Vieira
sentava-se à mesa rústica e pouco eclesiástica com Bettendorff, Carcavaz e José
Cintra, numa assembleia por demais extravagante para padres pouco excessivos,
ausentes do vício da gula alimentada pelos gorduchos carmelitas ou os glutões
mercedários. O leitão em sua frente fora doado por António Porqueiro. Não havia
talhares e o arroz da terra, miúdo e fracionado, escuro, estava empapado em
cuias. Vieira chegava de outra entrada longa e dolorosa pelos igarapés, lagoas,
matos cerrados e rios volumosos, com mais de duzentas canoas que podiam navegar
num silêncio absoluto. Para Vieira, os índios aprenderam a manha das plantas
que vivem sem alarido.
–
Vossa Mercê pode dar a notícia ao Conselho Ultramarino.
–
Comunico ao rei as derrotas e conquistas religiosas. As seculares, só quando
dizem respeito à mesma fé difundida aos gentios. Deixo-vos os fatos mundanos a
quem veio ao Maranhão tratar de assuntos da terra e não da gente.
–
O ouro e a prata são deveras meu ofício e meu serviço demais de profissão, mas
nele vislumbro, padre, apenas o quilate verdadeiro e puro e as nuanças de
variações metálicas preciosas, dados orgânicos e físicos. Sou igual a um
cientista de engenharia que mede, regula, registra e calcula.
–
A engenharia de obras discorda da engenharia de minas – disse Vieira. – Os homens
cá colocam outra óptica e clivagem: a ambição, que não é elemento químico, mas
desvario descuidoso e mau dos homens que os desejam, ruinosos e sôfregos.
O
vinho era servido no barrilote que chegara de Évora. Ao menos o vinho podia ser
admirado e amenizar o sal do porco assado em brasa, porque Vieira abominava a
cerveja de milho que os colonos, na falta de vinho português, fabricavam em
seus quintais na prática aprendida com os selvagens.
José
Cintra era mineiro. Chegara ao Maranhão um ano antes e partira logo em missão
com uma entrada em que Vieira não participara, mas organizara. Acompanhava
Cintra outro homem de minas, português de Aveiro, estudante em Leipizing. O
pobre do Castro, moço delicado, alvíssimo, de tez pálida, não suportou os
odores pestíferos e acabou sucumbindo às febres malignas apesar dos cuidados
médicos e os unguentos dos gentios. José passou a viajar sozinho e sem ter com
quem comentar, discutir, averiguar e conferir os dados que colhia.
–
Mas estou seguro, padre, de que por estas terras em que andei do Maranhão e do
Pará não existe ouro ou diamante, nem outro metal tão precioso, que a terra há
de se fartar apenas dos grãos que a muitos devem ser preciosos e se colhem em
abundância, ao contrário de outros que perseguimos.
Padre
António andava preocupado com a questão das minas. Fizera um sermão em Belém.
Queria mostrar que o ouro e a prata traziam mais danos que benefícios. Mesmo
sem ciência, não vira nenhum ornamento ou peça que se assemelhasse a ouro no
pescoço ou nas mãos dos índios. Ou mesmo qualquer objeto nas aldeias em que
tivesse posto os olhos.
–
Perde Sua Majestade uma boa parte da riqueza que nossa pátria poderá arrecadar,
mas pelo menos ficamos livres da cobiça, da febre delirante que transforma bons
cristãos em homens doentes. Essas minas que tanto desejam e estimam,
ordinariamente não as descobre, nem as dá Deus por merecimento, senão em
castigo de grandes pecados.
Comentou
com o pesquisador de minas suas leituras sobre Potosí.
– Vida miseranda! Eu nunca fui ao
Potosí, nem vi minas; porém nos livros que descrevem o que nelas se passa, não
só causa espanto, mas horror, ler a fábrica e as máquinas, os artifícios e a
força, o trabalho e os perigos com que as montanhas se cavam, as betas se
seguem, e, perdidas, se tornam a buscar: os encontros de pedernais
impenetráveis, ou de águas subterrâneas, que rebentam das penhas, as quais, ou
se hão de esgotar com bombas, ou abrir-lhes novo caminho, furando por outra
parte os mesmos montes: o estrondo dos maços, das cunhas, das alavancas e de
outros instrumentos de ferro, alguns dos quais têm cento e cinquenta libras de
peso, com que se batem, cortam de arrancam as pedras. É uma visão do inferno!
