sábado, 29 de agosto de 2015

Padre Antônio Vieira, RCF





Um escritor entre cruzes e espadas da Inquisição


Um dos maiores escritores universais em língua portuguesa, o jesuíta Antônio Vieira, foi presa de três dons: primeiro, de sua vocação inegável para ser o artista da palavra que melhor expressou o barroco entre nós e, em conseqüência, sua inteligência e sua argumentação apuradas o levaram a um jogo dialético que, em época de unilateralismos, foi danoso; segundo, porque mostrava inegável vocação para a vida prática e política, para os assuntos mundanos, os cortesãos e os diplomáticos e, terceiro, porque, contraditoriamente, tinha veia mística e herdara um messianismo que bebera em fontes populares e o levou a medir forças com a Inquisição.
Ficasse o pregador com sua magistral oratória a encantar platéia com seus jogos de palavras, seus oxímoros, seu paralelismo, sua verve imaginativa e suas metáforas desabusadas que incomodaria inquisidores e colonos maranhenses, mas não o levaria ao Tribunal do Santo Ofício. Mesmo que criticasse o orador dominicano no “Sermão da Sexagésima”, justamente o sermão que faz sua profissão de fé e apresenta sua concepção não só do ato de pregar como também de sua estética, Vieira não iria parar nas prisões em que os conventos que o acolheram se transformaram.
Foi seu último dom e empenho que o levaram a sentar-se na frente dos inquisidores que, sabendo de suas qualidades oratórias, dialéticas e cultas, prepararam-se como se fossem enfrentar o próprio diabo. Mas um diabo erudito que citava Sêneca, lera os clássicos e fazia sua platéia não perder uma só palavra com o prejuízo de ser vítima de seu verbo e sua finíssima ironia.
A formação de Viera traz em si uma contradição que, nos Sermões, lhe servirá de modelo oratório (e de arte literária), mas que na vida prática irá prejudicá-lo. Embora o ensino jesuítico e a hierarquia da Ordem fossem rígidos, emulavam o pensamento dialético. Como pregador foi-lhe útil. Como político e homem do mundo, trouxe-lhe problemas.
A luta desigual entre a dialética de Vieira e os argumentos dos inquisidores, também feitos com argúcia e até amparados por consultas a livros que eram vedadas ao acusado, não desanimava o pregador. Chega-se a um ponto que parecia não haver apenas uma disputa entre a vítima e o Tribunal do Santo Ofício, mas uma discussão teológica, de fundo intelectual. Abatido fisicamente e sem poder demover a intolerância dos seus algozes como Fr. Filipe da Rocha e Alexandre da Silva, Vieira, por fim, em 19 de agosto de 1667, declara “sujeitar-se com toda a lisura e sinceridade às sobreditas censuras do Santo Ofício.” Condenam-no, a 23 de dezembro do mesmo ano, à “perda da voz ativa e passiva”, além da proibição de pregar e marcar-lhe residência em colégio dos jesuítas onde decidisse o Santo Ofício. Para um orador como Vieira talvez a condenação ao silêncio fosse um castigo por demais severo.
A aventura palaciana e a desgraça de Vieira parecem ter começado quando D. João IV vem a conhecê-lo. Vieira acompanha D. Fernando Mascarenhas, que ia a Lisboa dar felicitações pela ascensão do rei em nome do governador da Bahia. No dia 1 de janeiro de 1642, Vieira prega pela primeira vez na capela real. O rei, impressionado por sua oratória, passa a estimá-lo. Vieira terá acesso livre ao paço assim como participará de audiências do rei com seus ministros e, muitas vezes, dará parecer escrito sobre negócios de Estado. A ingerência nos assuntos do trono chegou a incomodar os próprios jesuítas. Teria D. João IV proposto fazê-lo bispo, intenção recusada por Vieira que tinha apego a sua congregação.
O poder de Vieira e de influência sobre D. João IV pode ser notado pelo fato de o rei fazê-lo seu representante e, desta maneira, enviá-lo à França e à Holanda, em 1646, em missão não de jesuíta, mas de corpo diplomático. Vieira chega a encontrar-se com o poderoso cardeal Mazarino e com ele manter discordância, já que o francês queria casar Dom Teodósio, de quem Viera era preceptor, com a francesa Mademoiselle de Lougueville. Sua missão na Holanda é contraditória, pois Vieira irá defender uma confusa cessão de Pernambuco para os holandeses, sem medir o poder de fogo do combatente luso-brasileiro. Outras missões de Vieira, como a ida a Nápoles, foram desastrosas. Sua vida de diplomata não é das mais exitosas e muitas das ações e propostas que encetou deram num resultado duvidoso quando não, podemos afirmar, inflamava paixões contra Portugal quando deveria torná-las borralho ou espargir as cinzas. Vieira tornou-se mestre em intrigas palacianas, desagradando seu protetor D. João IV, ao enviar uma carta ao filho desse, D. Teodósio, que tomara uma atitude hostil ao pai. O jeito encontrado foi enviar Vieira para o Maranhão a fim de aliviar as tensões que não eram poucas e tirá-lo do alcance dos seus inimigos que também era em número superlativo.
Em novembro de 1659, Vieira retorna a Lisboa e encontra o rei adoentado. Pede-lhe que o ajudasse em sua missão de catequese e defesa dos índios e, conseguindo o seu intento, retorna ao Maranhão. Criam-se as missões que Vieira planteava para a região Norte e Nordeste. Em 1661, os portugueses reagem às ações dos jesuítas e Vieira, junto com outros, é expulso para Portugal. Chegando a Lisboa, depois de quatro anos da morte do monarca que fora seu protetor, D. João IV, Vieira não cai nas graças do sucessor, o devasso D. Afonso. Vieira passa a vivenciar agora uma atividade antes política que religiosa. O conde de Castelo Melhor é conselheiro de D. Afonso VI e, temendo a influência que Vieira tinha na corte, não só o intriga com o novo rei como também o desterra no Porto e, mais tarde, em 1663 para Coimbra. Desamparado, igualado aos conspiradores que planejam a vitória de D. Pedro contra o irmão, Vieira é agora presa fácil da Inquisição, que há muito o vinha cercando.
Ora, D. João IV seria, nas interpretações que Vieira fizera das profecias do Bandarra, justamente o rei do Quinto Império. Portugal seria o Quinto Império, já que houvera os quatros anteriores: o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano. O documento maior que a Inquisição tem para abrir processo contra Vieira é a carta, datada de 1659, que ele enviara à viúva de D. João IV, D. Luísa, consolando-a. Antes, de volta a São Luís, em 1652, pregara que D. João IV, à maneira de D. Sebastião, retornaria ressuscitado. Na citada carta, reafirma as profecias.
A Inquisição, de posse da carta, depois de solicitar uma cópia ao Bispo do Japão, entre várias que já circulavam, ainda demora a convocar Vieira. O Marquês de Marialva e a própria Rainha intervieram para que o pregador não fosse chamado. Vieira não tem mais sustentação na Corte. Em fevereiro de 1663, por fim instaura-se o processo contra o pregador.
Vieira, enfraquecido por uma suposta tuberculose e uma herança americana da malária, sucumbe à Santa Inquisição. As sangrias não lhe fazem mais efeito. Mas, embora debilitado fisicamente, o ardor espiritual, a crença nas profecias e gosto pelo embate de idéias robustecem a mente de um corpo enfermo. O processo dura de 1663 a 1667, sendo que, em 1665, é preso e mantido na Quinta do Cano, em Vila França. Não deixa, contudo, de corresponder-se com autoridades em busca de sua libertação.
Em seu acurado prefácio à Representação, de Vieira, introdução esta escrita em Salvador, em 1957, a pedido da Universidade da Bahia, Hernani Cidade enumera as nove proposições enviadas ao Santo Ofício de Roma a fim que fossem examinadas e de lá voltaram todas negadas:

