sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Entrevista, Correio Braziliense

Carlos Marcelo

Correio Braziliense,
Manual de Tortura


José Varella, Correio Braziliense



1. “Idéias não nascem assim, de repente”. É possível exercitar a imaginação como se houvesse uma barra de exercícios?

R – Não. A imaginação é traiçoeira e nos prega peças. Não adianta você escrever todos os dias que não conseguirá escrever boa ficção. Embora o romance necessite de disciplina, não significa que tudo o que está escrito é de boa qualidade. Agora uma coisa me parece certa: se palavra puxa palavra, uma cena ou uma idéia pode puxar o fio do novelo de uma história. Ou ainda: muitas vezes fazemos um esforço danado para finalizar um conto e um dia, de repente, dirigindo o carro, caminhando, tomando café, o final se oferece como a máquina do mundo no poema de Camões e de Drummond.



2. “O trabalho rotineiro era invenção não do Diabo, mas de um Deus patrão”. A rotina é torturante ou pode ser inspirada? E no que difere a rotina do escritor?

R – Inicialmente eu diria que a rotina é esterilizante. Ela descarna o ato criativo, mecaniza ações, congela o pensamento. Mas, creio que, para mim, a rotina para escrever é fundamental. Não posso escrever continuadamente numa desordem como nas viagens ou um cotidiano confuso. A poesia pode se dar ao luxo de uma produção desorganizada, mas a prosa necessita de disciplina. Estou me referindo ao ato em si de escrever.

3. Quais são suas obsessões como escritor? Elas podem ser medidas? Como essas obsessões estão espelhadas em “Manual de tortura”?

R – Todo escritor tem sua obsessão. Na verdade, já foi dito, o escritor escreve quase sempre o mesmo livro ou busca o livro ideal. E todos eles têm seus temas prediletos que no fundo representam as obsessões. Bem fez Proust que escreveu sete volumes, mas um só livro. O trabalho da crítica, entre outros, é descobrir essas recorrências como o espelho, o labirinto, o tempo, o tigre, etc em Borges. O que posso dizer de modo inconcluso é que gosto dos personagens à margem (não propriamente marginais) da sociedade, deslocados, em situações opressivas criadas muitas vezes por sua própria imaginação.

4. Por que um título tão forte, capaz até de causar interpretações perigosas se lido ao pé da letra? Está disposto a correr o risco?

R – “Manual de tortura” é um livro sobre as torturas cotidianas. Inclusive aquelas que não classificamos como tortura: o amor, o trabalho, a rotina, a busca da fama, personagens perseguidos pelo meio circundante, o medo da morte e o medo da vida, o homem, como no quadro de Magritte que, em vez de ver seu rosto, vê sua própria nuca, o moribundo que grava vozes de mortos para lhe fazer companhia.

5. “Se ninguém olha para o seu trabalho, tudo vai por água abaixo”. A defasagem entre o reconhecimento efetivamente obtido e o intimamente esperado pode afetar a criatividade?

R – Acredito que sim. Escrever e não ter reconhecimento, não ser lido por um grande público faz o autor correr dois riscos. O primeiro é não ter a resposta de sua contemporaneidade sobre seu trabalho. O segundo é enveredar por um caminho solipsista que pode levar o autor a construir uma obra que não é do seu tempo, em sentido positivo e também negativo. Talvez o único lucro seja este último desafio: escrever para um tempo mais à frente. O que, contudo, não é gratificante, pois escrever para a posteridade é bom só em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, com seu autor defunto ou seu defunto autor.

6. Chefes, burocracia, mesas, filas, promoções funcionais. Uma repartição, como tantas que há em Brasília, consegue impulsionar as suas idéias? Ou não há nada mais antiliterário do que uma cidade oficial?

R – Brasília é uma cidade profícua para a ficção. Aliás, tudo serve para a ficção. O escritor é um pouco recoletor de miudezas, de coisas desprezadas, um catador de destroços. O escritor, assim, se torna, para usar uma palavra da moda, um reciclador. Dyonélio Machado, em “Os ratos”, usou apenas uma enorme ação, a de um sujeito que passa o dia atrás de um empréstimo que todos lhe negam. Ora, essa trama é mínima, mas Dyonélio soube reciclar um fato ordinário que numa conversa passa despercebida como, por exemplo, “veja só Fulano, veio me pedir dinheiro emprestado”. Eu diria que desse “lixo”, comum, vulgar, um nada, Dyonélio criou um grande romance. Tudo serve para a ficção.