Que utilidades se têm servido a Espanha dessas catacumbas? A mesma Espanha
confessa e chora que lhe não têm servido mais que a de despovoar e empobrecer.
Vieira
levantara-se. Um tapuia trouxera uma bacia para que lavasse as mãos. O padre
sentou-se numa cadeira perto da janela de onde se podia ver a praça de armas ou
a praça maior como alguns colonos gostavam de chamar.
–
Aqui campeia o diabo, senhor José Cintra, sem precisar de ouro. Incestos,
corrupção, feitiçarias, hereges, um mundo de perdição.
Vieira
estava absorto com a visão do terreiro à sua frente. Ali ficavam a Casa de
Misericórdia ao cabo da praça, o palácio do governador e a Câmara Nova com sua
enxovia debaixo para a banda do mar. Além do Colégio dos Padres da Companhia de
Jesus, de Nossa Senhora da Luz, logo atrás da Sé.
–
Alguns são parcos de inteligência. Às vezes penso que aqui prego no deserto,
prego para as pedras antes que para os peixes, pois, se os homens têm razão sem
uso, os peixes têm uso sem razão. Já as pedras – disse depositando os cotovelos
no parapeito da janela – não têm nem razão nem uso próprio.
Embora
a maioria da população fosse pobre, camponeses desprovidos de qualquer refino,
havia na colônia muitos padres, para não falar dos civis, belgas, suíços e
alemães e com eles um pouco dos costumes da terra natal.
Vieira
andou pelos rios Tapajós e Tocantins, foi até o Amazonas e Pará e subiu a serra
fria e nebulosa de Ibiapaba. Homem que viveu nas cortes, foi diplomata na
Holanda e França, onde conheceu Mazarino, intermediou o frustrado casamento de
Dom Teodósio com a grande (de tamanho) princesa mademoiselle, um virago sete anos mais que o esquálido príncipe, beato
de voz sumida. Sugeriu a El-Rei comprar Pernambuco dos holandeses e utilizar-se
do capital sefardita. Este homem do mundo, ao chegar em São Luís, sentiu-se em
desterro.
Em
junho de 1618, o Brasil fora divido em dois: a parte sul, o Estado do Brasil,
com São Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco; a parte norte, com a criação do Estado
do Grão-Pará e Maranhão. Antes, em 1612, o francês Daniel de La Touche,
Seigneur de La Ravardière, comandou a invasão à ilha de Upaon-Açu, habitada
pelos tupinambás. Expulsos os franceses pelos portugueses, a ilha de São Luís
sofreu nova investida: a dos holandeses, postos para fora dois anos depois.
Vinha
o padre António com cinquenta mil-réis de ordenado, dinheiro que nunca usou em
proveito próprio, e sabedor que não morreria de fome enquanto houvesse alguma
farinha de mandioca e um pouco de caranguejo. E nem muito menos andaria nu como
os índios, por se ali houver algodão e tujucos para confeccionar uma roupeta de
jesuíta.
Partiu
a 22 de dezembro de 1652 num caravelão. A sua partida foi entre divertida e
ansiosa: queria que D. João IV o convocasse para restar no Reino e, ao mesmo
tempo, desejava partir para o martírio. D. João IV deu ordens e contraordens
para manter e despachar seu mais amado conselheiro.
Depois
de estadas na ilha da Madeira, onde se incorporou à nau que vinha ao Maranhão,
fez escala em Cabo Verde e por pouco o padre António por lá ficava, fascinado
em converter à fé os gentios negros. Admirava-se dos padres cor de azeviche,
brilhantes em sua negritude azulada, de serem teólogos gentis e acolhedores.
Ao
chegar à ilha que fora dos franceses e holandeses, Vieira vivenciou o desgosto
antigo e pesaroso da intolerância dos colonos. Já conhecia a pendenga teológica
– os índios teriam ou não alma? – e a disputa rude e mercante: sem as mãos
gentias não havia como fazer prosperar lavoura e engenho.
No
mesmo dia em que partiu do Tejo seu caravelão indeciso e flutuante de dúvidas,
embarcaram de volta ao estado do Maranhão, em outra nave, três dos que seriam
por todo tempo em que viverá em São Luís seus desafetos: os capitães-mores
Baltasar de Sousa Pereira e Inácio do Rego Barreto, e desembargador João Cabral
de Barros.