A 1ª, que afirma a futura existência do Quinto Império – estranha ao consenso geral dos Católicos, que tomam tal império como o do Anti-Cristo; a 2ª, que anuncia que o Império Romano – o IVº do Mundo, que ainda se continua na Casa da Áustria – será destituído pelo Quinto Império – errónea , ofensiva dos ouvidos piedosos e com sabor a heresia; a 4ª, que inculca as suas Trovas como verificadas nos sucessos livres e contingentes – temerária e fátua; a 5ª, a que considera não só como demonstrável pelo discurso, senão também como derivada da própria Fé, a verdade de tais profecias, não é apenas errónea: tem sabor a heresia; temerária a 6ª, que afirma a futura ressurreição de D. João IV; igualmente temerária e ainda ofensiva dos ouvidos piedosos a 7ª, que tem como critério de conhecimento do escrito profético a verificação em sucessos do profetizado, independentemente de erros doutrinários do profeta; errónea, injuriosa para os Santos Padres, para a Sagrada Escritura e para a Igreja a 8ª, que atribui ao Imperador do Quinto Império a graça da conversão universal dos Judeos, Gentios e Hereges; e finalmente, como sacrílega e injuriosa para a Igreja a 9ª, que admite a incorporação nela das doze tribus hebraicas desaparecidas.

O antissemitismo grassava, enquanto Vieira defendia os judeus do ponto de vista econômico, aproveitando seus investimentos e suas riquezas para financiar seu projeto das Companhias das Índias Ocidentais. A figura do cristão-novo era muito perturbadora, porque acreditavam os inquisidores que a conversão era superficial e que muitos judeus continuavam a praticar sua religião às escondidas. O imaginário cristão da época, que acusava Cristo de ser morto pelos judeus, esquece que o próprio Cristo era um membro da comunidade da mesma etnia semita.
Hernani Cidade, ainda no mesmo prefácio à edição de 1957 da Representação, lembra um fato psicológico precioso. Diz ele: “Até que ponto a sua formação moral na Bahia, longe das lições de fanatismo dos espetáculos dos autos-de-fé, preservou Vieira contra as infiltrações do ódio anti-semítico?” E mesmo de volta a Portugal, logo Vieira viaja por países mais liberais quanto aos judeus. Logo, não é de estranhar que Viera produza o documento Proposta feita a El rei D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que andavam por diversas partes da Europa.
Vieira alertava:

“Todos estes (Judeus portugueses espalhados pelo Mundo) pelo amor que têm a Portugal, como pátria sua, e a Vossa Majestade, como seu rei natural, estão desejosos de poderem tornar para o Reino e servirem a Vossa Majestade com suas fazendas, como fazem aos reis estranhos. Se Vossa Majestade for servido de os favorecer e chamar, será Lisboa o maior império de riquezas e crescerá brevìssimamente todo Reino a grandíssima opulência e se seguirão infinitas comodidades a Portugal, juntas com a primeira e principal de todas, que é a sua conversão”

A proposta de isenção do fisco proposta por Vieira irritava também a Inquisição, já que esta era uma fonte de ingressos da instituição. As vítimas da Inquisição tinham seus bens confiscados, mesmo quando ainda não tinham chegado ao final condenatório.
Mas quem era o Bandarra, que Vieira tanto acolhia e pugnava por suas profecias? Bandarra era um humilde sapateiro que morou em outro tempo num povoado da Beira de nome Trancoso. Seus versos estão imbuídos de messianismo. São trovas proféticas que, mesmo não realizadas, Vieira fez questão de atualizá-las e reinterpretá-las. Bandarra, como bom português e sebastianista, aponta a vinda do messias que era o rei jovem D. Sebastião. Profecia tão arraigada na cultura portuguesa que atravessou o oceano e no século vinte ainda era crível no Maranhão. O Quinto Império duraria mil anos e só terminaria com o dia do Juízo Final.
O Bandarra era bem conhecido e até mesmo aceito pelo povo culto e não culto. Hernâni Cidade lembra que as Trovas do Bandarra tinham sido oferecidas ao Bispo da Guarda, “a quem naquele, pertencia totalmente o exame da verdadeira ou falsa doutrina” – lembra Vieira na Representação. Aprendiam a ler por elas os meninos das escolas, principalmente na Beira – informa ele ainda. E é vasta – e alta – a audiência que as conhece, as propaga – e acredita. Vieira afirma na Representação que nela figuram bispos, arcebispos, inquisidores, provinciais e gerais das Religiões...” Todos em número em número, antes dos sobreditos sucessos (os que ele entendia terem realizado a profecia) liam e estimavam as Trovas do Bandarra, não pela bondade dos versos, senão pelas suas predições.”
Para Alfredo Bosi, em sua introdução ao livro Profecia e Inquisição, também editado pelo Conselho Editorial do Senado Federal, o Quinto Império de que Viera fala pode ser interpretado numa linha de raciocínio que seria esta:

Virá e está próximo o Reino já anunciado pelos profetas, embora difícil de prever pelo vasto mar dos futuros, entre nuvens e cerrações das Escrituras proféticas. Este reino será o Quinto Império do mundo porque sucederá aos quatro já conhecidos: o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano. A profecia que tudo sustém é que fez Daniel ao interpretar o sonho de Nabucodonosor. O Quinto Império será Império e Reino da terra, ou na terra. Diz o profeta que a pedra que derrubou a estátua enche a terra inteira (Dan 2, 35). O Quinto Império começará na era de 666 (1666), número que figura no Apocalipse de João (Jô 13, 18). Estender-se-á pelo mundo inteiro ao mesmo tempo. Todos se converterão, gentios e judeus. Haverá um só rebanho e um só Pastor. O poder espiritual será regido por um Imperador cristão. Os judeus, depois de terem sofrido tantos castigos e afrontas, como nenhum outro povo, serão restituídos à sua pátria, assim como os portugueses o foram por obra da Restauração. A Igreja será toda uma Jerusalém nova, santa e descida do Céu. Reinará a paz universal por muitos e muitos anos até a chegada dos tempos dos tempos do Anticristo: tempos de catástrofes que precederão o Juízo Final. O Imperador, que há de vir como instrumento de Deus para vencer os Turcos, conquistar a Terra Santa e inaugurar o Quinto Império, será português. O seu nome não é mencionado nesta Representação segunda, ao contrário do que o réu fizera na primeira, cujo alvo era, precisamente, provar que se tratava de D. João IV, o Encoberto, o Esperado, o Desejado, o Redivivo.