7. Do boxeador que ouve música erudita ao servidor público, como funciona o seu processo de metamorfose para cada narrador? É difícil encontrar o tom adequado?

R – Ultimamente, com o romance “O viúvo”, por exemplo, venho tendo a mesma dicção. E não quero perdê-la. Então sei que o que escrevo terá o mesmo tom. Como funciona meu processo de transcodificação da realidade para a ficção eu não sei bem. Sei que, fisicamente, volto neuroticamente ao texto para reescrevê-lo. Sempre insatisfeito. E sempre digo que as histórias já estão escritas dentro de mim, no inconsciente. O problema é mergulhar nesse mar profundo, escuro, sem tubo de oxigênio.

8. Suas histórias curtas partem de observações, vivências ou de ambos? Toma notas durante esse processo? Qual a fase mais difícil?

R – Não sei. Não tenho método. Às vezes, anoto durante bom tempo o que pode me servir e mais tarde não uso nada. O que sei é que não separo o escritor e o cidadão não escritor. Estou vinte quatro horas em processo de criação, ou seja, qualquer guimba de cigarro pode virar uma história. Muitas vezes acreditei que tinha a história e na hora de escrevê-la não tinha história nenhuma. A história vai se fazendo ao escrever e pode tomar o rumo que ela desejar. Lamento é nunca ter aproveitado nada dos meus sonhos.

9. Cinco romances, uma novela, um ensaio e quatro livros de poesia. Agora, contos. Em que formato você se sente mais à vontade, mais inteiriço? O que mais o entusiasmou nessa nova experiência?

R – Em todas essas expressões literárias me sinto confortável. Agora há certo desconforto ao desconhecer, no caso da prosa, se farei um romance ou um conto. Isso porque uma história pode não render e virar um conto. Em outra oportunidade, pensei que ia escrever um conto, como foi o caso do romance “O morto solidário”, e o conto não terminava e apareciam novos personagens, até que me rendi ao romance. No caso da poesia, relutei muito em publicar os poemas, embora os escrevia, porque as pessoas gostam de rotular, fulano é poeta, sicrano é prosador. Mas eu tinha que parir os poemas, publicá-los e deixar que fossem buscar alimento sem a proteção do pai. Esses contos são apenas uma parte de outros contos que ainda estão informes, inacabados ou que penso retomar a história sem aproveitar nenhuma palavra do anterior. Escrever conto é muito bom, porque se o conto é uma porcaria você gastou pouca energia e tempo com ele, enquanto que o romance pode levar de seis meses a dois anos...

10. A morte ronda, ou habita, praticamente todos os contos do livro. Já tinha sido assim no livro anterior, “O viúvo”. Por que essa onipresença? Como você tem lidado com o tema? Como o escritor pode driblar, ou ao menos ressignificar, a morte?

R – Talvez a morte seja minha grande obsessão. E aí eu teria que voltar à pergunta sobre obsessões. Eu comecei a escrever, creio, para, ingenuamente, vencer a morte. Não me tornar imortal. Mas imaginar que se alguém, depois da minha morte, um parente, um amigo, lesse o que escrevi eu permaneceria vivo. Hoje não temo a morte. Mas, na juventude, a morte era uma grande incógnita e um contínuo desespero. Eu não podia aceitar a belíssima frase de Shakespeare de que “a vida é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada”. O nada dessa frase tinha o poder de fogo de um pelotão de fuzilamento. No que escrevo, contudo, a morte não é o principal tema nem o elemento fundamental, embora ela dispare diversos comportamentos dos personagens. Nem posso dizer que a morte seja um dejeto, um detrito, algo pequeno. A morte, no que escrevo, é um pano de fundo, uma permanente lembrança da vacuidade das ações e sua presença é constante mesmo onde ela aparentemente não surge.