Levava
com ele oito sacerdotes, dois estudantes e dois coadjutores temporais, um oficial
de carpinteiro, outro de serviço comum e generalíssimo. Entre eles, estava o
aturdido padre Manuel de Lima, que portava a patente de comissário do Santo
Ofício a ver se podia ou não instalar um tribunalzinho operoso, severo e
malévolo contra os desvios possíveis e humanos dos pobres da ilha de São Luís.
Sabe-se que em terra desértica e ignota o diabo irriga sua lavoura de hereges.
Vieira
trazia no bolso da roupeta a liberdade dos índios cativos. Mas, novato em terra
nova, virgem em terra virgem, reuniu sua tropa militar de padres e arengou que
o confessionário não deveria ser tribuna: se o colono não falasse da dor de
servir-se dos índios, o confessor nada devia pronunciar, mas, se perguntasse se
era culposo colocar brida e cangalha em gentio, então o padre deveria orientar
o pecador em seu pecado.
–
Espero que vós estejais preparados para uma peleja que não é só do Maranhão ou
que venho trazendo como um mensageiro da discórdia. Já a conhecia desde os
tempos da Bahia.
Vieira
se referia às instruções de El-Rei para cabal e ruidosa liberdade dos índios. A
lei foi publicada e gritada em tom grave pelo pregoeiro que bateu tambor pela
cidade ludovicense. A reação foi imediata, prevista e má. Dois vigários gerais,
os superiores dos carmelitas e dos capuchos, a nobreza e até os pobres
assinaram uma petição contra a presença dos inacianos e reivindicavam dura
expulsão e severo exílio para a volta ao Reino de toda Companhia de Jesus.
Levaram
o papelucho para que Vieira assinasse a contraordem de El-Rei, que, óbvio como
na natureza há lua e sol, o superior dos jesuítas se recusou. Dirigiu-se então
o poviléu para frente da Câmara com o propósito desaforado de gritar e bramir
porretes. O capitão-mor que viera no caravelão de Vieira colocou ordem e
disciplina militar em tropa civil e desordeira. O procurador mesmo da Câmara
era um dos insurretos. Jorge Sampaio gritava para colocar os religiosos em duas
canoas desfiguradas e rotas a fim de perecer o corpo danoso das ideias
libertárias em favor dos índios.
Em
Salvador, Vieira acompanhou a luta dos inacianos contra a escravidão dos índios
e chegou-se a um acordo de trazer negros da Guiné e de Angola para substituir
os gentios rebeldes. Os colonos do Maranhão nem chegaram a pensar nessa
hipótese: não tinham dinheiro para comprar negros. Os vermelhos eram baratos e
fartos, exuberantes e muitos em terras próximas e contíguas sem mar oceano que
os intermediasse e custasse fortuna como adquirir uma peça africana.
Vieira
era a favor da escravatura negra. O argumento do padre continha elementos de
teologia. Era preferível que se aprisionasse, pusesse os gentios africanos em
barcos insalubres e tumbeiros e os trouxesse para a nova terra do Brasil do que
os dispusesse Deus em seus rituais bárbaros, perdidos na selva e na fé.
Cativos, postos em ferro, tinham a liberdade da alma. Agora podiam morrer em
paz e batizados, mesmo que o corpo pertencesse não a Deus, mas a seus donos.
Dias
depois, Vieira subiu ao púlpito para seu primeiro sermão na ilha. A fama de
orador antecedera a chegada do padre ao Maranhão. Todos acorreram à igreja. Uns
para ouvir se era verdade que António tinha o poder encantatório e clérigo de
convencer os incrédulos; outros buscavam descobrir que manhas o padre usaria
para safar-se do imbróglio em que se metera ao colocar os pés em terra
brasílica.
Vieira começa falando das tentações
que o diabo fez a Jesus: numa das três o demônio oferece o mundo em troca da
alma de Cristo. E alfineta: ela, a tentação, é própria da terra em que estamos.
“Que ofereça o demônio mundos, e que peça adorações!”. O público pouco respira.
As piedosas senhoras sentem a culpa de existir. O demônio conhece a alma dos
homens porque também é uma alma. Alma decaída, mas alma. “O demônio, como é
espírito, e a nossa alma também espírito, conhece muito bem o que ela é.” Os
que eram contra o jesuíta também se sentavam nos bancos, incomodados e
impacientes. “Mas já que o demônio nos dá doutrina, quero-lhe eu dar um
quinau”.