A dialética jesuítica o levava a jogar com os inquisidores o jogo da inteligência. Ora, dizia Vieira, como ser herético se tantos deles o liam como os “catedráticos da Universidade e lentes de Teologia de todas as religiões, qualificadores muitos deles do Santo Ofício?”
Em 1668, contudo, novos ares sopram em direção a Vieira: D. Pedro destrona D. Afonso VI e Vieira retorna a sua atividade de pregador. A pena foi-lhe comutada para seis meses de retiro no colégio dos jesuítas, como já apontamos, e, mais tarde, completamente perdoada. Ressabiado e sabedor de que a Inquisição não o deixaria em paz, parte para Roma com o pretexto de buscar a canonização de quarenta santos da Companhia de Jesus. Sabia que o único refúgio era o acolhimento do supremo de todas as congregações: o papa.
Volta de Roma glorificado por seus sermões e por convívio sapientíssimo, sendo admirado por seus pares e por membros de outras congregações e, finalmente, pelo papa Clemente X. Vieira, no retorno a Lisboa, não regressa de mãos vazias. Traz consigo o Breve com que o papa Clemente X o coloca fora das garras inquisitoriais do Santo Ofício português, alertando que o pregador só deve reportar-se diretamente ao Papa. Vieira ainda tenta mais uma vez influenciar a vida política, mas percebeu que não recebia apoio e que, embora seu prestígio como pregador fosse respeitável, não lhe dariam mais nenhuma missão diplomática ou voz na corte.
De regresso à Bahia, aos 73 anos, em 1681, Vieira, velho, entendedor dos avatares humanos e ainda vigoroso como escritor, decide escrever de forma definitiva e publicar os seus sermões. Mas não deixa de envolver-se em política, outra vocação nata do pregador. Mesmo porque seu irmão, Bernardo Vieira Ravasco, era secretário do governo da Bahia, embora desafeto do governador. Morre em 1697, sem antes envolver-se em outra intriga, desta vez em sua própria Companhia de Jesus, de quem foi, apesar do avançado dos anos, visitador da província do Brasil.


imagem retirada da internet: vieira

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Canção de mim mesmo, Walt Whitman

"Walt Whitman, americano, um bronco, um kosmos,
Agitado corpulento e sensual....comendo e bebendo e procriando,
Nada sentimental....alguém que não se põe acima dos outros homens e mulheres
Nem deles se afasta....nem modesto nem imodesto.
Arranquem os trincos das portas!
Arranquem as próprias portas dos batentes!
Quem degrada uma pessoa me degrada....e tudo que se diz ou se faz no fim volta pra mim,
E o que eu faça ou diga volta pra mim,
A inspiração surgindo e surgindo de mim....por mim a corrente e o índice.
Pronuncio a senha primeva....dou o sinal da democracia;
Por Deus! Não aceito nada que não possa devolver aos demais nos mesmos termos.
Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,
Vozes das intermináveis gerações de escravos,
Vozes das prostitutas e pessoas deformadas,
Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões, (...)
Por mim passam vozes proibidas,
Vozes dos sexos e luxúrias....vozes veladas, e eu removo o véu,
Vozes indecentes, esclarecidas e transformadas por mim.
Não cruzo os dedos sobre a boca,
Cuido bem dos meus intestinos tanto quanto da cabeça ou do coração,
A cópula não é mais indecente do que a morte.
Acredito na carne e nos apetites,
Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim."


(Tradução: Rodrigo Garcia Lopes, Folhas da Relva, Ed. Iluminuras)

A última entrevista de Graciliano Ramos



Numa manhã de dezembro de 1948, dez anos após a publicação de “Vidas Secas”, Graciliano Ramos se confessa ao jornalista e escritor Homero Senna, em sua última longa entrevista