11. Escrever é mais árduo do que viver? No seu caso, é possível ser feliz sem escrever?

R – A literatura não pode ser vista como terapia para neurose. Mas a verdade é que expulsamos demônios que nos atormentam. E que é preciso abrir a comporta, se não a represa pode ser demolida ou vazar. Escrever e viver se confundem para mim. Há situações que penso que sou personagem da história e há narrativas minhas que penso que estou relatando a vida do personagem quando, transfigurado, estou me confessando. Mas literatura não é confissão, no sentido de se historiar casos domésticos. Nem as experiências do narrador são as experiências do autor. Viver não é perigoso, viver é trágico. E a tragédia maior não está propriamente na violência externa, da qual eu também trato, mas da violência interior. Não, eu não poderia ser feliz sem escrever como eu não poderia ser feliz respirando como um asmático em eterna crise.

12. Em um mundo congestionado de informação, a literatura se tornou acessória, simplesmente obsoleta ou ainda mais vital?

R- A literatura é o refúgio do humano. Pode desaparecer o objeto livro, mas não desaparecerá a necessidade de fabulação, nem a necessidade de ouvir ou ler fabulação. Logo, a literatura é uma necessidade social, um nicho de humanidade contra a mecanização e a massificação.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Vieira na ilha do Maranhão, lançamento romance


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Vieira sentava-se à mesa rústica e pouco eclesiástica com Bettendorff, Carcavaz e José Cintra, numa assembleia por demais extravagante para padres pouco excessivos, ausentes do vício da gula alimentada pelos gorduchos carmelitas ou os glutões mercedários. O leitão em sua frente fora doado por António Porqueiro. Não havia talhares e o arroz da terra, miúdo e fracionado, escuro, estava empapado em cuias. Vieira chegava de outra entrada longa e dolorosa pelos igarapés, lagoas, matos cerrados e rios volumosos, com mais de duzentas canoas que podiam navegar num silêncio absoluto. Para Vieira, os índios aprenderam a manha das plantas que vivem sem alarido.

– Vossa Mercê pode dar a notícia ao Conselho Ultramarino.

– Comunico ao rei as derrotas e conquistas religiosas. As seculares, só quando dizem respeito à mesma fé difundida aos gentios. Deixo-vos os fatos mundanos a quem veio ao Maranhão tratar de assuntos da terra e não da gente.

– O ouro e a prata são deveras meu ofício e meu serviço demais de profissão, mas nele vislumbro, padre, apenas o quilate verdadeiro e puro e as nuanças de variações metálicas preciosas, dados orgânicos e físicos. Sou igual a um cientista de engenharia que mede, regula, registra e calcula.

– A engenharia de obras discorda da engenharia de minas – disse Vieira. – Os homens cá colocam outra óptica e clivagem: a ambição, que não é elemento químico, mas desvario descuidoso e mau dos homens que os desejam, ruinosos e sôfregos.

O vinho era servido no barrilote que chegara de Évora. Ao menos o vinho podia ser admirado e amenizar o sal do porco assado em brasa, porque Vieira abominava a cerveja de milho que os colonos, na falta de vinho português, fabricavam em seus quintais na prática aprendida com os selvagens.

José Cintra era mineiro. Chegara ao Maranhão um ano antes e partira logo em missão com uma entrada em que Vieira não participara, mas organizara. Acompanhava Cintra outro homem de minas, português de Aveiro, estudante em Leipizing. O pobre do Castro, moço delicado, alvíssimo, de tez pálida, não suportou os odores pestíferos e acabou sucumbindo às febres malignas apesar dos cuidados médicos e os unguentos dos gentios. José passou a viajar sozinho e sem ter com quem comentar, discutir, averiguar e conferir os dados que colhia.

– Mas estou seguro, padre, de que por estas terras em que andei do Maranhão e do Pará não existe ouro ou diamante, nem outro metal tão precioso, que a terra há de se fartar apenas dos grãos que a muitos devem ser preciosos e se colhem em abundância, ao contrário de outros que perseguimos.

Padre António andava preocupado com a questão das minas. Fizera um sermão em Belém. Queria mostrar que o ouro e a prata traziam mais danos que benefícios. Mesmo sem ciência, não vira nenhum ornamento ou peça que se assemelhasse a ouro no pescoço ou nas mãos dos índios. Ou mesmo qualquer objeto nas aldeias em que tivesse posto os olhos.

