judeus do ponto de vista econômico, aproveitando seus investimentos e suas riquezas para financiar seu projeto das Companhias das Índias Ocidentais. A figura do cristão-novo era muito perturbadora, porque acreditavam os inquisidores que a conversão era superficial e que muitos judeus continuavam a praticar sua religião às escondidas. O imaginário cristão da época, que acusava Cristo de ser morto pelos judeus, esquece que o próprio Cristo era um membro da comunidade da mesma etnia semita.
Hernani Cidade, ainda no mesmo prefácio à edição de 1957 da Representação, lembra um fato psicológico precioso. Diz ele: “Até que ponto a sua formação moral na Bahia, longe das lições de fanatismo dos espetáculos dos autos-de-fé, preservou Vieira contra as infiltrações do ódio anti-semítico?” E mesmo de volta a Portugal, logo Vieira viaja por países mais liberais quanto aos judeus. Logo, não é de estranhar que Viera produza o documento Proposta feita a El rei D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que andavam por diversas partes da Europa.
Vieira alertava:
“Todos estes (Judeus portugueses espalhados pelo Mundo) pelo amor que têm a Portugal, como pátria sua, e a Vossa Majestade, como seu rei natural, estão desejosos de poderem tornar para o Reino e servirem a Vossa Majestade com suas fazendas, como fazem aos reis estranhos. Se Vossa Majestade for servido de os favorecer e chamar, será Lisboa o maior império de riquezas e crescerá brevìssimamente todo Reino a grandíssima opulência e se seguirão infinitas comodidades a Portugal, juntas com a primeira e principal de todas, que é a sua conversão”
A proposta de isenção do fisco proposta por Vieira irritava também a Inquisição, já que esta era uma fonte de ingressos da instituição. As vítimas da Inquisição tinham seus bens confiscados, mesmo quando ainda não tinham chegado ao final condenatório.
Mas quem era o Bandarra, que Vieira tanto acolhia e pugnava por suas profecias? Bandarra era um humilde sapateiro que morou em outro tempo num povoado da Beira de nome Trancoso. Seus versos estão imbuídos de messianismo. São trovas proféticas que, mesmo não realizadas, Vieira fez questão de atualizá-las e reinterpretá-las. Bandarra, como bom português e sebastianista, aponta a vinda do messias que era o rei jovem D. Sebastião. Profecia tão arraigada na cultura portuguesa que atravessou o oceano e no século vinte ainda era crível no Maranhão. O Quinto Império duraria mil anos e só terminaria com o dia do Juízo Final.
O Bandarra era bem conhecido e até mesmo aceito pelo povo culto e não culto. Hernâni Cidade lembra que as Trovas do Bandarra tinham sido oferecidas ao Bispo da Guarda, “a quem naquele, pertencia totalmente o exame da verdadeira ou falsa doutrina” – lembra Vieira na Representação. Aprendiam a ler por elas os meninos das escolas, principalmente na Beira – informa ele ainda. E é vasta – e alta – a audiência que as conhece, as propaga – e acredita. Vieira afirma na Representação que nela figuram bispos, arcebispos, inquisidores, provinciais e gerais das Religiões...” Todos em número em número, antes dos sobreditos sucessos (os que ele entendia terem realizado a profecia) liam e estimavam as Trovas do Bandarra, não pela bondade dos versos, senão pelas suas predições.”
Para Alfredo Bosi, em sua introdução ao livro Profecia e Inquisição, também editado pelo Conselho Editorial do Senado Federal, o Quinto Império de que Viera fala pode ser interpretado numa linha de raciocínio que seria esta:
Virá e está próximo o Reino já anunciado pelos profetas, embora difícil de prever pelo vasto mar dos futuros, entre nuvens e cerrações das Escrituras proféticas. Este reino será o Quinto Império do mundo porque sucederá aos quatro já conhecidos: o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano. A profecia que tudo sustém é que fez Daniel ao interpretar o sonho de Nabucodonosor. O Quinto Império será Império e Reino da terra, ou na terra. Diz o profeta que a pedra que derrubou a estátua enche a terra inteira (Dan 2, 35). O Quinto Império começará na era de 666 (1666), número que figura no Apocalipse de João (Jô 13, 18). Estender-se-á pelo mundo inteiro ao mesmo tempo. Todos se converterão, gentios e judeus. Haverá um só rebanho e um só Pastor. O poder espiritual será regido por um Imperador cristão. Os judeus, depois de terem sofrido tantos castigos e afrontas, como nenhum outro povo, serão restituídos à sua pátria, assim como os portugueses o foram por obra da Restauração. A Igreja será toda uma Jerusalém nova, santa e descida do Céu. Reinará a paz universal por muitos e muitos anos até a chegada dos tempos dos tempos do Anticristo: tempos de catástrofes que precederão o Juízo Final. O Imperador, que há de vir como instrumento de Deus para vencer os Turcos, conquistar a Terra Santa e inaugurar o Quinto Império, será português. O seu nome não é mencionado nesta Representação segunda, ao contrário do que o réu fizera na primeira, cujo alvo era, precisamente, provar que se tratava de D. João IV, o Encoberto, o Esperado, o Desejado, o Redivivo.
A dialética jesuítica o levava a jogar com os inquisidores o jogo da inteligência. Ora, dizia Vieira, como ser herético se tantos deles o liam como os “catedráticos da Universidade e lentes de Teologia de todas as religiões, qualificadores muitos deles do Santo Ofício?”
Em 1668, contudo, novos ares sopram em direção a Vieira: D. Pedro destrona D. Afonso VI e Vieira retorna a sua atividade de pregador. A pena foi-lhe comutada para seis meses de retiro no colégio dos jesuítas, como já apontamos, e, mais tarde, completamente perdoada. Ressabiado e sabedor de que a Inquisição não o deixaria em paz, parte para Roma com o pretexto de buscar a canonização de quarenta santos da Companhia de Jesus. Sabia que o único refúgio era o acolhimento do supremo de todas as congregações: o papa.
Volta de Roma glorificado por seus sermões e por convívio sapientíssimo, sendo admirado por seus pares e por membros de outras congregações e, finalmente, pelo papa Clemente X. Vieira, no retorno a Lisboa, não regressa de mãos vazias. Traz consigo o Breve com que o papa Clemente X o coloca fora das garras inquisitoriais do Santo Ofício português, alertando que o pregador só deve reportar-se diretamente ao Papa. Vieira ainda tenta mais uma vez influenciar a vida política, mas percebeu que não recebia apoio e que, embora seu prestígio como pregador fosse respeitável, não lhe dariam mais nenhuma missão diplomática ou voz na corte.
De regresso à Bahia, aos 73 anos, em 1681, Vieira, velho, entendedor dos avatares humanos e ainda vigoroso como escritor, decide escrever de forma definitiva e publicar os seus sermões. Mas não deixa de envolver-se em política, outra vocação nata do pregador. Mesmo porque seu irmão, Bernardo Vieira Ravasco, era secretário do governo da Bahia, embora desafeto do governador. Morre em 1697, sem antes envolver-se em outra intriga, desta vez em sua própria Companhia de Jesus, de quem foi, apesar do avançado dos anos, visitador da província do Brasil.
imagem retirada da internet: vieira