       Principio por pedir a Graciliano Ramos que me diga alguma coisa sobre os começos de sua vida, no interior de Alagoas, na cidade de Quebrangulo (não Quebrângulo, como geralmente se diz), onde nasceu. “Mas isso tudo está contado em ‘Infância’. Valeria a pena repetir?” E como eu dissesse que sim, resumiu: “De minha cidade natal não guardo a menor lembrança, pois saí de lá com um ano. Criei-me em Buíque, zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco, para onde, a conselho de minha avó, meu pai se transferiu com a família. Em Buíque morei alguns anos e muitos fatos desse tempo estão contados no meu livro de memórias”.
        Abro o volume, para conferir, e, entre outras coisas, lá encontro este perfil psicológico do velho Ramos, traçado pelo filho: “Tinha imaginação fraca e era bastante incrédulo. Aborrecia os ateus, mas só acreditava nas contas correntes e nas faturas. Desconfiava dos livros, que papel aguenta muita lorota, e negou obstinadamente os aeroplanos. Em 1934 considerava-os duvidosos”.
        De quem o romancista teria herdado, então, o gosto pela literatura? Talvez do avô paterno, cujo retrato desbotado costumava admirar no álbum que se guardava no baú, e de quem admite que tenha recebido em legado “a vocação absurda para as coisas inúteis”. De sua mãe, o espírito infantil recolheu esta impressão: “Uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, várias bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura”, ente difícil que na harmonia conjugal “se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que batiam no cocuruto, dobrados, e tinham a dureza de martelos”.
        De Buíque, onde o romancista frequentou a primeira escola, experimentou os primeiros desânimos diante dos livros didáticos do Barão de Macaúbas e viveu algumas das inesquecíveis aventuras de sua meninice, a família mudou-se para Viçosa, não a de Minas, terra do presidente Bernardes, mas a açucareira do interior de Alagoas. O que foi a extensa caminhada, de dezenas de léguas, desde os campos ralos, povoados de xiquexiques e mandacarus, até uma nova paisagem, de vegetação densa e muito verde, longa viagem feita em lombo de animal, está contada numa das melhores páginas de “Infância”.
         De Viçosa, Graciliano passou a Maceió, onde frequentou um colégio mau; voltou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior do Estado. Em Palmeira dos Índios chegaria a prefeito, e foi graças a dois relatórios que escreveu que se tornou conhecido. Mas não precipitemos os acontecimentos.
          Estamos ainda em 1914. Nesse ano realiza Graciliano sua primeira viagem ao Rio, tendo trabalhado como foca de revisão. No “Correio da Ma­nhã” e no “O Século”, de Brí­cio Filho, não passou de suplente de revisor, trabalhando apenas quando o revisor efetivo faltava. Em “A Tarde”, porém, um jornal surgido naquela época para defender Pinheiro Ma­chado, chegou a revisor efetivo. Morou em várias pensões, naquele Rio dos princípios do século, que tantos cronistas já têm descrito. Os antigos endereços ficaram-lhe na memória, e sem qualquer esforço o romancista os vai citando: Largo da Lapa 110; Maranguape 11, Riachuelo 19. Todos numa zona então muito pouco recomendável, porque bairros de meretrício, de desordeiros e boêmios.
         Nessa sua primeira viagem à Corte procurou aproximar-se de algum escritor, fez camaradagem literária?
Nenhuma. Os escritores daquele tempo eram cidadãos que, nas livrarias e nos cafés, discutiam colocação de pronomes e discorriam sobre Taine. Machado e Euclides já haviam morrido, e os anos de 1914 e 1915, em que estive no Rio, assinalam, na literatura brasileira, uma época cinzenta e anódina, de que é bem representativo um tipo como Osório Duque Estrada, que então pontificava.
Ficou aqui até quando?
Até 1915. Depois de curta e nada sedutora permanência na capital, achei melhor voltar para Palmeira dos Índios, onde já havia deixado um caso sentimental e onde minha família estava toda sendo dizimada pela peste bubônica. Num só dia perdi dois irmãos. Alarmado, e também desgostoso com a vida que levava, tratei de voltar para Alagoas. Em outubro de 1915 casei-me e estabeleci-me com loja de fazendas em Palmeira dos Índios. A mesma loja que fora de meu pai.
Nessa ocasião já tinha preocupações literárias?
Lia muito e escrevia coisas que inutilizava ou publicava com pseudônimos.
Quer revelar alguns desses pseudônimos?
Você é besta.
Fazia versos?
Aprendi isso, para chegar à prosa, que sempre achei muito difícil. Tendo vivido quinze anos completamente isolado sem visitar ninguém, pois nem as visitas recebidas por ocasião da morte de minha mulher eu paguei, tive tempo bastante para leituras. Depois da Re­volução Russa, passei a assinar vários jornais do Rio. Desse modo me mantinha mais ou menos informado, e os livros, pedidos pelos catálogos, iam-me do Alves e do Garnier, e principalmente de Paris, por intermédio do Mercure de France.
Então, se procurava manter-se tão bem informado a respeito do que se passava no Rio e no resto do mundo, deve ter acompanhado, lá de Palmeira dos Índios, o movimento modernista?
Claro que acompanhei. Já não lhe disse que assinava jornais?
E que impressão lhe ficou do modernismo?
Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.
Não exclui ninguém dessa condenação?
Já disse: salvo raríssimas exceções. Está visto que excluo Ban­deira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado” é como as “Sex­tilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?
(Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue.)
Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira — o que era um erro — fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho Tique-Taque”, de Medeiros e Albu­quer­que; “Tílburi de Praça”, de Raul Pompéia; “Só”, de Domício da Gama; “Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos de Sara”, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão a ideia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade. Porque se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente.
Quer dizer que não se considera modernista?
Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.
E como foi que chegou a prefeito da cidade?
Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito, naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando (o sistema no Brasil anterior a 1930), e fiquei vinte e sete meses na prefeitura.
Consta que, como prefeito, soltava os presos para que fossem abrir estradas…
Não era bem isso. Prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer, no município de Palmeira dos Índios, um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil.
Em que ano foi isso?
Em 1930.
O ano do relatório…
Os relatórios são dois: há o de 1929 e o de 30.
Relatórios do prefeito ao governador do Estado, dando contas de sua administração, não é?
Justo. Apenas, como a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro. Houve jornais que o transcreveram integralmente.
E assim nasceu o escritor…
Não. Nasceu antes. Mas tinha o bom senso de queimar os romances que escrevia. Queimaram-se diversos. “Caetés”, infelizmente, escapou e veio à publicidade.
Numa edição Schmidt…
Exato. Por intermédio de Rômulo de Castro, Schmidt, que aqui no Rio lera os meus relatórios, pediu-me que lhe enviasse artigos para a imprensa. Como não me interessasse fazer carreira no jornalismo, nem construir nome literário, recusei-me. Aliás, nessa ocasião já estava de mudança para Maceió, pois fora nomeado diretor da Imprensa Oficial. Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de 1931. Não suportando os interventores militares que por lá andaram, larguei o cargo e voltei para Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz “São Ber­nardo”. Estava no capítulo 19, capítulo que escrevi já com febre, quando adoeci gravemente com uma psoíte e tive de ir para o hospital. Do hospital ficaram-me impressões que tentei fixar em dois contos: “Paulo” e “O Relógio do Hospital” — e no último capítulo de “An­gús­tia”. No delírio, julgava-me dois, ou um corpo com duas partes: uma boa, outra ruim. E queria que salvassem a primeira e mandassem a segunda para o necrotério. Estava convalescendo, em janeiro de 1933, quando tive notícia da minha nomeação para diretor da Instrução Pú­blica. Não acreditei.
Qual o interventor que o nomeou?