– Perde Sua Majestade uma boa parte da riqueza que nossa pátria poderá arrecadar, mas pelo menos ficamos livres da cobiça, da febre delirante que transforma bons cristãos em homens doentes. Essas minas que tanto desejam e estimam, ordinariamente não as descobre, nem as dá Deus por merecimento, senão em castigo de grandes pecados.

Comentou com o pesquisador de minas suas leituras sobre Potosí.

            – Vida miseranda! Eu nunca fui ao Potosí, nem vi minas; porém nos livros que descrevem o que nelas se passa, não só causa espanto, mas horror, ler a fábrica e as máquinas, os artifícios e a força, o trabalho e os perigos com que as montanhas se cavam, as betas se seguem, e, perdidas, se tornam a buscar: os encontros de pedernais impenetráveis, ou de águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais, ou se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra parte os mesmos montes: o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas e de outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinquenta libras de peso, com que se batem, cortam de arrancam as pedras. É uma visão do inferno! Que utilidades se têm servido a Espanha dessas catacumbas? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não têm servido mais que a de despovoar e empobrecer.

Vieira levantara-se. Um tapuia trouxera uma bacia para que lavasse as mãos. O padre sentou-se numa cadeira perto da janela de onde se podia ver a praça de armas ou a praça maior como alguns colonos gostavam de chamar.

– Aqui campeia o diabo, senhor José Cintra, sem precisar de ouro. Incestos, corrupção, feitiçarias, hereges, um mundo de perdição.

Vieira estava absorto com a visão do terreiro à sua frente. Ali ficavam a Casa de Misericórdia ao cabo da praça, o palácio do governador e a Câmara Nova com sua enxovia debaixo para a banda do mar. Além do Colégio dos Padres da Companhia de Jesus, de Nossa Senhora da Luz, logo atrás da Sé.

– Alguns são parcos de inteligência. Às vezes penso que aqui prego no deserto, prego para as pedras antes que para os peixes, pois, se os homens têm razão sem uso, os peixes têm uso sem razão. Já as pedras – disse depositando os cotovelos no parapeito da janela – não têm nem razão nem uso próprio.

Embora a maioria da população fosse pobre, camponeses desprovidos de qualquer refino, havia na colônia muitos padres, para não falar dos civis, belgas, suíços e alemães e com eles um pouco dos costumes da terra natal.

Vieira andou pelos rios Tapajós e Tocantins, foi até o Amazonas e Pará e subiu a serra fria e nebulosa de Ibiapaba. Homem que viveu nas cortes, foi diplomata na Holanda e França, onde conheceu Mazarino, intermediou o frustrado casamento de Dom Teodósio com a grande (de tamanho) princesa mademoiselle, um virago sete anos mais que o esquálido príncipe, beato de voz sumida. Sugeriu a El-Rei comprar Pernambuco dos holandeses e utilizar-se do capital sefardita. Este homem do mundo, ao chegar em São Luís, sentiu-se em desterro.

Em junho de 1618, o Brasil fora divido em dois: a parte sul, o Estado do Brasil, com São Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco; a parte norte, com a criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Antes, em 1612, o francês Daniel de La Touche, Seigneur de La Ravardière, comandou a invasão à ilha de Upaon-Açu, habitada pelos tupinambás. Expulsos os franceses pelos portugueses, a ilha de São Luís sofreu nova investida: a dos holandeses, postos para fora dois anos depois.

Vinha o padre António com cinquenta mil-réis de ordenado, dinheiro que nunca usou em proveito próprio, e sabedor que não morreria de fome enquanto houvesse alguma farinha de mandioca e um pouco de caranguejo. E nem muito menos andaria nu como os índios, por se ali houver algodão e tujucos para confeccionar uma roupeta de jesuíta.

Partiu a 22 de dezembro de 1652 num caravelão. A sua partida foi entre divertida e ansiosa: queria que D. João IV o convocasse para restar no Reino e, ao mesmo tempo, desejava partir para o martírio. D. João IV deu ordens e contraordens para manter e despachar seu mais amado conselheiro.

Depois de estadas na ilha da Madeira, onde se incorporou à nau que vinha ao Maranhão, fez escala em Cabo Verde e por pouco o padre António por lá ficava, fascinado em converter à fé os gentios negros. Admirava-se dos padres cor de azeviche, brilhantes em sua negritude azulada, de serem teólogos gentis e acolhedores.