O capitão-mor e sua trupe militar
olham em volta para ver a reação dos colonos. “Os irmãos de José eram onze, e
venderam-no por vinte dinheiros, saiu-lhe por menos de dois dinheiros a cada um”.
Aonde o padre queria chegar? O padre sugere que se o colono for vender a sua
alma, que não a venda tão barata, mas a peso. “Tomai as balanças do demônio na
mão; ponde de uma parte o mundo, e da outra uma alma, e achareis que pesa mais
a vossa alma que todo o mundo”.
Outros religiosos ali estão: os
mercedários, os carmelitas, os capuchos. Admiram a retórica, odeiam o homem.
“Ouvi uma verdade de Sêneca, que por ser gentio, folgo de a repetir muitas
vezes. Nihil est homini se ipso vilius. Não
há coisa para conosco mais vil que nós mesmos.” E manda que os colonos ali
presentes busquem em sua casa coisa mais vil que nela se encontre. “Buscai a
coisa mais vil de toda ela, e achareis que é a vossa própria alma”. Ouviu-se um
reprimido e angustiado óó.
Os mais jovens, impetuosos,
arrebanhados pela ideia mística, nunca ouviram palavras tão belas e
deformantes. Um mundo de espetáculo onde em vez de circo ouvem-se apenas os
saltos e malabares da palavra.
E Vieira agora abusa de sua oratória
e em tom mais grave e alto sentencia:
“No Maranhão não é necessário ao
demônio tanta bolsa para comprar todas as almas: não é necessário oferecer
reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar
o diabo com um tujupar de pindoba e dois tapuias; e logo está adorado com ambos
os joelhos. Oh que feira tão barata.” Os colonos mais pobres assentiam com a
cabeça, horrorizados com o poder do diabo. Os fidalgos bufavam, inquietos no
banco incomodante. A maioria, contudo, ouvia certa música celestial onde não
havia mais que a voz de Vieira.
E o padre se aproximava do ponto em
que queria ferir a ambição dos senhores de engenho, tabaco, lavoura e alma dos
índios. “Sabeis, cristãos, sabeis nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum
que quer Deus de vós esta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que
deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos” E ameaçava com catástrofes
que fazia a plateia suspender a respiração pouca e de massa: o faraó não deu
liberdade aos hebreus. O resultado foi a praga. “A terra se convertia em rãs: o
ar se convertia em mosquitos: os rios se convertiam em sangue: as nuvens se
convertiam em raios e em coriscos: todo o Egito assombrado e perecendo!”
As beatas se benziam. “Quem pede o
ilícito e o injusto, merece que lhe neguem o lícito e o justo.” Os fidalgos
temiam a conclusão daquele sermão chamado por eles demoníaco. Entreolharam-se,
rangeram-se dentes. “O pão que assim se granjeia é como o que hoje ofereceu o
diabo a Cristo; pão de pedras, que quando se não atravessa na garganta, não se
pode digerir”.
Vieira então chegou à proposta de
contrato social entre os senhores donos de engenhos e de almas gentias e os
pobres índios cativos. Já não falava como clérigo, a mudança de tom da oratória
era visível e audível: o padre propunha a questão da liberdade dos índios.
“Ao sertão se poderão fazer todos os
anos entradas, em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem (como se
diz) em cordas, para ser comidos; e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo
cativeiro. Assim serão também cativos todos os que sem violência forem vendidos
como escravos de seus inimigos, tomados em justa guerra, da qual serão juízes o
governador de todo o estado, o Ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e
os prelados das quatro religiões, carmelitas, franciscanos, mercedários, e da
Companhia de Jesus.”
Oh assombro, dúvida, perplexidade!
Ao terminar o sermão, ouviam-se as vozes conturbadas, umas em revolta e
desafio, a maioria em admiração e angústia. A visão do abismo, a imensidão e a
eternidade do fogo do inferno, tudo inquietava as mentes já febris e apavoradas
com a proximidade do fim do mundo. Os que sempre se opuseram aos inacianos
tinham ali a prova de que não iriam desistir de criar o império de Deus, de
El-Rei, e, por último mas não menos importante, dos padres da Companhia de
Jesus. Era 2 de março, a primeira dominga da Quaresma. Vieira só tinha dois
meses e alguns dias de permanência nas terras do Maranhão. E falava no mesmo
tom, elegância e estilo dos seus sermões para os grandes da Corte e diante da
presença de D. João IV.