O capitão Afonso de Car­valho, hoje coronel. Foi disparate. Permaneci no cargo até 3 de março de 1936. Em 1933 Sch­midt lançara “Caetés”, que eu trazia na gaveta desde muito tempo. Naquele dia do mês de março de 1936, porém, sem qualquer explicação, fui preso e remetido para o Recife. onde passei dez dias incomunicável. Depois fui metido no porão do “Manaus” e vim para cá. Tive dez ou doze transferências de cadeia.
Qual o motivo da prisão?
Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam. De qualquer maneira, acho desnecessário rememorar estas coisas, porque tudo aparecerá nas “Memórias da Prisão”, que estou compondo.
Foi assim, então, que veio para o Rio?
Foi. Arrastado, preso.
Mas valeu a pena, não?
Sinceramente, não sei. Nun­ca tive planos na vida, muito menos planos de sucesso. De­pois daquela experiência da mocidade, o Rio não me atraía. No entanto vim, no porão do Manaus, e aqui vivo.
(Estávamos, portanto, diante de um antipará. Os “parás”, na saborosa classificação de Jaime Ovale, são “esses homenzinhos terríveis que vêm do Norte para vencer na capital da República; são habilíssimos, audaciosos, dinâmicos e visam primeiro que tudo o sucesso material, ou a glória literária, ou o domínio político”. Que pensaria Graciliano dessa fauna? Lanço a pergunta e a resposta não tarda.)
Está claro que existe um “exército do Pará”. Na maioria dos casos, porém, os seus milicianos já chegam feitos do Norte. Aqui vêm apenas colher os louros, ou, mais positivamente, as vantagens. E no Rio em geral definham, tornam-se mofinos. Ignoro se também sou “Pará”. Nunca fiz coisa que prestasse, mas ainda assim o pouco que fiz foi lá e não aqui, onde a vida não nos deixa tempo para nada. Hoje leio apenas jornais, um ou outro ro­mance. De manhã escrevo; à tarde saio para as minhas ocupações (inclusive para o “papo” na livraria); à noite trabalho. Onde iria achar tempo para leituras? E se não tivesse lido um pouco no interior, onde os dias são intermináveis, seria inteiramente analfabeto.
Quer dizer que acha preferível, para o escritor, a vida na província?
No Nordeste não podemos falar em “provincianismo”, luxo dos Estados grandes: São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul. Nós, do Nordeste, temos de ser “municipais” ou “nacionais”. E, a ter de morar em qualquer dos Estados daquela região, acho preferível o interior às capitais, porque estas, seus mexericos, seus grupinhos literários, suas academiazinhas, seus institutos históricos, são sempre muito ruins. Já no interior poderá um homem entrar em contato íntimo com a terra e o povo. É, por exemplo, de onde vem a força de um José Lins do Rego, de uma Raquel de Queirós, de um Jorge Amado.
Sabe que é apontado como um dos nossos escritores modernos que melhor manejam o idioma?
Conversa. Talvez, se houvesse alguma verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do Nordeste, que falam bem. É lá que a língua se conserva mais pura. Num caso de sintaxe de regência, por exemplo, entre a linguagem de um doutor e a do caboclo — não tenha dúvida, vá pelo caboclo, e não erra. Note que me refiro ao caboclo do sertão. O do litoral vai-se estrangeirando.
Mas não me venha dizer que seu aprendizado da língua se fez apenas com os caboclos de Buíque e Palmeira dos Índios.
Claro que não. Muitas coisas não poderiam eles ensinar-me. Está visto que tive de chatear-me lendo gramáticas. E arrepiei-me com a leitura dos frades.
Consta que você, como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, é grande leitor de dicionários.
Consta e é verdade. Dicio­nário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato.
Acha isso uma qualidade?
Não sei. O que sei é que não há talento que resista à ignorância da língua.
Poderia, hoje, deixar de escrever?
Quem me dera poder deixar.
Sua obra de ficção é autobiográfica?
Não se lembra do que lhe disse a respeito do delírio no hospital? Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportarem de modos diferente, é porque não sou um só. Em determinadas condições, procederia como esta ou aquela das mi­nhas personagens.
Já se pode viver, no Brasil, da profissão de escritor?
Não creio. A última edição de minhas obras rendeu-me 50 contos. Da edição americana de “Angústia”, recebi 10 contos apenas. Tenho também três livros traduzidos para o espanhol. Mas os negócios na Argentina e no Uruguai andaram mal. Como não tenho o hábito de frequentar os suplementos e as revistas ilustradas, a literatura me rende pouco.
Que outras atividades exerce?
Trabalho no “Correio da Manhã” e sou inspetor de ensino secundário no ginásio São Bento.
Gosta do emprego que tem?
É-me indiferente. Trata-se de uma sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca tive uma falta nem tirei licença.
E no “Correio da Manhã”, qual o seu serviço?
Corrijo a gramática dos repórteres e noticiaristas.
Gosta de jornalismo?
Não. Nem me considero jornalista.
Com essa vida de jornal, naturalmente dorme tarde.
À uma hora. E me levanto às sete.
Nos seus livros trabalha, portanto, apenas de manhã.
Exato. Até às onze, mais ou menos.
E para trabalhar, exige um bom ambiente ou não liga a isso?
Trabalho em qualquer parte. “Angústia” foi escrito em palácio, quando eu era diretor da Instrução Pública de Alagoas. “São Ber­nardo”, em péssimas condições, numa igreja. Qualquer canto me serve. Mas disponho, hoje, em casa, de uma confortável sala de trabalho: isso que os burgueses costumam chamar “escritório”.
Gosta da casa onde mora?
Em qualquer lugar estou bem. Dei-me bem na cadeia. Tenho até saudades da Colônia Correcional. Deixei lá bons amigos.
(Casado duas vezes, Graciliano tem seis filhos e duas netas. Pergunto-lhe se costuma ajudar a mulher em casa, e ele se espanta.)
Já faço muito em pagar as despesas. Aliás, tenho horror a compras. E quando ouço o telefone, tranco-me.
Aos domingos, o que costuma fazer?
Em geral escrevo pela manhã e à tarde durmo.
(O autor de “Vidas Secas” não faz visitas, não vai a concertos nem a conferências e não gosta de música. Tem, entretanto, um velho hábito: vai diariamente à Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, e fica lá várias horas, num banco que já é quase propriedade sua, localizado no fundo da loja.)
Muitas vezes vou lá dormir. Mas aparecem amigos, conhecidos, e toca-se a conversar.
(Em virtude desse hábito, muita gente pensa que Graciliano dá a vida por um “papo”. Ele, porém, desfaz-me essa impressão.)
Quase sempre converso forçado, porque chegam pessoas. Mas na verdade muitos dias preferiria ficar quieto, sem trocar palavra. Também é fato que lá aparecem bons amigos, desses que a gente revê com prazer.
(Como Manuel Bandeira, Graciliano recebe inúmeros originais, para ler e dar opinião. A Bandeira dirigem-se sobretudo os jovens poetas ainda incertos quanto à própria vocação. E os que se iniciam na prosa, geralmente procuram mestre Graciliano. Este, assim, tem sempre uma quantidade enorme de originais para ler.)
É maçada. Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos Estados, que desejam, é claro, alguns elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins: afirmar, sem leitura, que tudo é magnífico.
(Os escritores jovens do Brasil, que dos mais distantes Estados remetem originais para Graciliano Ramos, em busca de uma opinião, e nem sempre recebem resposta, ou a resposta que esperavam, podem, entretanto, considerar-se vingados: na própria casa do romancista surgem originais, e originais que ele tem, forçosamente, de ler, e talvez percorra com olhos mais benignos: os contos de seu filho Ricardo, de 19 anos, e de sua filha Clara, quatro anos mais moça que o irmão. Ambos têm vocação para as letras. Ricardo, jornalista, já tem publicado alguma coisa, naturalmente com a chancela paterna. E, ainda que Graciliano nos afirme o contrário, nos diga que nenhum deles lhe pede opinião, é divertido imaginar o romancista, cansado de emendar o português dos noticiaristas do “Correio da Manhã”, e de ler originais que lhe chegam, às dezenas, de todo o país, ter, em casa, de dar opinião sobre os trabalhos dos filhos.)
(Pergunto qual a sua impressão dos contos de Ricardo Ramos, e ele não se nega a opinar.)
Regulares. Tem jeito e poderá fazer coisa que preste.
E Clara?
É ainda criança. Tem 15 anos apenas e está concluindo o curso secundário.
(Despedindo-me de Graciliano, depois da longa conversa que aqui tentei reproduzir, faço-lhe uma última pergunta: Acredita na permanência de sua obra? E sem qualquer pose, sem nada que deixasse transparecer falsa modéstia, antes dando a impressão de que falava com absoluta sinceridade, esse pessimista seco e amargo respondeu-me.)
Não vale nada; a rigor, até, já desapareceu.