Ao chegar à ilha que fora dos franceses e holandeses, Vieira vivenciou o desgosto antigo e pesaroso da intolerância dos colonos. Já conhecia a pendenga teológica – os índios teriam ou não alma? – e a disputa rude e mercante: sem as mãos gentias não havia como fazer prosperar lavoura e engenho.

No mesmo dia em que partiu do Tejo seu caravelão indeciso e flutuante de dúvidas, embarcaram de volta ao estado do Maranhão, em outra nave, três dos que seriam por todo tempo em que viverá em São Luís seus desafetos: os capitães-mores Baltasar de Sousa Pereira e Inácio do Rego Barreto, e desembargador João Cabral de Barros.

Levava com ele oito sacerdotes, dois estudantes e dois coadjutores temporais, um oficial de carpinteiro, outro de serviço comum e generalíssimo. Entre eles, estava o aturdido padre Manuel de Lima, que portava a patente de comissário do Santo Ofício a ver se podia ou não instalar um tribunalzinho operoso, severo e malévolo contra os desvios possíveis e humanos dos pobres da ilha de São Luís. Sabe-se que em terra desértica e ignota o diabo irriga sua lavoura de hereges.

Vieira trazia no bolso da roupeta a liberdade dos índios cativos. Mas, novato em terra nova, virgem em terra virgem, reuniu sua tropa militar de padres e arengou que o confessionário não deveria ser tribuna: se o colono não falasse da dor de servir-se dos índios, o confessor nada devia pronunciar, mas, se perguntasse se era culposo colocar brida e cangalha em gentio, então o padre deveria orientar o pecador em seu pecado.

– Espero que vós estejais preparados para uma peleja que não é só do Maranhão ou que venho trazendo como um mensageiro da discórdia. Já a conhecia desde os tempos da Bahia.

Vieira se referia às instruções de El-Rei para cabal e ruidosa liberdade dos índios. A lei foi publicada e gritada em tom grave pelo pregoeiro que bateu tambor pela cidade ludovicense. A reação foi imediata, prevista e má. Dois vigários gerais, os superiores dos carmelitas e dos capuchos, a nobreza e até os pobres assinaram uma petição contra a presença dos inacianos e reivindicavam dura expulsão e severo exílio para a volta ao Reino de toda Companhia de Jesus.

Levaram o papelucho para que Vieira assinasse a contraordem de El-Rei, que, óbvio como na natureza há lua e sol, o superior dos jesuítas se recusou. Dirigiu-se então o poviléu para frente da Câmara com o propósito desaforado de gritar e bramir porretes. O capitão-mor que viera no caravelão de Vieira colocou ordem e disciplina militar em tropa civil e desordeira. O procurador mesmo da Câmara era um dos insurretos. Jorge Sampaio gritava para colocar os religiosos em duas canoas desfiguradas e rotas a fim de perecer o corpo danoso das ideias libertárias em favor dos índios.

Em Salvador, Vieira acompanhou a luta dos inacianos contra a escravidão dos índios e chegou-se a um acordo de trazer negros da Guiné e de Angola para substituir os gentios rebeldes. Os colonos do Maranhão nem chegaram a pensar nessa hipótese: não tinham dinheiro para comprar negros. Os vermelhos eram baratos e fartos, exuberantes e muitos em terras próximas e contíguas sem mar oceano que os intermediasse e custasse fortuna como adquirir uma peça africana.

Vieira era a favor da escravatura negra. O argumento do padre continha elementos de teologia. Era preferível que se aprisionasse, pusesse os gentios africanos em barcos insalubres e tumbeiros e os trouxesse para a nova terra do Brasil do que os dispusesse Deus em seus rituais bárbaros, perdidos na selva e na fé. Cativos, postos em ferro, tinham a liberdade da alma. Agora podiam morrer em paz e batizados, mesmo que o corpo pertencesse não a Deus, mas a seus donos.

Dias depois, Vieira subiu ao púlpito para seu primeiro sermão na ilha. A fama de orador antecedera a chegada do padre ao Maranhão. Todos acorreram à igreja. Uns para ouvir se era verdade que António tinha o poder encantatório e clérigo de convencer os incrédulos; outros buscavam descobrir que manhas o padre usaria para safar-se do imbróglio em que se metera ao colocar os pés em terra brasílica.