Em
outubro de 1653, Vieira perdeu um pouco do poder que a carta-régia de El-Rei
lhe tinha conferido. Depois que dois procuradores da Câmara pegaram caravela em
direção a Lisboa e de lá vieram com nova ordem do Conselho Ultramarino que
reavivava uma lei de 1609, Vieira viu seu poder temporal e espiritual sobre os
índios diminuir. Agora ficava acertado que se podia prear índios na “guerra
justa”, ou seja, aqueles gentios que tivessem atacado os colonos ou promovessem
guerras genocidas entre suas nações.
À
modorra da tarde, Vieira atravessou o terreiro, esteve na Câmara a discutir com
os colonos alguns detalhes da nova expedição. Vieira gostava mais dos debates
em que houvesse algum compromisso com a imaginação e a retórica, os pormenores
sobre um arruamento, a necessidade de lampião em determinado ponto da cidade,
não o interessavam.
–
Percebo que vós estais distraído, padre Vieira.
–
Esta canícula miserável. E parece que o leitãozinho favoreceu a gula – pecado
destes tempos – e me fez comer mais que devia.
Vieira
comia com frugalidade. Preparava sua própria refeição, num fogareiro que
enevoava o ambiente minúsculo. Dormia sobre uma tábua rija e intolerante com o
corpo mole. Vestia um pano grosseiro, mais pardo que preto, como farinha de pau,
esmaecido, tinto de barro, e calçava sapato de porco montês.
Voltou
a sua cela no Colégio. Dormiu um pouco, acordou, rezou. O seu fiel servente trouxe-lhe
duas cartas, da cidade mesmo, que Vieira não abriu. Jogou-as sobre a mesa,
dirigiu-se ao solar da rua paralela ao Caminho Grande e visitou os doentes da
casa que alugara com seu próprio salário para acudir aos enfermos.
De
lá seguiu para a minha casa, conversamos um pouco sobre Catão e Aristóteles,
recusou o vinho do anfitrião, mas aceitou o pão de milho que Rafaela fazia
melhor que os de trigo. Ela prometeu enviar uma cesta todas as manhãs para o
colégio ou o convento de Santo António, onde Vieira estivesse.
–
Quereis alimentar-me, dona Rafaela? Alimentar-me a alma? Então envie vossos
pães deliciosos para meu abrigo de enfermos.
–
Saco vazio não se põe de pé, padre. Faço vossa vontade, entrego o pão aos que
têm fome. Mas isso pratico desde muito e fortemente. Trago uma tradição da
minha família que é apoiar outras famílias. E neste deserto verde de palmeiras,
rios que nos cortam e a abundância de água que o Maranhão nos fornece e afoga,
busco também como uma alma penada acolher enfermos e desamparados. Meu filho
Rui muito se cuida e preocupa, vós o conheceis, e muito se entrega a seu ofício
sem que ninguém o pague por ele. Rui um hospital ambulante, sem enfermaria e
sem cuidados de convalescência, sem leitos e sem botica, além das ofertas
grandes e difusas da medicina dos gentios.
–
Oh Deus, dona Rafaela, não vos quis ofender. É que vivo numa solidão muito
digna da pobreza. Recuso os vícios da gula que pode me corromper para o
exercício do meu magistério. Mande-me lá, também, uma cesta de vez em quando.
Deus há de entender que não me excedo, mas faz parte de minha participação
nesta república do Maranhão e há de me perdoar.
Vieira
riu e despediu-se. A brisa fresca vindo do Coti arrodeava a cidade como uma
cinta de brisa. Àquela noite, Vieira sonhou que mergulhava num lago escuro e lá
embaixo encontrava com índios com as cabeças nas mãos. Ele perguntava o que
acontecera e os selvagens relatavam que os portugueses vieram e cortaram-lhes
as cabeças. E eles agora não poderiam voltar para morar em suas aldeias em
terra firme enquanto o senhor Deus não lhes pusesse as cabeças no lugar. Vieira
rezou com os índios e as cabeças voltaram. O sonho se repetia. Quando Vieira
soube que a Afogada falara sobre uma cabeça que rolava em seu quintal
suplicando que seus algozes lhe devolvessem o corpo seu dela, cabeça, o padre
assustou-se porque já vinha sonhando há tempos com os índios sem cabeça
submersos.
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