Nota: Entrevista publicada na “Revista do Globo”, edição nº 473, em 18 de dezembro de 1996. E posteriormente no livro “República das Letras”, de Homero Senna, editora Civilização Brasileira.
(Fonte: Jornal Opção)


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

As cidades em A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins





Não há dúvida que um dos nossos autores mais cerebrais é Osman Lins. De suas obras exala erudição. Não é à toa que o autor tenha em sua bibliografia ensaios. A Rainha dos Cárceres da Grécia não foge à regra. O autor inicia o relato – um livro sobre um livro – a partir da constatação, ainda pertinente, da ausência do autor na crítica literária. “O exame dos textos, postulam hoje os especialistas, deve ignorar a mão que os redigiu”, escreve o narrador de Osman Lins. É uma luta travada ainda no campo da Hermenêutica e que opôs em certo momento Barthes ( com seu texto que dispensava a mão que o escrevia ) e Derrida, que argumentava que não poderíamos fugir do círculo do humanismo e, portanto, a expressão máxima do humanismo era a subjetividade autoral, que deve ser evitada, mas da qual não há saída. O narrador de A Rainha dos Cárceres se pergunta, espantado, atônito, revisitando o texto inédito de sua amante falecida: “Posso indagar ainda: assente que o autor não existe, teria sido eu amante de ninguém?”.
Ora, na verdade, Osman está fingindo que o narrador de A Rainha dos Cárceres é um intelectual que vai fazer uma análise literária da obra da autora. O narrador está tão comprometido com a autora que as digressões sobre o narrador ou sobre a forma de abordar o livro inédito da amante morta são apenas preâmbulo “culto” para as finalidades de caracterizar o narrador e prenunciar os comportamentos que virão a seguir. E o autor propor uma estética baseada no ensaio antes que na peripécia.
Estamos sempre no universo culto da cidade, já que o narrador primeiro, o do romance A Rainha dos Cárceres, é erudito. Maria de França é um personagem migrante não apenas no aspecto de mudança para a cidade grande, mas no conceito de que é um personagem de segundo grau: é um personagem que migra de um livro para o outro, de um livro dentro de um livro. Logo, a cidade que irá aparecer em A Rainha dos Cárceres também é uma cidade em segundo grau: uma cidade dentro de outra cidade. A cidade da migrante, duplo segundo grau, que o narrador, habitante da cidade, reproduz no seu romance.
A relação que a “louca” Maria de França, requerente junto à Previdência Social, de uma pensão, dá-se no mundo imaginário ( e secundário ) do romance da amante do narrador. A cidade burocrática, kafkiana, que ela entra em contato não é uma cidade real, ao mesmo tempo em que é uma das realidades mais cruéis da cidade: a relação do cidadão com a burocracia. A burocracia é a cidade viciada, os erros e desvios de uma cidadania colocada em dúvida. Não é a primeira vez que leio a notícia de que uma pessoa viva, considerada morta em papel, não pode exercer suas funções civis: alugar apartamento, comprar a crédito, empregar-se, etc. Isso porque o valor do papel, o valor do documento, é um estatuto muito mais valioso. A burocracia sobrepõe-se à realidade. Não é à toa que Kafka vai se apropriar, em O processo, dos meandros jurídicos, e por extensão, burocráticos, para demonstrar a “insanidade” do mundo contemporâneo.
Poderia eu dizer que a burocracia tenta reproduzir, em papel, o mundo da realidade. A realidade da cidade em forma de letra. Alguém poderia levantar que o campo também sofre a ação da burocracia. E eu concordaria. O que acontece em relação com o campo é que burocracia x não urbano tem um ritmo mais lento e envolve outras questões como posse de terra, latifúndio, que não nos cabe aqui comentar e alongar. A burocracia, na cidade, é muito mais virulenta no sentido de que está ocorrendo a todo o momento. A burocracia é um dos males da cidade e determina um dos comportamentos de inter-relação social.
A burocracia torna-se então a cidade regida por normas. Não é a cidade virtual, mas a cidade cerceadora, a cidade “cidadã”, a cidade da lei, da mesma lei que é feita para proteger, mas que, desvirtuada, passa a funcionar como a realidade em si. Neste sentido, a burocracia torna-se uma cidade cidadã virtual, ou seja, a cidade ideal. Ideal no sentido de que as normas devem ser cumpridas e, se cumpridas, a felicidade cidadã se espalhará homogeneamente entre os habitantes da grande metrópole. Mas o que acontece é justamente o contrário: a burocracia suprime direitos, enreda o cidadão num cipoal de obrigações, deveres e poucos direitos e, em vez de proporcionar felicidade, provoca a sensação de aprisionamento, sugere sufocamento, induz à crença de que o personagem não pode mais dela se livrar.
A intensa vida urbana, contudo, incomoda o narrador, aqui nomeado, talvez impropriamente, o narrador real, ou seja, o narrador de A Rainha dos Cárceres e não do texto de sua amante Julia Marquezim.

“Habituado à alameda Lorena e arredores, evito, sempre que possível, aventurar-me ao centro da cidade. Pessoas que, nos bairros, movem-se naturalmente, parecem meio cegas quando investem – decididas, mas numa espécie de pânico – pela Quinze de Novembro ou pela Sete de Abril, áreas onde clama, intensa, a vida de São Paulo – e isto me atordoa...”