            Vieira começa falando das tentações que o diabo fez a Jesus: numa das três o demônio oferece o mundo em troca da alma de Cristo. E alfineta: ela, a tentação, é própria da terra em que estamos. “Que ofereça o demônio mundos, e que peça adorações!”. O público pouco respira. As piedosas senhoras sentem a culpa de existir. O demônio conhece a alma dos homens porque também é uma alma. Alma decaída, mas alma. “O demônio, como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ela é.” Os que eram contra o jesuíta também se sentavam nos bancos, incomodados e impacientes. “Mas já que o demônio nos dá doutrina, quero-lhe eu dar um quinau”.

            O capitão-mor e sua trupe militar olham em volta para ver a reação dos colonos. “Os irmãos de José eram onze, e venderam-no por vinte dinheiros, saiu-lhe por menos de dois dinheiros a cada um”. Aonde o padre queria chegar? O padre sugere que se o colono for vender a sua alma, que não a venda tão barata, mas a peso. “Tomai as balanças do demônio na mão; ponde de uma parte o mundo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais a vossa alma que todo o mundo”.

            Outros religiosos ali estão: os mercedários, os carmelitas, os capuchos. Admiram a retórica, odeiam o homem. “Ouvi uma verdade de Sêneca, que por ser gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius. Não há coisa para conosco mais vil que nós mesmos.” E manda que os colonos ali presentes busquem em sua casa coisa mais vil que nela se encontre. “Buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é a vossa própria alma”. Ouviu-se um reprimido e angustiado óó.

            Os mais jovens, impetuosos, arrebanhados pela ideia mística, nunca ouviram palavras tão belas e deformantes. Um mundo de espetáculo onde em vez de circo ouvem-se apenas os saltos e malabares da palavra.

            E Vieira agora abusa de sua oratória e em tom mais grave e alto sentencia:

            “No Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas as almas: não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba e dois tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos. Oh que feira tão barata.” Os colonos mais pobres assentiam com a cabeça, horrorizados com o poder do diabo. Os fidalgos bufavam, inquietos no banco incomodante. A maioria, contudo, ouvia certa música celestial onde não havia mais que a voz de Vieira.

            E o padre se aproximava do ponto em que queria ferir a ambição dos senhores de engenho, tabaco, lavoura e alma dos índios. “Sabeis, cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que quer Deus de vós esta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos” E ameaçava com catástrofes que fazia a plateia suspender a respiração pouca e de massa: o faraó não deu liberdade aos hebreus. O resultado foi a praga. “A terra se convertia em rãs: o ar se convertia em mosquitos: os rios se convertiam em sangue: as nuvens se convertiam em raios e em coriscos: todo o Egito assombrado e perecendo!”

            As beatas se benziam. “Quem pede o ilícito e o injusto, merece que lhe neguem o lícito e o justo.” Os fidalgos temiam a conclusão daquele sermão chamado por eles demoníaco. Entreolharam-se, rangeram-se dentes. “O pão que assim se granjeia é como o que hoje ofereceu o diabo a Cristo; pão de pedras, que quando se não atravessa na garganta, não se pode digerir”.

            Vieira então chegou à proposta de contrato social entre os senhores donos de engenhos e de almas gentias e os pobres índios cativos. Já não falava como clérigo, a mudança de tom da oratória era visível e audível: o padre propunha a questão da liberdade dos índios.

            “Ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem (como se diz) em cordas, para ser comidos; e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro. Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o governador de todo o estado, o Ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das quatro religiões, carmelitas, franciscanos, mercedários, e da Companhia de Jesus.”

            Oh assombro, dúvida, perplexidade! Ao terminar o sermão, ouviam-se as vozes conturbadas, umas em revolta e desafio, a maioria em admiração e angústia. A visão do abismo, a imensidão e a eternidade do fogo do inferno, tudo inquietava as mentes já febris e apavoradas com a proximidade do fim do mundo. Os que sempre se opuseram aos inacianos tinham ali a prova de que não iriam desistir de criar o império de Deus, de El-Rei, e, por último mas não menos importante, dos padres da Companhia de Jesus. Era 2 de março, a primeira dominga da Quaresma. Vieira só tinha dois meses e alguns dias de permanência nas terras do Maranhão. E falava no mesmo tom, elegância e estilo dos seus sermões para os grandes da Corte e diante da presença de D. João IV.