É a megalópole que deforma o modo de andar e viver das pessoas, antes natural, agora às cegas. A cegueira urbana, que faz com que os pedestres estejam sempre em rumo de alguma coisa e não têm como projeto o caminhar em si, automatiza e transforma o instinto natural ou o caminhar razoável. A Recife da Tamarineira, dos bairros pobres, a cidade de Recife, cidade de segundo grau, pois está dentro de um romance que conta um romance, esta cidade é uma cidade periférica na narrativa e periférica em sua descentralidade real. Aqui, não. Pulsa a cidade intelectualizada do narrador, que pesquisa a origem de nomes tão diversos e pitorescos e chega a sua fonte erudita: Ronphile, quiromante do século XVIII, Nicolau Pompeu, vidente do século XIV e XV. Então temos a cidade do narrador e a cidade da narrada, a personagem de Maria de França. Entre a cidade cega e a cidade louca, a primeira do narrador paulista e a segunda da personagem que ouve vozes, há um abismo urbano e civilizatório. São cidades sem razão e sem visão. A falta de sanidade mental de Maria de França também é uma forma de cegueira. E a cegueira paulista e pedestre também é uma forma de loucura urbana.
A intromissão de artigos de jornal e de citações de livros, como num ensaio, cria um procedimento distinto da prática narrativa ficcional. Para nós, a inserção das notícias de jornal significa, já que delimitamos nosso campo de estudo, a representação da cidade factual, da cidade como notícia. A notícia também pode significar a permanência da aparência do real dentro de uma ficção de segundo grau. A cidade do jornal não é a cidade real, mas a cidade forjada pela visão de vários cidadãos, chamados jornalistas, e que, no imaginário das cidades, teriam o papel de reportar a verdade. O fato jornalístico passa a ser, dessa maneira, incontestável. Ora, a literatura é um fato ficcional incontestável pelo seu caráter estético e por sua verossimilhança. A notícia de jornal, inserida num texto ficcional, passa a ter caráter ficcional. Mesmo que as fontes e os personagens sejam verdadeiros como Reinhold Stephanes, presidente do Instituto Nacional de Previdência Social e o Jornal da Tarde, e sua notícia do dia 3.10.74.
O jornal, mais do que a citação de livros que pertencem à esfera do ensaio, nos interessa porque veicula a idéia de cotidianidade, de urbanidade e de caráter factual. Este último já foi observado. Restam-nos a cotidianidade e a urbanicidade. A cotidianidade forjada pela notícia de jornal cria a falsa idéia de que estamos vivenciando não uma cidade internalizada no narrador ou nos personagens – ou mesmo, como já vimos em outros artigos, uma cidade internalizada no leitor. Mas cria a falsa impressão de que compartilhamos um ato coletivo. O jornal é a metonímia da coletividade e da simultaneidade. Várias pessoas, durante o dia, lêem a mesma notícia. Ao inseri-la no campo autônomo da literatura, a notícia jornalística passa a veicular a idéia de ato coletivo. Ato coletivo, simultâneo e urbano, por fim. A cidade se homogeneiza, se cumplicia, se solidariza, se torna múltipla e una na leitura da notícia. É o que chamamos o fenômeno da urbanicidade.
A cidade dos personagens que convivem no livro de Julia Marquezim é uma cidade degradada. Além de ser uma cidade de segundo grau ( se levarmos em conta o conceito platônico de poesia em A República, logo este grau de afastamento será muito maior ), a cidade de Maria de França é uma cidade dos despossuídos. Não incorpora as vantagens e direitos do cidadão ou os avanços e benesses da sociedade de consumo. Uma das questões fundamentais do romance escrito pela amante do narrador é justamente a carência de direitos cidadãos. A busca de uma pensão, o emaranhado burocrático, a violência do meio, tudo a leva a afastar-se de uma cidade viável.
Em outro artigo, discuti a relação entre o poeta e a cidade e conclui que o poeta não entrava em contato com a cidade dita urbanística, de cimento, edificações, ruas e avenidas, a cidade permitia ao poeta entrar em contato com a civilização, com a cultura, com o saber, a cidade era o lugar privilegiado da cultura. Ora, o que eu queria lembrar era justamente – e dava como exemplo Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – que uma pessoa pode viver numa cidade e não entrar em contato com a cultura transformadora: é o caso de Maria de França. A cidade do narrador de A Rainha dos Cárceres, ao contrário, é uma cidade culta, de direitos humanos, que favorece o saber e respeita os direitos humanos.

(trecho do artigo do livro O sopro na argila, org. Hugo Almeida, Ed. Nankin, 2004)


Soneto da ausente, Cassiano Ricardo


Can Dagarslani







É impossível que na furtiva claridade
que te visita sem estrela nem lua,
não percebas o reflexo da lâmpada
com que te procuro pelas ruas da noite.

É impossível que, quando choras, não vejas
que uma de tuas lágrimas é minha.
É impossível que, com o teu corpo de água jovem,
não adivinhes toda a minha sede.

É impossível não sintas que a rosa
desfolhada a teus pés, ainda há um minuto,
foi jogada por mim, com a mão do vento.

É impossível não saibas que o pássaro,
caído em teu quarto por um vão da janela,
era um recado do meu pensamento!






De Um Dia Depois do Outro (1947)




segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Quatro textos sobre Drummond, Antonio Carlos Secchin





Meu encontro com Drummond

O primeiro Drummond a gente nunca esquece.
Nos manuais de português– estou falando do ensino da oitava série, antigo quarto ano ginasial, em 1965 - aprendíamos que “panapaná” era o coletivo de borboleta; “aliá”, o feminino de elefante; poetas de verdade eram Bilac e mais alguns outros, prudentemente falecidos, no máximo, até 1920.

A professora decidiu, então, nos apresentar a poesia moderna. Poderia ter começado com a delicadeza de Cecília Meireles, a simplicidade de Bandeira, o lirismo amoroso de Vinicius. Mas não. Para atingir seu alvo – fragilizar o que, em aparência, pretendia neutramente exibir – iniciou a leitura: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia... /Mas eu nunca fui lá...”. Silêncio estupefato entre os alunos. Alguém ousou perguntar: “E o resto?”. E ela, já prelibando o efeito devastador: “Acabou”. Do silêncio à galhofa não se passaram mais do que dois ou três segundos. As gargalhadas explodiram quase uníssonas. Nós, que com Camões passávamos “ainda além da Taprobana”, agora, com um poeta modernista, não chegávamos sequer à Bahia!

Ao pinçar um poema-piada de Drummond, descontextualizá-lo e ridicularizá-lo em cerimônia pública, a mestra devia estar certa de que seu ardil nos afastaria do mau caminho dos modernos. Pouco tempo depois, frequentando a biblioteca de meu bairro, deparei-me com um exemplar de A rosa do povo. Com a curiosidade atiçada pelo episódio em sala de aula, levei-o emprestado: queria saber se a poesia de Drummond reduzia-se àquilo que eu ouvira, na versão maliciosa da professora. Enfrentei dificuldades no início, de tal modo era chocante o contraste entre tudo o que até então me fora apresentado como literatura e aquele conjunto de poemas, dotado de espantosa e densa linguagem. Embarquei numa inesquecível (a)ventura estética, descobrindo um mundo complexo e novo, a desdobrar-se em insuspeitados sentidos, para além do manual de boas normas da velha antologia escolar.

Não sei se, à época, alguns de meus colegas também contraíram o vírus modernista. Mas sei que a poesia daquele momento inundou minha vida inteira.



Quarteto

Mário amava Manuel que amava Carlos que amava João que não amava ninguém.
Mário se correspondia com todos, menos com João. João, com ironia, dizia ostentar orgulhoso troféu: o de único poeta brasileiro a jamais ter recebido uma carta de Mário.