Em outubro de 1653, Vieira perdeu um pouco do poder que a carta-régia de El-Rei lhe tinha conferido. Depois que dois procuradores da Câmara pegaram caravela em direção a Lisboa e de lá vieram com nova ordem do Conselho Ultramarino que reavivava uma lei de 1609, Vieira viu seu poder temporal e espiritual sobre os índios diminuir. Agora ficava acertado que se podia prear índios na “guerra justa”, ou seja, aqueles gentios que tivessem atacado os colonos ou promovessem guerras genocidas entre suas nações.

À modorra da tarde, Vieira atravessou o terreiro, esteve na Câmara a discutir com os colonos alguns detalhes da nova expedição. Vieira gostava mais dos debates em que houvesse algum compromisso com a imaginação e a retórica, os pormenores sobre um arruamento, a necessidade de lampião em determinado ponto da cidade, não o interessavam.

– Percebo que vós estais distraído, padre Vieira.

– Esta canícula miserável. E parece que o leitãozinho favoreceu a gula – pecado destes tempos – e me fez comer mais que devia.

Vieira comia com frugalidade. Preparava sua própria refeição, num fogareiro que enevoava o ambiente minúsculo. Dormia sobre uma tábua rija e intolerante com o corpo mole. Vestia um pano grosseiro, mais pardo que preto, como farinha de pau, esmaecido, tinto de barro, e calçava sapato de porco montês.

Voltou a sua cela no Colégio. Dormiu um pouco, acordou, rezou. O seu fiel servente trouxe-lhe duas cartas, da cidade mesmo, que Vieira não abriu. Jogou-as sobre a mesa, dirigiu-se ao solar da rua paralela ao Caminho Grande e visitou os doentes da casa que alugara com seu próprio salário para acudir aos enfermos.

De lá seguiu para a minha casa, conversamos um pouco sobre Catão e Aristóteles, recusou o vinho do anfitrião, mas aceitou o pão de milho que Rafaela fazia melhor que os de trigo. Ela prometeu enviar uma cesta todas as manhãs para o colégio ou o convento de Santo António, onde Vieira estivesse.

– Quereis alimentar-me, dona Rafaela? Alimentar-me a alma? Então envie vossos pães deliciosos para meu abrigo de enfermos.

– Saco vazio não se põe de pé, padre. Faço vossa vontade, entrego o pão aos que têm fome. Mas isso pratico desde muito e fortemente. Trago uma tradição da minha família que é apoiar outras famílias. E neste deserto verde de palmeiras, rios que nos cortam e a abundância de água que o Maranhão nos fornece e afoga, busco também como uma alma penada acolher enfermos e desamparados. Meu filho Rui muito se cuida e preocupa, vós o conheceis, e muito se entrega a seu ofício sem que ninguém o pague por ele. Rui um hospital ambulante, sem enfermaria e sem cuidados de convalescência, sem leitos e sem botica, além das ofertas grandes e difusas da medicina dos gentios.

– Oh Deus, dona Rafaela, não vos quis ofender. É que vivo numa solidão muito digna da pobreza. Recuso os vícios da gula que pode me corromper para o exercício do meu magistério. Mande-me lá, também, uma cesta de vez em quando. Deus há de entender que não me excedo, mas faz parte de minha participação nesta república do Maranhão e há de me perdoar.

Vieira riu e despediu-se. A brisa fresca vindo do Coti arrodeava a cidade como uma cinta de brisa. Àquela noite, Vieira sonhou que mergulhava num lago escuro e lá embaixo encontrava com índios com as cabeças nas mãos. Ele perguntava o que acontecera e os selvagens relatavam que os portugueses vieram e cortaram-lhes as cabeças. E eles agora não poderiam voltar para morar em suas aldeias em terra firme enquanto o senhor Deus não lhes pusesse as cabeças no lugar. Vieira rezou com os índios e as cabeças voltaram. O sonho se repetia. Quando Vieira soube que a Afogada falara sobre uma cabeça que rolava em seu quintal suplicando que seus algozes lhe devolvessem o corpo seu dela, cabeça, o padre assustou-se porque já vinha sonhando há tempos com os índios sem cabeça submersos.