Carlos julgava Manuel o maior, apesar de Manuel proclamar-se poeta menor.

Carlos se afeiçoou a João, que se dizia seu aluno. O primeiro livro de João foi dedicado a Carlos. O segundo, também. Carlos consagrou apenas um pequeno poema a João, mas foi seu padrinho nas primeiras núpcias. Também integrou o júri que em 1954 concedeu a João o mais importante prêmio literário do país.

Manuel, oriundo de Pernambuco, morou a vida quase toda no Rio de Janeiro. O paulistano Mário percorreu bastante o país, mas pouco foi ao exterior. Carlos, de Itabira do Mato Dentro, tampouco apreciava as viagens internacionais; esteve uma vez em Buenos Aires, em visita a familiares, e olhe lá. João, recifense e diplomata, correu o mundo: Europa, África, América. Mas, em sua geografia poética, sempre dava um jeito de retornar ao Nordeste e à Espanha. Não gostava do Rio, a contragosto residiu na cidade, bem diferente de Carlos, que não cessava de celebrá-la.

Mário, o arlequim modernista, morreu desgostoso poucos dias depois do carnaval de 1945, convicto de que sua geração fracassara. Manuel viveu por 82 anos, 5 meses e 26 livros, até ir-se embora para Pasárgada, bem-amado pelo público e pela crítica. Supunha que morreria meio século antes, mas, em país como o nosso, nada chega mesmo na hora prevista. A presença de Manuel foi captada em várias sessões espirituosas nas tendas de Paraty, no ano de 2009. Carlos afastou-se de João: ex-aluno que nunca escreveu um soneto e que detestava temas abstratos, acabou criando outra escola, na qual só franqueou a entrada de bem poucas lições do antigo mestre. João decidiu especializar-se na casa de máquinas do poema. Carlos optou pelas engrenagens da máquina do mundo. As minas de João eram do mais duro minério; a Minas de Carlos, do mais puro mistério.

Mário e Manuel acabaram solteiros. Carlos, viúvo. E João se casou com os poetas concretos, que não tinham entrado na história.


O dicionário devora o inseto

Às vezes, insetos devoram dicionários. O contrário, embora difícil, também pode ocorrer. “Áporo”, dizem Aurélio e Houaiss, significa “problema insolúvel”. Certo, mas pouco. Duas outras acepções da palavra, como veremos, foram engolidas pelos ilustres lexicógrafos.

“Áporo” é dos mais belos e ambíguos textos de A rosa do povo, de 1945, onde pululam poemas com grande teor de comunicabilidade. Leiamos: “Um inseto cava /cava sem alarme/perfurando a terra/sem achar escape.//Que fazer, exausto,/em país bloqueado,/enlace de noite/raiz e mistério?//Eis que o labirinto/ (oh razão, mistério)/ presto se desata:// em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/uma orquídea forma-se”.

O impasse – registrado em forma interrogativa – está expresso na estrofe 2: parece não haver meio de o inseto escapar do quase inexpugnável bloqueio mineral. Ora, uma das lacunas dos dicionários reside no fato de que “áporo” também significa “inseto”; portanto, com um só signo, o poeta nomeia simultaneamente a extrema dificuldade de se escapar da prisão (“áporo 1”) e a figura do prisioneiro (“áporo 2”), o inseto. O esforço do animal em atingir a luz remete à luta do poeta para chegar à poesia, a partir da confluência, no país noturno de sua imaginação, das categorias da “razão” e do “mistério”, mescla do administrável e do imponderável presentes no ato criador.

De súbito, nas estrofes finais, a situação se inverte: desfeita a aparente aporia (pela ultrapassagem da escuridão), o inseto parece abeirar-se de inesperada flor, irrompida contra as leis tradicionais da representação do espaço: “em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/uma orquídea forma-se”.

A questão, porém, é que o inseto não toca a flor: ele transforma-se nela. Com a ajuda de outro dicionário, o de Caldas Aulete, escavamos mais fundo para fazer aflorar um terceiro sentido de “áporo”: orquídea esverdeada. Assim, magistralmente, Drummond concentra os três sentidos no mesmo nome: o impasse, o agente que o desafia (o inseto, o poeta), e o resultado da luta: a orquídea-poema, nascida não das leis regulares da natureza, mas do poder fecundador da palavra poética.

Ao consignarem apenas uma acepção de “áporo”, alguns dicionários mataram o inseto e podaram a flor. Caso não recuperemos os dois significados banidos, a planta ainda floresce, mas o poema, certamente, se atrofia.

Pequeno Vasto Mundo

Um dos mais reiterados tópicos da poesia de Drummond é a tensão entre o mundo grande e o pequeno. No “Poema de sete faces”, ele declara: “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”. Apesar disso, já no texto seguinte, “Infância”, o poeta retorna célere para o espaço (e o tempo) da origem: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo”. A um título de livro de inspiração municipal (Brejo das almas, 1934), sucede outro de largo espectro: Sentimento do mundo (1940).

E assim vai ele, oscilando entre o pequeno e o vasto mundo. Quando, em 1945, publica A rosa do povo, Drummond parecia optar pela linhagem universalista, numa série de poemas vigilantes contra o horror nazifascista: neles, utopicamente, o poeta proclamava o advento de uma nova humanidade, depurada e fraterna. Todavia, clandestina a tantos versos de guerra bastante (sem trocadilho) bombásticos, captava-se também, no livro, uma voz em tom menor: “Sou apenas um homem./Um homem pequenino à beira de um rio. / Vejo as águas que passam e não as compreendo.” Ao lado do vate que profetizava uma sociedade em perfeita engrenagem coletiva, percebia-se um outro autor, duplo e avesso do primeiro, incapaz de explicar sequer a si mesmo. Assim, no contraste entre os dois “eus” que circulam nos textos, acabam igualmente brotando no livro duas espécies de flor: uma pública, rosa para o povo; e outra íntima, rosa para uns poucos: os excêntricos, os desvalidos, os poetas. Esta última não vinga em ameno jardim, mas eclode em meio a inesperada e inóspita paisagem urbana: “Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe, bondes, ônibus, rios de aço do tráfego”. A empatia do escritor para com tais espécies, cultivadas à margem de espaços previsíveis, ou na estufa solitária da imaginação poética (“Carrego comigo/.../o pequeno embrulho./...será uma flor?), é claro sinal da inserção de Drummond no território do “mundo pequeno”.

Em sua obra, é inócuo entender de modo isolado os movimentos centrífugos e centrípetos, pois ambos vigoram na dependência e no refluxo das forças inversas a que tentam se opor. Em “América”, lê-se: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra”. Entre Itabira e o mundo, no meio da rua, tem um poeta. Nele, as cores da aurora e da noite – sua origem e seu destino – arduamente se tocam, tensamente se procuram, formando um terceiro tom, a que chamamos poesia.